Elza Monnerat: símbolo de um tempo de lutas

Este é o prefácio à segunda edição do livro Coração Vermelho: a vida de Elza Monnerat, de autoria de Verônica Bercht. Lançado em 2002. estava esgotado, e a Fundação Maurício Grabois, com a Anita Garibaldi lançam agora a 2ª edição do livro, enriquecida com este prefácio de Paulio Abrão e atualizada pelo pósfácio de Priscila Lobregatte.

Por Paulo Abrão

Elza Monnerat

O gênero biográfico se presta a muitos fins. Algumas biografias sem maiores pretensões simplesmente permitem a seu leitor satisfazer uma curiosidade, adentrando em espaços privados da vida alheia que de outra maneira permaneceriam inacessíveis. Este não é o caso do presente livro.

Verônica Bercht percorre outra trilha. Se é bem verdade que, sim, através desta obra podemos conhecer um pouco mais da vida pessoal e das escolhas particulares da militante comunista Elza Monnerat, o fio condutor do texto não será pautado por momentos privados, mas sim por um profundo senso público de comunidade. Não serão as escolhas pessoais, mas sim a participação individual nas ações coletivas que dará a tônica da narrativa. Mas importa destacar que disso não decorre que a “personagem” Elza Monnerat desapareça no coletivo, ocorre o oposto: ao explorar a vida de Elza, Verônica nos permite compreender quão importante foi sua luta para a construção da resistência à opressão, à ditadura e ao capitalismo. Permite-nos, portanto, resgatar o papel que cada um de nós tem, a seu tempo, ante aos desafios que a história nos impõe.

É assim que esta biografia, ao relatar a história de Elza e seu “coração vermelho”, nos abre a possibilidade de melhor compreender a dinâmica política de um tempo de intensas contradições onde alguns – como Elza – optaram por lutar com todas as forças, e os meios de que dispunham, para mudar um mundo que lhes parecia injusto e injustificável.

A vida de Elza funciona, desta feita, como ilustração dos anseios de toda uma geração de lutadores sociais ligados ao Partido Comunista do Brasil. O PCdoB foi uma das organizações mais reprimidas pela ditadura civil-militar brasileira. Elza nunca foi uma grande figura pública do Partido, de modo que se torna ainda mais admirável sua constante postura de luta. Nos tempos correntes, onde uma completa paralisia ideológica se aflige sob muitos setores sociais – ensejando um senso comum de que a realidade social “é o que é”, e não o que os homens dela fizeram –, sua atuação revolucionária abnegada permite-nos relembrar momentos onde a tomada de posição era muito mais custosa em termos pessoais, e onde pessoas como Elza colocaram sua vida à disposição de uma causa.

A história de Elza, portanto, nos alimenta de combustível para seguir em frente na disputa contra a ideia torpe de que uma sociedade não ideológica é possível, de que a neutralidade é desejável e de que o mundo simplesmente é o que é.

É por isso que essa lembrança de lutas que a história de Elza faz eclodir nos chama a atenção para a própria tessitura do espaço político.

Enquanto locus de disputa, o político é sempre instável, permeável, modificável. Resgatar essa dimensão é fundamental para todos aqueles que ousam se indignar, uma vez que é desta constatação de que sim, podemos mudar o mundo, que nasce a energia revolucionária que nos permite transformar aspirações em realidades.

Muitos poderão hoje, ao mirar o retrovisor da história, questionar algumas das escolhas de Elza, de seu partido, ou mesmo da esquerda.

Numa democracia, tais questionamentos são legítimos e muito bem vindos. Não obstante, o que tais questionamentos nunca terão o condão de diminuir é o valor que se deve dar àqueles que acreditam em seus ideais e se colocam à disposição de um objetivo comum, mesmo que tal busca implique graves sacrifícios pessoais. A morte de companheiros, a tortura, o exílio e a clandestinidade foram o preço muito elevado pago por aqueles que ousaram enfrentar a ditadura. Suas escolhas foram as escolhas possíveis, e o mais importante legado que deixaram para as futuras gerações foi a coragem de optarem pelo caminho mais duro, sem jamais abrirem mão de seus ideais.

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em 14 de abril de 2008, reconheceu a história de luta de Elza em uma sessão pública realizada na Praia do Flamengo, no terreno onde fora um dia a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), destruída pelas forças de repressão da ditadura. Naquela oportunidade centenas de jovens se reuniram e puderam testemunhar dois grandes momentos. Primeiro, puderam ouvir um relato bastante sucinto, embora muito emocionante, do que foi a vida e a luta de Elza. Depois, puderam ver o Estado brasileiro se dirigir a Elza (in memoriam) declarando-a anistiada política e oficialmente desculpando-se para com os atos de arbítrio contra ela perpetrados.

O mais relevante naquele momento, seguramente, foi este reconhecimento público de que jamais será lícito ao poder usar da força para restringir a arena política. O exemplo de Elza – quer concordemos com suas lutas ou não – é o exemplo de uma lutadora social irresignada, que jamais se conformou frente à injustiça, que jamais desistiu de lutar, que jamais deixou de sonhar. Esse é o seu legado: a inabalável convicção de que um mundo melhor é possível e de que é nosso dever construí-lo, valendo-nos da forças e dos meios que detemos.

A segunda edição desta importante obra faz jus à memória de Elza e afigura-se extremamente oportuna no atual contexto nacional. Se o espaço político é locus de disputas, a memória também se constitui em política. O Brasil hoje luta contra o esquecimento, buscando por meio da ativação da memória histórica construir um dispositivo de reflexão e de promoção da democracia e dos direitos humanos.

A presente obra que tenho a honra de apresentar permite, portanto, fazer justiça a uma lutadora incansável, mas, como não poderia deixar de ser ante sua tão proeminente trajetória, igualmente contribui para a reconstrução de nossa memória enquanto nação.

Brasília, janeiro de 2012.

(*) Paulo Abrão é Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça