Francisco Secundo: Do Ceará moleque ao Cine Holliúdy

Francisco Secundo resgata as origens do "Ceará moleque" e afirma que o filme de Halder Gomes reforça estereótipos mas também faz a alegria de muita gente criada numa cultura da "molecagem

A “molecagem do povo cearense” ou o “Ceará moleque” constituem-se em expressões que designam uma interpretação sobre o que faz ser cearense. A dita interpretação indica que ser cearense é ser “moleque”, “irreverente”, “gaiato”, “fuleiragem”, enfim, “fazedor de pouco” e “achador de graça” como algo “bom”, mesmo “positivo”. É esta interpretação que iremos ver no filme Cine Holliúdy do cineasta cearense Halder Gomes.

É razoável afirmar que nem todo “cearense” se acha engraçado ou fazedor de graça. Como sociólogo e estudioso da cultura compreendo que uma “identidade regional” é fruto de um imaginário e memória coletivos que estão irremediavelmente ligados a um contexto histórico e social. Cine Holliúdy demonstra, então, uma intepretação sobre o que faz ser cearense que muito cearense gosta de ver, ao menos, atualmente. Uma interpretação que orienta práticas e que reforça a ideia de uma “irreverência inata” do “povo do Ceará”, a qual assenta raízes em escritos literários, pasquins e crônicas que desde os fins do século XIX apontam um “Ceará moleque” como emblema ou marca que identifica os que nascem ou vivem na “terrinha”. Contudo, tal emblema quando apareceu pela primeira vez (até onde pude apreender por pesquisa) em escritos literários nos fins do século XIX era, na verdade, um estigma.

A primeira aparição da expressão “Ceará moleque” foi na obra ficcional de Manuel de Oliveira Paiva (1861 – 1892), A Afilhada, publicada em formato de folhetim no jornal O Libertador de Fortaleza nos inícios do ano de 1889. Na trama, o apelido “moleque” para designar o “Ceará” aparece na forma de um comentário do narrador. A compreensão era de que Fortaleza nunca fora uma “cidade nobre”, nunca fora aristocrática e, mesmo naquele período, com as poucas mudanças urbanas pelas quais passava, ainda estava longe de ser uma cidade “moderna e civilizada”.

Três anos após a primeira aparição impressa da expressão “Ceará moleque”, ela ressurge no romance A Normalista, de Adolfo Caminha (1867 – 1897), publicado em livro no Rio de Janeiro no ano de 1893. Nesta obra literária, a Fortaleza provinciana e seus habitantes são descritos com desprezo e em um tom pejorativo. No livro de Adolfo Caminha são expostas impiedosamente as “mazelas morais” da sociedade fortalezense da década de 1880 – período de ambientação do enredo. No romance, o apodo “Ceará moleque” possui um sentido pejorativo e aparece na fala de uma personagem que desdenha de um “alcoviteiro” pasquim. O “Ceará moleque”, nesse caso, seria um rótulo para indicar aqueles que prestavam atenção na vida alheia e que insultavam com os outros. Era no que basicamente se constituía, para Adolfo Caminha, o “canalhismo de Província”.

Esse “Ceará moleque” de início não apontava propriamente a ideia de um “povo irreverente e alegre”. O adjetivo “moleque” para o Ceará, ou melhor, para os cearenses, tem significados bem específicos, isto é, de atraso, de não nobreza e de canalhice. Nos anos seguintes à publicação das obras de Paiva e Caminha, o apelido começa a aparecer com mais frequência em várias outras publicações e ocasiões – que aqui não cabe enumerar. E ao longo do século XX, com o movimento modernista nas artes e a valorização de tudo que fosse “popular”, o epíteto moleque foi, por muitas vezes, evocado para designar positivamente um “caráter” alegre e irreverente do “povo cearense”.

Na atualidade, além dos “humoristas do Ceará”, que transformaram a cidade de Fortaleza como uma das únicas no mundo a oferecer shows humorísticos todos os dias da semana, em todo o ano, outros agentes também alimentam essa “cultura da molecagem”, em outras instâncias de produção, como exemplos: o empresário Gustavo Lobo, produtor de humor do estilo stand up comedy aqui em Fortaleza e proprietário de uma grife de camisas com estampas que exploram um “humor nordestino”, a NordWest; a fan page Suricate Seboso no Facebook, criação do jovem Diego Jovino; os garotos do Xafurdaria, um grupo de jovens de Aracati que fazem vídeos de humor e os postam em um canal no youtube. E sem sombra de dúvida podemos elencar agora o filme de Halder Gomes como mais uma produção artística que alimenta esse imaginário e memória coletivos sobre uma cearensidade gaiata.

Por fim, a expressão “Ceará moleque” trata de um estereótipo, e é apenas por estereotipia que se pode falar de um humor nacional ou regional. Por um lado, a “molecagem cearense” é um estereótipo e, por tal condição, é inexato ou não confiável para descrever ou interpretar racionalmente determinadas práticas culturais artístico-lúdicas em uma dada configuração social. Por outro lado, pode haver um “corpus humorístico” reunido no qual se encontra, com algum esforço, um padrão modular e temático. Rui Zink afirma ser possível reunir um ou vários corpora com textos e discursos que configurem certas características próprias.

Cine Hollíudy consegue reunir um corpora de expressões linguísticas que remetem ao regional, a uma “fala cearense”. Reforço de estereótipo ou não, o certo é que uma ruma (muita mesmo!) de gente nascida e criada nesta “cultura da molecagem” gosta de se ver como “moleque”. E agora irá poder se ver assim na tela do cinema.

Francisco Secundo é doutorando em sociologia pela UFC, com pesquisa sobre as relações entre humor, entretenimento e turismo.

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Fonte: O POVO

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