Olgamir Amancia: Além da Lei Maria da Penha 

Cena 1: moradora de área rural do DF pede a palavra, ao fim de palestra sobre direitos femininos, em que ouviu pela primeira vez alguém dizer que sexo, mesmo entre marido e mulher, tem que ser consensual, não pode ser obrigatório. “Se é assim, então, sofri violência sexual, fui estuprada várias vezes pelo meu marido”, conclui ela.

Por Olgamir Amancia* 

Cena 2: mulher, durante evento semelhante, em Planaltina, admite que, para trabalhar fora, teve que pedir “permissão” ao marido, que a queria dentro de casa, cuidando dos filhos.

Cena 3: dona de casa, participante de curso de qualificação profissional na área da construção civil, afirma, na primeira reunião do grupo, que, para estar ali, precisou mentir para o marido: “Se dissesse que viria fazer o curso, ele não deixaria. Acha que esse trabalho é coisa de homem.”

As histórias acima são reais. Foram presenciadas por técnicos da Secretaria da Mulher do DF, que participam dos mutirões de informação, formação e cidadania. Os mutirões integram o programa Rede Mulher, conjunto de ações de proteção e promoção do público feminino, promovidos pela secretaria, principalmente, nas áreas mais carentes.

Mais do que meros registros factuais, as histórias denunciam a cultura patriarcal, machista e sexista, que permeia a sociedade brasileira há 500 anos. Uma herança da civilização ocidental, marcada há milênios pelo poder pátrio.

E é essa cultura que se revela como pano de fundo do recente estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) sobre a Lei Maria da Penha. Editada em agosto de 2006, a norma criou uma série de medidas de proteção e tornou mais rigorosa a punição contra a violência Doméstica.

Apesar disso, segundo o estudo, as taxas de mortalidade das mulheres por agressão não caíram. A proporção de feminicídios (assassinatos de mulheres em função de conflitos de gênero) manteve-se na faixa de cinco casos por grupo de 100 mil entre 2001 e 2011.

Vistos assim, descontextualizados, os números confundem. Passam a falsa impressão de que a Lei Maria da Penha é inócua, ineficaz e improdutiva. Na verdade, a legislação quebrou um ciclo de impunidade. Inibiu a ação dos agressores. Jogou luz sobre a violência Doméstica, antes empurrada para debaixo do tapete. Tirou o problema do ambiente privado e o colocou na esfera pública. E isso, claro, tem reflexo direto no aumento das estatísticas.

Como a lei ainda é muito nova, em comparação aos milhares de anos de dominação machista, seria insensato esperar que os seus resultados aparecessem de imediato. Não se mudam costumes da noite para o dia.

Mas, nesses poucos mais de sete anos de existência, a Lei Maria da Penha tem dado importante contribuição à luta das mulheres por uma vida livre da violência. É uma ferramenta fundamental para se combater os maus-tratos no ambiente doméstico. É uma conquista da moderna sociedade brasileira. E deve ser defendida por todos, homens e mulheres.

O que os números da pesquisa mostram é que, além da lei, é preciso ir mais longe. É necessário adotar medidas de apoio e promoção do público feminino nas áreas de desenvolvimento social, trabalho, Justiça, segurança, saúde e educação, de modo que a mulher alcance o protagonismo que lhe é devido na sociedade.

Um exemplo foi dado, dias atrás, pelo Conselho de Educação do DF, ao aprovar recomendação sobre a obrigatoriedade do ensino dos direitos da mulher na educação básica. A medida, proposta pela Secretaria da Mulher do DF, já começa a ser aplicada em sala de aula.

Ações como essa têm o condão de forjar em crianças e adolescentes – futuros adultos – uma nova mentalidade sobre as relações de gênero. Estimulam a cultura da paz, do respeito e da diversidade. Trazem, no seu bojo, o germe de uma sociedade nova.

A Lei Maria da Penha cumpre o papel de punir crimes contra a mulher. Ações de promoção social reforçam o protagonismo feminino. Uma iniciativa complementa a outra. E as duas se unem para transformar a sociedade, ainda arraigada a valores arcaicos, como o machismo e o patriarcalismo. Miram um futuro em que homens e mulheres, apesar das diferenças biológicas, possam ocupar o seu espaço de maneira igualitária e democrática.

Só assim poderemos ter uma sociedade em que histórias como a da senhora que se descobriu violentada após anos de vida, da jovem que pediu permissão ao companheiro para trabalhar e da mulher que mentiu para fazer um curso profissionalizante sejam coisas do passado.

*Secretária da Mulher do Distrito Federal