Quando as médicas têm cara de empregada doméstica

Num dos espetáculos mais vergonhosos e chocantes perpetrados por um segmento da classe média, no caso a categoria médica, foi documentado pelos jornais e TVs do país inteiro. Neles vimos um colega, negro e modestamente vestido, atravessando um corredor polonês, sendo vaiado e insultado por médicas e médicos brancos e elegantes. O olhar e a expressão facial do colega nos entristeceram profundamente.

Por Franklin Cunha*, no Sul 21

Como diante desse deprimente espetáculo, pode-se explicar a atuação desses profissionais da saúde física e mental do Ceará? Logo o Ceará, com tão altas taxas de mortalidade materna e infantil que certa vez um médico, Dr. Galba Araújo, tentou diminuí-las criando as Casas de Parto, administradas e atendidas por parteiras dos pobres municípios nordestinos.

Estas modestas unidades, onde as mortes de gestantes e de nascituros baixaram a níveis escandinavos – ou cubanos – foram desativadas e nunca mais tivemos notícias de quaisquer protestos. Os argumentos dos distintos colegas de que a medicina cubana e os seus praticantes são de baixo nível técnico e profissional e que, portanto não servem para nosso país, merecem algumas observações.

A Organização Panamericana de Saúde, repetidamente informa que os quatro países da América nos quais suas populações têm os melhores níveis de saúde são o Canadá, Costa Rica, Chile e Cuba. Para os três primeiros, as explicações são diferentes, mas e para Cuba, país pobre e com muitas restrições de acesso às sofisticadas tecnologias médicas? Ou estas tecnologias não são fundamentais para se manter um povo saudável ou os médicos e o sistema de saúde cubano são tão bons que superam a ausências desses meios técnicos.

Há uma terceira hipótese: os médicos não são os principais e únicos fatores que mantém a boa saúde das populações. Saneamento básico, habitação espaçosa e limpa, boa alimentação, instrução e educação generalizadas, são mais importantes, baratos e eficientes do que médicos, medicamentos e equipamentos para a manutenção da saúde física e mental dos seres humanos em qualquer região do planeta. Com muito menos recursos, a medicina cubana produz resultados muito melhores do que a medicina brasileira e mesmo a dos EUA, país que mantém 40 milhões de seus cidadãos sem nenhuma assistência médica.

Ao cometer a estupidez de dizer que médicas cubanas têm “cara de empregada doméstica”, a jornalista Micheline Borges fez, sem querer, um grande favor. Escancarou o preconceito de tantos e ressaltou o processo de exclusão de negros do sistema de ensino. Aqui, nos acostumamos com médicos brancos e operários pretos e qualquer perspectiva de mudança – cotas em universidades, por exemplo – assusta muita gente.

Quanto a exigência pétrea que nossas entidades médicas exigem para se avaliar os médicos estrangeiros, dispõem-se das seguintes informações: desde 2005 o Conselho Regional de Medicina de São Paulo vem aplicando, ao final do curso, um exame visando à avaliação dos conhecimentos adquiridos pelos novos médicos e sua capacidade em atender com proficiência à população. Formulam 120 questões, considerando aprovados aqueles que acertam apenas 72 (60%). Depois de vários exames realizados entre 2005 e 2011 a taxa de reprovação dos médicos variou de 32% a 61%. Então vemos que 1.098 dos médicos recém formados em SP não conseguiram acertar 72 de 120 questões da prova. Esta é a “qualidade” que alguns querem que seja alcançada pelos médicos estrangeiros que vêm para resolver um crucial problema da assistência médica, a qual é direito de todo o cidadão.

O mais grave é que 88% dos examinados erraram questões sobre como tratar criança com diarréia e desidratação; 88% não souberam tratar uma criança com insuficiência respiratória; 86% erraram um diagnóstico sobre apendicite; 83% erraram diagnóstico de tuberculose; 81% não souberam proceder num caso de paciente com trauma por acidente; 73% não souberam realizar atendimento em recém-nascidos.

Diante de tudo isso, envergonha a categoria médica a afirmação do presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais que orientará os médicos mineiros para não socorrerem pacientes que sejam vítimas de eventuais erros de médicos cubanos.A declaração do presidente do CRM/MG deflagra um claro e cruel estímulo ao crime de omissão de socorro. Trata-se sem dúvidas de um processo de nítida patologia mental.

*é médico