O outono de Gabriel García Márquez
Faz um ano li nos jornais um atentado grave para todos que amam a criação e a literatura: o gênio essencial de nome Gabriel García Márquez estava perdendo a memória. De lá para cá, por caridade ou leviano movimento do noticiário, ninguém mais falou. É como se perdêssemos também a memória sobre a memória do genial mestre do romance. Razão por que retomo aqui este breve lapso.
Por Urariano Mota.
Publicado 26/07/2013 17:35

Quando se espalhou como peste a notícia, o anúncio da demência veio de Plínio Apuleyo Mendoza, amigo da juventude de García Márquez, sobre quem Plínio publicou o bom livro Cheiro de Goiaba. Assim Plínio Apuleyo Mendoza anunciou a desgraça:
Mendoza também contou que o filho do Márquez, Rodrigo – que é seu afilhado –, revelou a ele que o pai precisa ver as pessoas "porque senão, pela voz, não sabe quem está falando". Nas últimas vezes em que conversamos pessoalmente, na Cidade do México, ele repetiu várias vezes: "Como anda você? O que tem feito? Quando volta de Paris?" Muitos amigos comuns com quem falei sobre o assunto disseram que com eles aconteceu a mesma coisa. Gabo fez as mesmas perguntas. Existe a suspeita de que ele tenha algumas fórmulas. Se não reconhece alguém, não pergunta ‘quem é você?’. Prefere fazer perguntas genéricas”.
Com dicas adequadas podia lembrar-se de mais coisas do passado remoto – embora nem sempre os títulos de suas obras – e travar uma conversa razoavelmente normal e até bem-humorada. Mas sua memória imediata estava fragilizada, e Gabo se mostrava claramente angustiado com isso e sobre a fase em que parecia ter entrado. Depois que conversamos sobre seu trabalho e seus planos por algum tempo, declarou que não tinha certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase melancólico: ‘Escrevi bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar frustradas, e não podem esperar mais nada de mim, não é?’
Estávamos sentados em imensas poltronas azuis, numa saleta íntima do hotel, de onde se via o anel rodoviário do sul da Cidade do México. Lá fora estava o século XXI, voando. Oito pistas de tráfego incessante.
Ele me olhou e disse:
– Sabe, algumas vezes fico deprimido.
– Como? Você, Gabo, depois de tudo que realizou? Não acredito. Por quê?
Ele gesticulou para o mundo além da janela – a grande artéria de tráfego intenso, a intensidade silenciosa de todas aquelas pessoas comuns vivendo a vida num mundo que não era mais seu –, depois voltou o olhar para mim e murmurou:
– Porque percebo que tudo isso está chegando ao fim”.
Então voltemos a seu livro máximo. Em Cem anos de solidão ele escreveu um dia e para sempre: “El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el dedo”.
Assim foi, assim é. Penso que o escritor na sua memória ao fim, mesmo que esquecido em seu canto um ano depois, aprofunda todos os días a sua volta ao princípio do mundo.