O Foro de São Paulo e os desafios da esquerda na América Latina

O 19º Encontro do Foro de São Paulo aconteceu entre os dias 31 de julho e 04 de agosto na capital paulista e reuniu cerca de 1.300 delegados de 39 países, entre eles Cuba, Argentina, Brasil, Venezuela, Bolívia, Uruguai, Equador, Nicarágua e El Salvador, que formam um novo bloco político e econômico no continente, que luta para criar mecanismos de integração regional, de colaboração cultural e científica, de cooperação, solidariedade e resistência ao imperialismo.

Por Claudio Daniel*

O novo bloco de esquerda na América Latina, iniciado entre 1998 e 2002 com as vitórias de Hugo Chávez na Venezuela e de Luís Inácio Lula da Silva no Brasil já obteve importantes conquistas, como a consolidação de organismos internacionais como a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), a União de Nações Sul-americanas (Unasul), a Alternativa Bolivariana para os povos da Nossa América (Alba) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Estes organismos têm impulsionado diversas ações inovadoras, como os intercâmbios comerciais realizados sem o uso do dólar ou do euro como padrão monetário, as missões de médicos cubanos na Venezuela e em outros países do continente, a venda subsidiada de petróleo venezuelano aos países centro-americanos e a defesa conjunta que esses países fazem da soberania de Cuba, que até hoje sofre os efeitos nefastos do bloqueio norte-americano.

A existência de uma Nova América, que defende suas reservas de gás natural e de petróleo das companhias transnacionais, que recusa a tutela econômica do Fundo Monetário Internacional (FMI), investe em tecnologia e defesa nacional, aumenta os gastos públicos em saúde, educação, segurança alimentar e na qualidade de vida de suas populações irrita profundamente ao imperialismo norte-americano, que responde a essa contestação de sua hegemonia num território que julgava seu quintal de várias maneiras: patrocinando golpes de estado no Paraguai e em Honduras, criando bases militares na Colômbia, reabilitando a Quarta Frota, estimulando ações violentas de grupos fascistas na Venezuela, no Brasil e em outros países, promovendo intensa difamação dos governos e partidos de esquerda pelos meios de comunicação de massa (o Clarín na Argentina, Folha, Estado, Globo e Veja no Brasil etc.) e formando a Aliança do Pacífico, área de livre comercial similar ao projeto da Área de Livre-comércio das Américas (Alca), formado por países que têm tratados de livre-comércio com os Estados Unidos, como é o caso do México, Chile (por enquanto), Colômbia e Peru.

O 19º Encontro do Foro de São Paulo acontece, portanto, num período em que o imperialismo norte-americano está em declínio, mas ao mesmo tempo age de forma agressiva, inclusive no campo militar, na tentativa desesperada de deter a sua inevitável decadência.

No cenário internacional, registram-se as derrotas sofridas pelos Estados Unidos na Síria, onde o Exército Árabe Sírio impõe pesadas derrotas aos mercenários, no Egito, onde foi derrubado o governo da Irmandade Muçulmana, pró-Ocidente, e na Coreia Popular, que manteve a cabeça erguida e conseguiu impedir a agressão norte-americana, deixando claro que tinha condições de responder duramente a qualquer agressão militar.

No Irã, as coisas também não estão fáceis para os sionistas, que ameaçam constantemente o país persa, mas se abstêm de atacá-lo, temendo a sua capacidade de dissuasão. No campo diplomático, fortalece-se a posição dos países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) que conseguiram, entre outras ações, vetar no Conselho de Segurança da ONU medidas que facilitassem uma escalada militar ocidental na Síria, tal como aconteceu na Líbia. Em suma: o imperialismo ainda tem dentes e garras afiadas, mas não está conseguindo impor a sua vontade ao mundo, tal como fazia antes.

É nesse contexto internacional de declínio do império norte-americano e de crise da economia capitalista na Europa e nos Estados Unidos que o 19º Encontro do Foro de São Paulo debateu temas específicos de integração regional, com objetivos de fortalecer a democracia com participação popular e justiça social no continente, a democratização da mídia, a superação da herança colonial, como a ocupação britânica nas Ilhas Malvinas e a submissão de Porto Rico aos Estados Unidos, o combate ao racismo e a todas formas de discriminação étnica, de gênero ou de opção sexual.

A defesa das conquistas obtidas na última década foi um dos temas mais debatidos no encontro, dedicado à memória do presidente Hugo Chávez Frias (1954-2013) e um dos grandes arquitetos da Nova América. Somente no Brasil, nos dois governos de Lula e agora no governo de Dilma Rousseff, 40 milhões de brasileiros saíram da situação de miséria e constituíram uma nova classe trabalhadora (para citarmos Marilena Chauí); o desemprego se mantém na faixa de 5,5%, enquanto na França é de 12% e na Espanha de 26%; e conforme matéria publicada em 04 de agosto no jornal O Estado de S. Paulo, a desigualdade social teve redução de 80% na última década (em comparação com o aumento de 54%, no decênio neoliberal de Collor de Mello e FHC / PSDB).

Também na Argentina, na Venezuela, na Bolívia e em outros países da Nova América há índices surpreendentes de redução da desnutrição, do analfabetismo, da expansão dos serviços públicos, da democratização do acesso ao lazer e à cultura. A nova situação é vista como ameaça pelas classes dominantes, que usam os meios de comunicação de massa como partidos de oposição para enganarem a população e tentarem o retorno às trevas do neoliberalismo, não pensando duas vezes antes de usar a violência, como ocorreu na Venezuela, após a vitória de Maduro, ou no Brasil, durante as manifestações de junho. As classes dominantes latino-americanas estão entre as mais atrasadas, preconceituosas e cruéis do planeta, e temem que os avanços sociais obtidos na última década possam, a médio ou longo prazo, representar um perigo à sua própria dominação de classe.

Exatamente por isso, a troca de experiências, as consultas mútuas e as ações conjuntas dos partidos e governos progressistas da América Latina é de vital importância para a preservação da democracia no continente e para as futuras lutas em direção a um novo socialismo, que o comandante Hugo Chávez chamou de “o socialismo do século 21”. Conforme diz o Documento base do 19º Encontro do Foro de São Paulo: “Os partidos políticos agrupados no Foro de São Paulo têm, portanto, um triplo papel: orientar nossos governos a aprofundar as mudanças e acelerar a integração; organizar as forças sociais para sustentar nossos governos ou para fazer oposição aos governos de direita; e construir um pensamento de massas, latino-americano e caribenho, integracionista, democrático-popular e socialista”.

Como delegado do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) presente no encontro, registro ainda a importância do discurso do ex-presidente Lula no ato político de abertura do Foro, no dia 2 de agosto, em que ele afirmou que o Brasil, como país de maior economia e importância política no continente, tem a responsabilidade de ser o grande impulsionador de um novo modelo de sociedade, que seja uma alternativa aos modelos neoliberais e socialdemocratas fracassados, inclusive no continente europeu.

Lula destacou ainda a importância de os partidos e governos de esquerda serem mais criativos em suas formas de atuação e de criarem novos veículos para se comunicarem com a população, como a internet, como contrapeso à influência do jornal impresso conservador. O ato de encerramento do Foro, no dia 04 de agosto, contou com a presença do presidente boliviano Evo Morales, recentemente vítima de um ato de pirataria aérea na Europa, a mando do governo dos Estados Unidos. Em seu pronunciamento, Morales conclamou os países a se “descolonizarem do racismo, do fascismo, do consumismo”, a serem “mais produtivos que consumistas” e a darem fim “às monarquias e oligarquias em todo o mundo”. A Bolívia, aliás, sediará o 20º Encontro do Foro de São Paulo, na cidade de Cochabamba.

Entre as resoluções finais do encontro, encontram-se a de solidariedade com Cuba, pelo fim do bloqueio norte-americano e pela libertação dos cinco heróis cubanos, mantidos em cativeiro nos EUA; a de solidariedade com os povos da Palestina e do Saara Ocidental, que lutam pela autodeterminação nacional; uma nota de apoio à presidenta Dilma Rousseff, alvo das articulações da direita golpista; resoluções em defesa da soberania da Síria, agredida pelos mercenários pagos pela Agência Central de Inteligência (CIA), e em defesa da soberania argentina sobre as Ilhas Malvinas; nota de apoio ao processo de paz na Colômbia e de saudação ao líder sul-africano Nelson Mandela, entre outras resoluções.

*Claudio Daniel é poeta, editor da revista Zunái e integra o Comitê pelo Estado da Palestina Já.