Al-Saadi: De Boston a Beirute, uma comparação sobre "terrorismo"

A mídia ocidental tem duplo padrão quando se trata de “terrorismo”. Dentro de horas, após duas bombas terem sido detonadas na Maratona de Boston, em abril, muitos na mídia tinham batizado o evento de “ataque terrorista”. Entretanto, o atentado do dia 15 de agosto em Rouweiss [subúrbio da capital libanesa, Beirute], que mataram ao menos 24 pessoas, é uma “explosão” que ocorreu em um “bastião do Hezbolá”.

Por Yazan al-Saadi*

Beirute - AFP / Anwar Amro

Em 15 de abril de 2013, no meio da tarde, duas panelas de pressão explodiram em um intervalo de 13 segundos, perto da linha de chegada da Maratona de Boston. Três espectadores morreram, inclusive um garoto de oito anos, e outras 264 sofreram vários ferimentos.

Os envolvidos eram dois cidadãos estadunidenses, irmãos de um histórico checheno-avar, Dzhokhar e Tamerlan Tsarnaev. Dias depois do evento, eles foram caçados pela polícia de Boston. Tamerlan foi morto, enquanto seu irmão mais novo, Dzhokhar, foi capturado e pode ser condenado à morte.

Quatro meses depois, um carro-bomba explodiu no fim de uma tarde, em um cruzamento movimentado, no bairro residencial densamente habitado de Roueiss, no sul de Beirute. Até o momento, 24 (em contagem) morreram, e outros 355 (em contagem) foram feridos.

Um vídeo foi postado quase uma hora depois da explosão, e mostra três homens armados e de capuz branco, das Brigadas Aisha para Missões Externas, assumindo a responsabilidade.

Mas apenas um desses trágicos incidentes foi imediatamente definido como um “ataque terrorista” pelas maiores agências de notícias do Reino Unido e dos Estados Unidos, enquanto o outro foi a “explosão de um carro-bomba”, que representa, entrelinhas, um infeliz, mas, de alguma forma compreensível, ato de violência.

O termo “terrorismo” é fluido, politicamente carregado. Quem o utiliza, quando ele é utilizado, e contra quem ele é usado, tudo está em jogo. Mesmo a evolução histórica da palavra “terrorismo” (nascida do banho de sangue conduzido na República Francesa, após a Revolução Francesa, e agora usada como uma categorização universalmente ambígua, dirigida a atores não estatais) reflete quão potente o termo é.

Quando é usado, hoje, há ramificações significativas jurídicas e militares, que são a ele potência persuasiva. Há inúmeras definições similares e oficiais de vários departamentos governamentais e militares dos Estados Unidos.

O Departamento de Estado norte-americano define “terrorismo” como “violência premeditada, politicamente motivada, perpetrada contra alvos não combatentes por grupos subnacionais ou agentes clandestinos”.

Em um veio similar, o Departamento de Defesa dos EUA define “terrorismo” como “o uso ilícito da violência ou ameaça de violência para impor o medo e coagir governos e sociedades. Terrorismo é frequentemente usado por crenças religiosas, políticas ou outras ideológicas e cometido com objetivos usualmente políticos”.

Do outro lado do Atlântico, o Reino Unido afirma que “terrorismo”, como definido em seu Ato sobre Terrorismo, de 2000, “envolve violência grave contra uma pessoa; envolve danos sérios contra a propriedade; coloca em risco a vida de uma pessoa que não a pessoa que comete a ação; cria riscos sérios à saúde ou segurança do público ou uma parte dele; ou é concebida para interferir seriamente, ou prejudicar seriamente o sistema eletrônico”.

Compreender e estar ciente destas definições dos órgãos governamentais é importante porque informa e formata como a mídia, em tais Estados, categoriza e discute “atos de terror”, quando eles ocorrem.

Depois das explosões na Maratona de Boston, quase todos dentro das grandes agências midiáticas britânicas ou estadunidenses instantaneamente classificaram o ataque de um ato de “terrorismo”. Uma análise breve das notícias de 15 de abril e dos dias seguintes é reveladora.

Um jornalista freelance, Tanveer Ali, que escreveu para Columbia Journalism Review [periódico sobre jornalismo de Columbia], notou que tanto a emissora internacional da CNN e o britânico The Guardian não hesitaram em chamar o evento de um “ataque terrorista” mesmo após a fumaça, os destroços e as partes de corpos foram removidos e, mais impressionante, ainda antes de uma categorização oficial do ataque.

Outros veículos britânicos e estadunidenses, quando não chamaram as explosões em Boston diretamente de um momento de “terror” nos primeiros dias, estavam ou tentando enquadrar o ato como parte de uma conspiração internacional, aplicando seu tropo fatigante de ligar o Islã ao terrorismo, ou estavam revoltados com a hesitação do presidente Barack Obama em usar as palavras “ato de terrorismo” naquele dia.

Mas a verdade da questão é que a insistência quase automática das agências midiáticas estadunidenses e britânicas e dos comentaristas políticos de chamar as explosões em Boston de uma forma de terrorismo é uma questão de identidade daqueles que cometeram o ato e a identidade das vítimas.

Em sua análise crítica da cobertura da mídia para o Guardian, Glenn Greenwald explicou a raiz da questão de forma sucinta:

“Isto é muito mais do que uma questão semântica. Se algo é ou não é ‘terrorismo’ tem implicações políticas muito substanciais, e consequências legais muito significativas, também. A palavra ‘terrorismo’ é, neste ponto, uma das mais potentes em nosso léxico político: ela sozinha finaliza debates, eleva níveis de medo, e justifica quase qualquer coisa que o governo queira fazer em seu nome. É difícil não suspeitar que a única coisa distinguindo o ataque em Boston de Tucson, Aurora, Sandy Hook e Columbine [onde ataques armados de cidadãos estadunidenses, inclusive estudantes perturbados, mataram um grande número de pessoas], para não falar da [doutrina] de ‘choque e pavor’ nos ataques em Bagdá e os assassinatos massivos em Fallujah [ambos no Iraque], é que os acusados dos ataques em Boston são muçulmanos, e os outros perpetradores, não. Como sempre, o que terrorismo realmente significa no discurso estadunidense (seu significado operacional) é: violência dos muçulmanos contra os estadunidenses e seus aliados”.

Estes são os fatos duros, e eles explicam a natureza da cobertura estrangeira na tragédia do sul de Beirute, em 15 de agosto.

Para colocar isso em perspectiva, também é como descrever a explosão na Maratona de Boston como um ataque “contra um bastião democrático”. Apesar do fato de que os perpetradores e o ato em si cabem confortavelmente na definição de “terrorismo” das autoridades dos EUA e do Reino Unido, a cobertura midiática dos veículos britânicos e estadunidenses descreveu-o como “explosão a bomba” de um possível “ataque suicida”.

Além disso, como observou Emily Dische-Becker, crítica da mídia e ex-editora do portal Al-Akhbar Inglês, em Berlim, no Instituto de Precisão Pública, muitas das agências de notícias estrangeiras esforçaram-se muito para incluir a observação de que a explosão a bomba ocorreu em um “bastião do Hezbolá”.

Praticamente todas as reportagens sobre o ataque ao bairro residencial de Roueiss notaram o envolvimento militar do Hezbolá na Síria, então sutilmente inferindo que o ataque foi justificável apesar do fato de que as vítimas eram civis inocentes. Aqueles, mortos, não terão o luxo de serem nomeados e bem cuidados por notícias extensas e humanísticas, infográficos astutos, galerias de fotos doloridas e uma barragem de histórias de acompanhamento sobre os dias seguintes.

Este “contexto” não foi dado pela mídia dominante quando aconteceram a explosão em Boston e outros incidentes similares na passada década. Para colocar isso em perspectiva, é como descrever a explosão na Maratona de Boston como um ataque contra um “bastião da democracia”, possivelmente ligado a invasões brutais e destrutivas e a aventuras sangrentas dos estadunidenses e seus aliados.

Em ambos os incidentes, pessoas morreram e foram mutiladas por atos terríveis. Porém, parece que apenas um é “um ato de terror”, enquanto o outro é apenas um fato corriqueiro. Para reforçar este ponto, é preciso apenas ler a declaração postada no Facebook pela Embaixada dos EUA em Beirute:

“A embaixadora dos EUA no Líbano, Maura Connelly, condena firmemente a explosão de hoje nos subúrbios no sul de Beirute, entre os bairros de Bir al-Abed e al-Ruwais. Ela estende as profundas condolências dos Estados Unidos pela perda de vidas inocentes. A embaixadora Connelly reafirma a condenação dos EUA, nos mais firmes termos, contra qualquer violência no Líbano, e pede a todas as partes que exerçam a calma e a contenção”.
 
*Yazan al-Saadi é um escritor e analista independente que escreve para o portal libanês Al-Akhbar.

Fonte: Al-Akhbar
Tradução: Moara Crivelente, da redação do Vermelho