Meninos, eu vi!

Aldo Arantes acaba de publicar, pela Fundação Maurício Grabois/Anita, sua autobiografia Alma em fogo. Prosa Poesia e Arte reproduz aqui o prefácio, escrito por seu companheiro de mais de meio século de lutas, Haroldo Lima.

Por Haroldo Lima

Alma em fogo, Aldo Arantes

Ao terminar a leitura deste livro, veio-me à mente os versos finais de Gonçalves Dias em seu Y-Juca-Pirama, onde ele diz que um “velho Timbira, coberto de glória”, contava a história de um “moço guerreiro” e “de um velho Tupi”, “e à noite nas tabas se alguém duvidava, do que ele contava, dizia prudente: ‘Meninos eu vi!’ Companheiro de Aldo Arantes há cinquenta e três anos, posso dizer da maioria dos fatos que este livro relata: “Meninos eu vi”. Por isso, este prefácio apresenta também um inescapável aspecto de testemunha e ilustração de acontecimentos conjuntamente vividos.

A trajetória de lutas e a vida de Aldo Arantes, aqui contadas por ele, percorrem período importante da história do Brasil, do final dos anos cinquenta do século passado, passando pelos sessenta, até os dias de hoje. A narrativa centra-se nos episódios que mais diretamente o envolveram, muitos dos quais, como figura central. A forma do escrito ele a anuncia no título do livro, Alma em Fogo, revelador do estado de espírito com que os fatos relatados foram vividos.


Aldo Arantes
 

Aldo começa a se projetar politicamente na juventude, no movimento estudantil do final dos anos cinquenta do século passado. O quadro geral no mundo era de efervescência política e social, e adensavam-se os fatores que iriam conduzir às grandes mobilizações da década seguinte. Ocorrera, em 1959, uma revolução no Caribe, e Cuba sacudiu o Novo Mundo transformando-se em “território livre na América”. Nomes como Fidel Castro e “Che” Guevara tornaram-se conhecidos e incendiaram a imaginação dos povos. Na África, o velho colonialismo foi ferido de morte e nasceram heróis como Patrice Lumumba, Ben Bella, Samora Machel, Nelson Mandela. Nos EUA, multidões de negros e brancos ganharam as ruas, espancaram o racismo, e exemplos como os de Martin Luther King e Malcom X transcenderam fronteiras.

No Brasil, terminara o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, veio Jânio Quadros, com uma política externa independente e uma interna conservadora, e, com sete meses de mandato, renunciou em 25 de agosto de 1961. Os militares disseram que não dariam posse ao sucessor legal, João Goulart – o Jango –, vice-presidente eleito, porque ele supostamente estaria envolvido com a esquerda, tanto que no dia da renúncia estava na China. Era um golpe de direita, perpetrado por generais das três armas que avançaram contra a Constituição. Daí a três anos, esses mesmos personagens dariam o golpe de 1964. Mas, se em 1964 não tiveram qualquer resistência, o ensaio de 1961 despertou espetacular reação.

Aldo Arantes diz neste seu livro que o primeiro dos dois “melhores momentos” de sua vida política foi este. De fato. Aldo tinha tomado posse na Presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) havia pouco mais de um mês. Esteve com o presidente no Palácio do Planalto três dias antes da renúncia e, logo em seguida, como é de seu feitio, agiu rápido, foi parar em Porto Alegre, levando a bandeira da UNE para a linha de frente da resistência que se formava sob o comando do governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola.

O quadro geral era grave. Os três ministros militares declararam que Jango seria preso se pisasse em território brasileiro. E Brizola se insurgiu contra isto. Começou a armar o povo e criou a Cadeia da Legalidade. Alma em Fogo reproduz trechos da ordem recebida pelo Comando do Exército do Rio Grande: Brizola deve ser calado, “realizando-se inclusive bombardeio (do Palácio Piratini, em Porto Alegre) se necessário.” Em nome do ministro do Exército assinou a ordem o general Orlando Geisel.

A situação se alterou quando o general Machado Lopes, comandante do III Exército, sediado no Rio Grande – o maior do Brasil naquele momento –, rompeu com o comando central e perfilou-se em defesa da Constituição. Os demais três Exércitos estavam com o golpe. Só um governador juntou-se a Brizola, o de Goiás, Mauro Borges. O papel da Cadeia da Legalidade, naqueles dias de crise, foi absolutamente crucial. Brizola portou-se como um bravo, foi o timoneiro que não deixou o barco à deriva, o líder que comandou a “virada”. Mas quem sensibilizou a juventude de todo o Brasil, quem conclamou a estudantada a apoiar a “Legalidade”, a participar da luta e resistir ao golpe, quem, do alto de seus 22 anos, fez ecoar pelos mais longínquos recantos o protesto dos jovens, a repulsa ao golpe e a palavra de ordem da UNE de “greve até que a Constituição seja respeitada”, foi Aldo Arantes.

O movimento fez os generais recuarem, Jango tomou posse, mas houve mudança de sistema de governo e implantação improvisada de um parlamentarismo mambembe. Brizola e Aldo ficaram amigos fraternais, até a morte do Brizola.

O destaque da UNE na crise da Legalidade foi o ponto alto da gestão de Aldo, mas seu mandato teve muito mais. Não por acaso, ele é chamado até hoje de “presidente honorário da UNE”. Avultava em seguida, a UNE Volante.

A campanha pelas Reformas de Base ia ganhando respaldo popular e, dentro dela, a UNE sustentava a urgência da Reforma Universitária. Seu Centro Popular de Cultura (CPC) crescia de importância e, nas palavras de Aldo, descobria-se a “cultura como fator de mobilização política”.

A UNE Volante por si só já era um grande fator de mobilização. Quando chegava em determinado local, já encontrava as paredes “pichadas” com o lema “A UNE vem para unir”, como conta Alma em Fogo. A caravana deflagrava movimentação intensa, realizando assembleias universitárias, promovendo contatos políticos, apresentando peças teatrais. Aldo lembra da Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, inteiramente lotada, e, deste episódio, eu me recordo do entusiasmo que provocou a peça A Revolução na América do Sul, de Augusto Boal.

Entre os membros do grupo itinerante, conta Aldo, estava, como “assessor da Presidência da UNE”, um destacado líder da Juventude Universitária Católica (JUC), Herbert José de Sousa, o Betinho. Sua participação dizia respeito a uma situação peculiar que a JUC vivia.

É que a marca de esquerda da JUC, e especialmente a de Aldo Arantes à frente da UNE, elevaram as contradições com a hierarquia da igreja a ponto de Aldo Arantes – naquele momento a liderança mais proeminente não só da JUC mas de todo o movimento estudantil brasileiro – ter sido expulso da JUC.

A presença de Betinho na UNE Volante, como Aldo revela em Alma em Fogo, visava a fazer consultas, entre jucistas e não-jucistas, sobre como proceder quando a possibilidade de fazer política na JUC ia sendo obstruída. É dessa movimentação que surgiu a Ação Popular (AP), como Aldo conta em detalhes neste livro. E o resultado das consultas e dos contatos foi tão satisfatório que, concluída a UNE Volante, quando a AP foi fundada, em 1962-63, já apareceu organizada em quase todo o país e como força hegemônica no movimento estudantil.

A Ação Popular teve uma atividade intensa e positiva na vida do país. Dois fatos realçam o seu papel: foi força expressiva no enfrentamento à ditadura, contribuindo para que a resistência antiditatorial penetrasse fundo e rápido nas camadas juvenis; e reforçou substancialmente o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) num momento dramático da sua existência. E a fundação da AP vem no desdobramento da UNE Volante, iniciativa da gestão de Aldo Arantes à frente da UNE.

O golpe de 1964, com sua obsessão anticomunista, seu palavreado moralista e sua truculência mórbida pôs fim à movimentação renovadora que vinha surgindo na política brasileira. Fez uma razia em tudo o que era progressista, que falasse em povo e em interesses nacionais. Para aquele grupo, basicamente de jovens, que acabara de fundar a Ação Popular, o caminho foi abruptamente fechado. Alguns foram presos, outros passaram um tempo escondido. Aldo Arantes, sua companheira Dodora, também fundadora da AP, e mais Betinho, saíram furtivos pelo Paraguai, e foram parar no Uruguai.

Daí por diante abriu-se nova etapa na vida do Aldo Arantes, a do perseguido político: cerca de doze anos de vida clandestina, três de prisão política. Alma em fogo acompanha esses “ásperos tempos”.

A AP passou por mudanças contínuas e profundas, na teoria e na prática, até os primeiros anos da década de 1970. Seu fio condutor foi a gradativa, constante e discutida aproximação com o marxismo. Houve um debate teórico e ideológico e a organização, ao fim de algum tempo, mudou sua concepção, abraçou o socialismo científico, e mais à frente mudou seu próprio nome, passando a chamar-se Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APMLdoB).

À certa altura, a AP passou por um período chamado de “integração na produção”, que supostamente ajudaria os militantes de origem não-proletária a se “proletarizarem”. Essa experiência frequentemente resvalou para exageros, mas levou muita gente ao campo, ou a fábricas. Aldo Arantes, Dodora e seus dois filhos foram morar em Água Branca, no alto sertão de Alagoas, para onde foram também Gilberto Franco, Rosa e uma filha. E foi aí que Dodora e Rosa foram presas com seus filhos. O espantoso é que a filha de Rosa tinha sete anos, e os filhos de Dodora e Aldo apenas dois e três anos. É comovente saber que Dodora ficava em ambientes absolutamente precários, bravamente, “procurando criar um clima lúdico” para distrair as crianças, por quase cinco meses, que foi quanto durou a prisão. Aldo e Gilberto também foram presos e empreenderam uma fuga, contada com minúcias em Alma em fogo.

Logo depois da fuga, Aldo foi reintegrado na direção. Recordo da hora em que ele entrou em nossa reunião. Seu cabelo tinha sido mudado, para que pudesse “despistar” a polícia, “passar despercebido”. Mas resultou que ele ficou com um corte estranho, que chamava muito a atenção, e mais ainda porque ficou louro, como um estranho precursor de Neymar.

Coerente com seus pontos de vista, a AP se empenhou na preparação de uma resistência guerrilheira. Fez uma Pesquisa de Áreas Estratégicas e iniciou a implantação de trabalho apropriado. Nesse processo, deu-se sua aproximação com o PCdoB, que se intensificou após o aparecimento da Guerrilha do Araguaia. Terminou a AP se incorporando ao PCdoB, em 1973. Aldo Arantes esteve na linha de frente de todas as mudanças políticas e ideológicas havidas na AP. Depois da incorporação, passou a ser, comigo e com Renato Rabelo, da Comissão Executiva do Partido.

Começava aí outra fase na vida política de Aldo Arantes, a de membro e dirigente do Partido Comunista do Brasil, que se estende até hoje e que passou por diferentes períodos relatados em Alma em Fogo.

No episódio conhecido como Chacina da Lapa, quando foram mortos Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Franco Drummond, Aldo foi preso, comigo, Wladimir Pomar, Elza Monnerat e Joaquim Celso de Lima. Neste momento, Aldo e eu denunciamos à Justiça Militar as torturas que sofremos, em cartas posteriormente publicadas na grande imprensa pela primeira vez, naqueles tempos e naqueles termos.

A Anistia levou Aldo de volta à atividade política legal, aberta, e ele chegou à Câmara Federal em 1983. No Parlamento, deixou logo marcas indeléveis, nas denúncias das torturas, no incentivo às conquistas democráticas e pelo fim da ditadura. Empolgou-se e participou do que foi a maior mobilização de massas do Brasil dos tempos modernos: a campanha das Diretas Já. E mais à frente, viveu o que considera ser o segundo “melhor momento” de sua atividade política: a Assembleia Nacional Constituinte.

Todos os que participamos da Constituinte de 1987-1988 temos a lembrança de termos reorganizado constitucionalmente o país, depois de longos anos de ditadura; e de termos feito isso em um processo intensamente democrático. A despeito de muitas dificuldades, foi um momento em que o Brasil foi repensado e diferentes setores sociais apresentaram suas opiniões sobre a Pátria que queriam. Seguramente, foi o período de mais fecunda atividade legislativa do Parlamento brasileiro. E sucedeu que alguns constituintes se notabilizaram pelas contribuições temáticas que deram. Aldo foi um deles.

Como membro da bancada comunista, Aldo Arantes defendeu as posições nacionais e democráticas que caracterizaram nossa bancada. Mas a bandeira que Aldo agarrou com destemor, a ponto de se destacar entre seus pares, foi a da reforma agrária. Fez-se um constituinte da reforma agrária. Com João Amazonas, estruturou a ideia da “reforma agrária antilatifundiária”, que previa módulos diferenciados de propriedade agrária para as diferentes regiões brasileiras. O tema da reforma agrária acirrou os ânimos. Contra ela foi organizada a União Democrática Ruralista (UDR), que chegou a confundir médios e pequenos proprietários. A militância de Aldo foi intensa, e foi considerado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) como “constituinte nota 10”.

A atividade na Constituinte permitiu que os parlamentares, como Aldo e eu, aprofundassem o conhecimento de um colega, já grande líder quando lá chegou, e que iria se notabilizar como o político brasileiro de maior projeção da atualidade: Luiz Inácio Lula da Silva. E a legislatura da Constituinte não terminara, quando, em 1989, uma coligação aparentemente débil se formava com três partidos, PT, PSB e PCdoB, que recebeu o nome, proposto por João Amazonas, de Frente Brasil Popular, e lançou Lula candidato a presidente da República. Como, em 1930, o operário negro Minervino de Oliveira disputou esse cargo pelo Partido Comunista do Brasil, Lula ficou sendo o segundo operário em toda a história do país a candidatar-se a presidente da República. E, mais à frente, tornou-se o primeiro a ocupar este posto.

A candidatura de Lula em 1989 empolgou a Nação. Uma coordenação nacional de campanha foi criada, Aldo Arantes e eu dela participamos. Mas, no segundo turno, Lula foi derrotado por Fernando Collor.

Seguindo sua travessia pela história, Alma em fogo mostra que, no governo Collor, o Brasil foi posto no caminho do neoliberalismo, do desmonte da máquina do Estado, das privatizações, da desregulamentação da economia. Caminho que foi obstruído pela grande campanha Fora Collor, que cresceu com as revelações de corrupção em seu governo.

Nessa oportunidade, Aldo já não estava no Parlamento. Apesar de ter sido o único constituinte goiano “nota dez”, mesmo sendo um embandeirado da reforma agrária na Constituinte, não foi reeleito. Mas participou do Fora Collor como líder popular, em seu estado, Goiás.

Novamente Aldo reorganizava sua vida em torno de uma atividade relacionada com a luta social. Foi ser advogado trabalhista, e atuou no rumoroso processo do assassinato de Expedito Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Pará, onde já tinham sido mortos o grande líder João Canuto e alguns de seus familiares, todos do PCdoB. Pela primeira vez Aldo usava uma toga, emprestada.

Mais à frente, ele voltaria a se candidatar, desta vez a vereador por Goiânia, tendo sido o mais votado do município. Dedicou-se a problemas municipais, como transporte e urbanismo, mas falava tanto dos problemas nacionais que foi apelidado de “vereador federal”.

E eis que na eleição de outubro de 1994, Aldo Arantes voltava à Câmara Federal, no mesmo instante em que chegava à Presidência da República Fernando Henrique Cardoso.

Desde o início de seu mandato, FHC vincou na política econômica de seu governo o rumo neoliberal que seguiu. Postulou uma sequência de “reformas” que, como observa Aldo, eram “na verdade, contrarreformas”, a primeira das quais foi retirar a diferenciação constitucional entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional. Conseguiu. Enveredava, em seguida, pelo caminho das privatizações, as mais simbólicas das quais foram a da Companhia Vale do Rio Doce e a das Telecomunicações Brasileiras, a Telebrás. Os interesses nacionais foram agudamente prejudicados, abusos diversos ocorreram, como o uso das chamadas “moedas podres” e os financiamentos das privatizações pelo BNDES. O governo FHC mirava também a Petrobras e encaminhou ao Congresso um projeto para a quebra do monopólio estatal do petróleo, em um contexto em que se esperava para logo depois a privatização da própria empresa. A quebra do monopólio foi feita, mas a defesa da Petrobras cresceu e sua privatização nem foi proposta.

A oposição a FHC centrou sua luta na crítica ao neoliberalismo, na própria medida em que Fernando Henrique pautou seu governo pela cartilha neoliberal. Movimentações foram promovidas contra as privatizações, principalmente contra a da Vale do Rio Doce, hoje Vale. Em Alma em fogo Aldo Arantes enumera as diversas “separatas” que publicou nesse período, todas de critica ao neoliberalismo, defesa de direitos dos trabalhadores e de conquistas democráticas. Duas dessas separatas remetiam às suas origens, A Universidade na mira do neoliberalismo e Reforma Agrária Já.

Na vida humana, quando surge uma situação que pode significar algum interlúdio – tempo em que não se sabe bem o que fazer –, é sempre bom buscar uma ocupação que tem a ver com o curso momentaneamente interrompido, para não serem criados hiatos na existência. Aldo Arantes soube fazer isso muito bem. Quando não foi reeleito em 1990, após excelente mandato de constituinte, foi ser advogado de causas trabalhistas e depois vereador em Goiânia. Não sendo vitorioso nas urnas de 1998, resolveu fazer mestrado em Ciência Política, na Universidade de Brasília. E o certo é que nunca se afastou do fronte da política mais ampla, e nunca arrefeceu sua presença no fronte partidário, na luta pelo socialismo, como membro do Comitê Central do PCdoB.

O retrospecto de mais de meio século da vida brasileira feito por Alma em Fogo, seguindo as pegadas de Aldo Arantes, chega até o período contemporâneo de nossa história, com Lula e Dilma à frente do Estado brasileiro. Lula vinha de três derrotas em eleições para presidente da República. Aldo Arantes realça como a “experiência das outras candidaturas o levou à compreensão da necessidade de ampliar as alianças para assegurar a vitória eleitoral”. E diz ter sido João Amazonas “um dos que mais o estimularam” na empreitada para a quarta campanha.

De fato, Amazonas tinha Lula em alta conta. Certa vez, comentou que Lula se revelara o melhor filho da classe operária brasileira, e eu tive oportunidade de dizer isso a Lula dentro do Palácio do Planalto, em presença da então ministra Dilma. O velho comunista foi um entusiasta da Frente Brasil Popular, que era de esquerda, formada por PT, PSB e PCdoB. Mas dizia que, nas condições do Brasil, a esquerda sozinha não tinha chances de ganhar uma eleição para presidente. E expôs esse ponto de vista para Lula, parece-me, mais de uma vez.

Diferentemente das suas três primeiras candidaturas presidenciais, o candidato a vice na chapa de Lula para a eleição de 2002 não era tido como de esquerda, como os três anteriores. A chapa era mais ampla. João Amazonas, já na fase final de sua vida, manifestou-se satisfeito com a escolha do José Alencar para companheiro de chapa de Lula.

No início de seu primeiro governo, Lula indicou Aldo Arantes para presidente do Programa de Expansão da Educação Profissional (Proep), tida como umas das áreas mais problemáticas do MEC. Aldo identificou verbas contingenciadas, obras paralisadas, escolas sem funcionar. Cancelou 77 convênios e suspendeu outros 27 – com uma repercussão enorme.

E, então, uma nova flexão ocorreria na vida de Aldo Arantes: o governador de Goiás, Marconi Perillo, eleito em 2002, o indicava para secretário estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos.

Aldo teve um primeiro contato com a questão ambiental no mandato iniciado em 1995, quando esteve em cogitação a hidrovia do rio Araguaia. Defendendo as hidrovias como um expediente justo para dinamizar os meios de transporte no Brasil, Aldo apoiou-se em estudos desenvolvidos pela Universidade Federal de Goiás e mostrou que, no caso específico do Araguaia, “rio novo, sem leito muito definido, que mudava de lugar constantemente”, a dita hidrovia não se justificaria, pela manutenção muito cara que teria em função das necessárias e permanentes drenagens, e pelo sacrifício irrecuperável ao ambiente natural do Araguaia.

Como secretário do Meio Ambiente, Aldo sentiu a necessidade de aprofundar seu conhecimento da questão ambiental. Promoveu conferências regionais em Goiás mobilizando 125 municípios, para preparar a 1ª Conferência Estadual do Meio Ambiente do estado, que aprovou uma original medida de proteção ao meio ambiente, o ICMS Ecológico, pela qual, quanto mais o município crescesse em preservação ambiental mais receberia em percentual do ICMS.

Aldo Arantes foi se envolvendo crescentemente com o tema ambiental. Não apenas em termos individuais, mas procurando levar o Partido e a esquerda ao tema. Com a perseverança que sempre teve, Aldo, já agora um velho comunista, caminhou por veredas que sabia poderiam sensibilizar o Partido. Primeiro foi buscar, na teoria marxista, fundamentos da defesa do meio ambiente. Segundo, procurou contagiar membros da direção e setores amplos com a nova problemática. Terceiro, mobilizou a direção para produzir uma política específica sobre o assunto. E, finalmente, foi se respaldar nas experiências avançadas do mundo, especialmente na chinesa, para confirmar a prioridade contemporânea inquestionável da questão ecológica.

Uma Comissão Nacional do Meio Ambiente foi organizada e seminários diversos promovidos, sobre a Amazônia, as Cidades, as Mudanças Climáticas. Foi sendo criada – e ainda continua – uma consciência ambientalista no seio do PCdoB e em setores próximos. Surgiu o Instituto Nacional de Pesquisa e Defesa do Meio Ambiente (INMA), do qual Aldo é Diretor-Executivo. Condensando tantos seminários, ele organizou o livro Meio Ambiente e Desenvolvimento – em busca de um compromisso, lançado em 2010, com o apoio da Fundação Maurício Grabois. E conseguiu comparecer a diversos encontros internacionais sobre mudanças climáticas, em Cancun, no México, no final de 2010; em Durban, na África do Sul, no final de 2011. E foi à Índia e à China.

A formulação da Política Ambiental do PCdoB coroou o trabalho partidário de Aldo na área ambiental, nessa fase recente. Esta Política, partindo de princípios marxistas e da realidade ambiental, se contrapôs ao desenvolvimentismo predatório e ao preservacionismo ou «santuarismo», e formulou em alternativa o caminho do desenvolvimento sustentável soberano.

Aldo se empolgou quando leu o Informe de Hu Jintao, presidente do Partido Comunista da China, no XVIII Congresso desse partido, que é o maior do mundo e que está à frente da experiência socialista mais avançada da humanidade. O camarada Hu Jintao conclamava a todos os chineses para empreender “vigoroso impulso ao fomento da civilização ecológica”. Disse Aldo: “foi a primeira vez que ouvi falar em construção de uma civilização ecológica”. E socialista.

Por fim, quando conheci Aldo, há 53 anos, ambos éramos jovens dirigentes estudantis, mas ele já era famoso. Na atmosfera abrasada daqueles primeiros anos da década de sessenta do século passado, foi o mais conhecido líder estudantil, o que mais aparecia na “grande política”, ao lado de Brizola, de ministros, de deputados, visitando Jânio. Também era tido como acostumado a arrebatar assembleias. Seu viés político, sua seriedade, coragem, perseverança e sucesso eram reconhecidos e admirados. Identificava-se naturalmente com os anseios populares e com o projeto de Nação brasileira.

A ditadura truncou a trajetória provável que teriam Aldo e muitos outros, no campo político, na esfera acadêmica, no ramo profissional. Arantes encontrou, nos “subterrâneos da liberdade”, a atividade política que era possível e necessária e a exerceu, de forma vitoriosa, no anonimato da clandestinidade, por doze anos; e nas celas das prisões políticas, por mais três. Quando voltou à luz do dia, quinze anos depois, passou pela Câmara Federal, pela Câmara Municipal de Goiânia, fez Mestrado em Ciência Política, acusou em Tribunal de Júri um assassino de líder camponês, tornou-se secretário estadual de Meio Ambiente, diretor de Programa Nacional de Expansão de Educação Profissional, presidente do Instituto de Defesa do Meio Ambiente – tudo na mesma linha de relação com o progresso social, com o interesse nacional, com a luta pelo socialismo.

As novas gerações, ao lerem Alma em fogo, vão conhecer episódios da história do Brasil contados sob o ângulo do povo e por quem os viveu de perto; vão conhecer uma variedade das experiências, dos problemas e das soluções; mas vão conhecer, sobretudo, como, no meio a tanta diversidade, por tempo tão prolongado e arrostando tantas dificuldades, se conseguiu não perder o rumo. Esse é o exemplo de Aldo Arantes.

Livro
Aldo Arantes. Alma em fogo – Memórias de um militante político. São Paulo, Fundação Maurício Grabois/Anita Garibaldi