Educação infantil cresce com creches e pré-escolas privadas

Determinação da 1ª Conae, de substituir instituições privadas sem fins lucrativos pela rede pública direta, não deve ser cumprida. Alguns municípios também contratam escolas que visam ao lucro.

Por Cátia Guimarães*


Em respeito ao princípio do recurso público para a escola pública, o número de matrículas em creches conveniadas deve ser congelado em 2014, e essa modalidade de parceria deve ser extinta até 2018, tendo que ser obrigatoriamente assegurado o atendimento da demanda diretamente na rede pública". Essa é uma das decisões da 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em 2010. A preocupação dos delegados era com os convênios que municípios de todo o país estabelecem com instituições privadas sem fins lucrativos – filantrópicas, confessionais ou comunitárias – como forma de ofertar o acesso público à educação infantil.

Ano que vem acontecerá a 2ª Conae e tudo indica que a primeira parte dessa determinação, que vence em 2014, não terá sido cumprida. "Esse processo não está acontecendo como as pessoas gostariam", confirma a diretora da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho.

Segundo o Censo 2012 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira (Inep), 36,6% das matrículas de creche, que engloba crianças de zero a 3 anos, no Brasil ainda estão em instituições privadas, contra 63,1%, sob a responsabilidade direta dos municípios. Na pré-escola, cuja faixa etária é de 4 a 5 anos, são 75,3% de matrículas públicas – sendo apenas 1,1% estaduais – contra 24,7% privadas. Ao tratar das instituições privadas, no entanto, o censo não distingue aquelas que têm ou não fins lucrativos nem identifica as que recebem recursos públicos por meio de convênio.

Fundeb: do fundo público para o privado

A educação infantil é um dos poucos segmentos em que o dinheiro do Fundeb – um fundo formado por recursos de impostos arrecadados dos municípios e estados, além da complementação da União em alguns poucos casos – pode ser utilizado para financiar instituições privadas. "É uma anomalia total", opina Nicholas Davies, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em financiamento da educação, que considera a lei 11.494/2007, que institui o Fundeb, inconstitucional, já que o artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece que a distribuição do Fundeb se dará a partir de matrículas nas redes estaduais e municipais. Ele lembra que, segundo a própria lei, o Fundo se destina à "manutenção e ao desenvolvimento da educação básica pública". "É uma aberração jurídica porque essas escolas são privadas", analisa. Mas, segundo o professor, essa não foi a única vitória dos "interesses privatistas" na Lei do Fundeb: o texto garantiu ainda que os profissionais do magistério da rede pública sejam cedidos para trabalhar nessas instituições nos segmentos de creche, pré-escolar e educação especial, sendo considerados como "em efetivo exercício na educação básica pública". E sobre esse tipo de apoio público a instituições privadas não existem cálculos disponíveis.

E ficou pior. O texto da lei estabelecia que o uso dos recursos do Fundeb para a pré-escola, que atende crianças de 4 e 5 anos, só seria permitido até 2011 – para a creche, não havia limitação. Na contramão da determinação da 1ª Conae, foi aprovada, em maio deste ano, pelo congresso nacional, uma Medida Provisória, já transformada na lei 12.837, que prorroga esse prazo até 2016. Na exposição de motivos que acompanhou a MP, os ministros Guido Mantega, do Planejamento, e Aloizio Mercadante, da Educação, citam a obrigatoriedade da educação básica dos 4 aos 17 anos, prevista na Emenda Constitucional 59, como justificativa. A alegação é de que isso significa uma demanda de 900 mil novas vagas, o que, de acordo com o texto, "reforça a urgência de ampliação de rede de atendimento deste público, inclusive por meio de estabelecimento de convênios com entidades sem fins lucrativos". A 1ª Conae também cita a EC 59 como uma novidade que coloca alguns desafios mas, no que diz respeito à expansão, vai na direção contrária à recente iniciativa do governo. De acordo com o texto, são necessárias "a discussão e proposição de diretrizes para as políticas de convênios com entidades privadas, de tal forma que o MEC assuma a coordenação dessa discussão" e "a ampliação da oferta de educação infantil pelo poder público, extinguindo progressivamente o atendimento por meio de instituições conveniadas".

De acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em 2012 essas instituições privadas sem fins lucrativos receberam mais de R$ 1,3 bilhão de recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) para atender a quase 630 mil alunos. Em 2013, o valor repassado foi de R$ 1,6 bilhão para atender pouco menos de 663 mil crianças. São Paulo lidera com folga o ranking dos estados que mais transferiram recursos do Fundeb para instituições desse tipo: em 2013, foram mais de R$ 885 milhões – e tudo indica que esse número deve aumentar, já que, pressionada judicialmente a ampliar a oferta de educação infantil, a Secretaria Municipal de Educação anunciou, no final de agosto, a meta de criar até o fim do mandato 100 mil novas vagas por meio da rede conveniada. Em seguida vêm Minas Gerais, com R$ 192,5 milhões e Rio Grande do Sul, com R$ 108 milhões. Sobre esse assunto, a coordenadora geral de educação infantil da Secretaria de Educação Básica do MEC, Rita de Cassia Coelho, apenas respondeu, por email, que "o Ministério da Educação cumpre o que determina a legislação, que, atualmente permite o custeio pelo Fundeb das matrículas da rede credenciada".

Para Salomão Ximenes, advogado da Ação Educativa, instituição que milita pelo direito à educação pública, essa brecha na lei do Fundeb, que acaba de ser prorrogada, é um retrocesso. "Do ponto de vista jurídico, quem pode fazer a diferença nesse cenário são o governo federal e o legislativo federal", diz. Ele exemplifica com o caso de São Paulo, onde a Ação Educativa, junto com outros movimentos sociais ligados à educação, propôs, entre 2008 e 2010, diversas Ações Civis Públicas requerendo um diagnóstico efetivo sobre a situação da rede municipal de educação infantil e a apresentação de um plano de expansão e qualificação dessa rede. Embora a instituição defenda que isso deve se dar pelo investimento na rede pública, não pode exigir que esse caminho seja adotado, já que a legislação permite o uso de recursos públicos para esse fim. "Na hora em que sentamos com o Ministério Público e outros atores, não temos juridicamente como não aceitar que a expansão de vagas se dê por meio de convênios", explica.

Por que é mais barato?

Embora o convênio com instituições sem fins lucrativos seja amparado pela lei, os próprios órgãos de controle identificam que o resultado pode não ser tão legal assim. Pelo menos foi o que concluiu um relatório do Tribunal de Contas do Município de São Paulo referente a 2008, que acabou dando ênfase aos problemas enfrentados pela educação infantil. O relatório mostra que, já naquele ano, a rede conveniada do município de São Paulo era maior do que a rede própria – uma ampliação de 60% no número de vagas e de 165% nos recursos transferidos de 2004 a 2008. "Apesar da evolução quantitativa observada, os dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de Educação não fornecem elementos para atestar que a Educação Infantil está se desenvolvendo com qualidade, verificando-se falhas no planejamento e no acompanhamento e fiscalização das conveniadas, bem como a não instituição e mensuração de parâmetros de qualidade e indicadores de desempenho", conclui o texto.

Um dos problemas apontados é a carga horária dos professores, que interfere diretamente na qualidade do ensino ofertado. A auditoria feita pelo TCM-SP mostra que, enquanto os professores da rede pública têm carga horária de 30 horas semanais, sendo cinco horas reservadas para "planejamento e preparação profissional", os professores da rede conveniada trabalham 40 horas semanais e têm apenas um dia por mês para atividade formativa. Além disso, o estudo identificou que nas creches públicas, existem, proporcionalmente, mais professores do que auxiliares, enquanto nas instituições conveniadas a relação é inversa. Entre outros problemas, o quadro se completa com a observação de que, nas creches conveniadas foram identificados profissionais sem o grau mínimo de escolaridade exigido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). "As exceções trazidas pela lei do Fundeb e mesmo pela Constituição não podem justificar condições desiguais de oferta de educação para as crianças", alerta Salomão Ximenes.

São diferenças como essas que fazem com que o convênio com instituições privadas sem fins lucrativos seja um caminho mais barato para expandir a oferta de educação infantil. Segundo a presidente da Undime, Cleuza Repulho, os municípios não conseguem seguir a recomendação da 1ª Conae porque a procura por educação infantil está cada vez maior – contando, inclusive, com ações judiciais que garantem vagas por meio de liminares – e o conveniamento aparece como o caminho mais barato. E uma das razões, reconhece, é o fato de essas instituições pagarem salários menores aos professores. A pesquisadora da Unicamp Thereza Adrião aponta outro motivo: a Lei de Responsabilidade Fiscal. "Ao criar uma trava para contratação de pessoal, essa lei atinge diretamente a educação e induz à privatização de sua oferta", diz.

Outro fator de barateamento, segundo a presidente da Undime, é que a maioria das instituições conveniadas não atendem o berçário, que inclui crianças de até 2 anos, o segmento mais caro dentro da educação infantil. "O investimento maior, que é com os bebês – porque a relação adulto-criança é menor, o período é integral, precisa de cinco refeições por dia, incluindo leite e uma série de outros insumos -, está principalmente com o setor público", diz. Como a oferta na rede direta também é pequena, segundo ela, isso significa que, de modo geral, os municípios não atendem a essa faixa etária. Os dados do último Censo do Inep mostram um crescimento de 10,5% da oferta de creche, que engloba crianças até 3 anos, entre 2011 e 2012. Mas, como não é feito o detalhamento dessa faixa etária, não há dados específicos sobre o berçário. De todo modo, como também mostra o Censo, a maior participação do privado está na creche. E, segundo Theresa Adrião, essa é uma "opção de política": "As pré-escolas integram as redes regulares de ensino. Correspondem a apenas dois anos da idade escolar (4 a 5 anos) e, por essa razão, seu custo é menor. Já as creches, ofertadas historicamente por entidades filantrópicas, confessionais e, mais recentemente, por instituições que visam lucro por meio de subsídio público, pressionam para que esse tipo de atendimento se perpetue", explica.

A coordenadora de Educação Infantil do MEC, Rita de Cassia Coelho, defende que, paralelamente à criação de novas creches e pré-escolas públicas, "é preciso aperfeiçoar os mecanismos de acompanhamento e controle social, assim como os instrumentos que possibilitam maior transparência na utilização de recursos públicos". "Estas determinações, também presentes como conclusões da Conae, podem ser mais efetivas para garantir o objetivo comum e maior: o direito à educação infantil de qualidade para todas as crianças", diz. Para Salomão Ximenes, o dilema é que, se as instituições conveniadas de um modo geral oferecerem educação infantil que obedeça a critérios de qualidade e de forma equânime – em relação à formação e condições de trabalho dos professores, espaço para as crianças, equipamentos etc -, elas deixarão de ser uma opção mais barata. "E aí deixam de ter sentido como política", resume.

Para a presidente da Undime, o caminho para solucionar esse impasse é garantir mais recursos para a educação. Cleuza defende a forma de distribuição de recursos do Fundeb, que se baseia no número de alunos de cada município ou estado, mas critica a forma de arrecadação, em que, segundo ela, quem tem menos entra com mais dinheiro. "O desafio da equidade na educação é monstruoso. Crianças do Maranhão, de Alagoas, valem menos que as crianças paulistas? Não. Mas hoje o investimento dedicado à educação diz que sim", resume. A solução? Ela não tem dúvidas: a garantia dos recursos dos royalties do pré-sal – e não apenas dos rendimentos do fundo social do pré-sal, como o governo federal defende – para a educação e a garantia de aplicação, por parte da União, de 10% do PIB nessa área por tempo determinado. "Nós precisamos melhorar a gestão? Perfeitamente, assim como toda empresa privada também precisa. Mas uma empresa privada, quando vende menos, corta funcionário. O poder público, quando arrecada menos, não pode reduzir serviços. Ao contrário, quando a economia não vai bem, as pessoas acessam mais ainda os recursos públicos. Entende como a lógica de mercado é completamente diferente?", compara.

Embora concorde que, no curto e no médio prazo, o convênio com instituições privadas possa ser mais barato, Nicholas Davies diz que, depois do Fundeb, muitos municípios têm recursos suficientes para expandir e manter uma rede própria, mas não faz. Ele defende que o custo não é o único fator determinante nessa decisão: na sua avaliação, a relação com essas instituições privadas sem fins lucrativos é também uma porta aberta para o clientelismo político. "Muitas prefeituras são cúmplices da expansão da rede privada", conclui. Salomão Ximenes concorda. "Há muitos interesses em questão, principalmente políticos e religiosos", diz, apontando outro problema desse processo generalizado de conveniamento: o desrespeito ao caráter laico da educação das crianças. "A escola tem que ser pública porque só assim teremos uma educação republicana, descolada de interesses religiosos e políticos, que são próprios da esfera privada", argumenta.

Privado lucrativo

Cleuza Repulho, no entanto, chama atenção para outro fenômeno de privatização da educação infantil, que a Undime considera inaceitável: os convênios públicos com instituições lucrativas. Embora, segundo Cleuza, esse modelo seja residual no país, ainda existem municípios que o praticam. É o caso de Piracicaba, cidade paulista que mantém o Programa Bolsa Creche. Funciona assim: o município repassa para instituições privadas um valor per capta – R$ 320 para berçário e R$ 220,36 para maternais e jardins – como pagamento à oferta de educação infantil para crianças que aguardavam vaga na rede pública. Esses valores são definidos por decretos municipais revistos anualmente "após criterioso estudo feito pela equipe de Supervisores da Educação Infantil", como informa a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Educação. Segundo a mesma fonte, hoje existem 1.737 bolsas contratadas com 29 escolas conveniadas, das quais apenas cinco são filantrópicas – a outras são instituições lucrativas. Procurada pela Poli, a Secretária de Educação, Angela Jorge Corrêa, não respondeu às perguntas. Além disso, a assessoria de imprensa não informou o valor anual gasto com o Programa Bolsa Creche nem esclareceu se são utilizados recursos do Fundeb, alegando que essas informações precisariam "passar pelas mãos da Secretária" que, no entanto, nunca deu retorno.

Em Piracicaba, o Bolsa Creche é amparado legalmente pela lei municipal nº 5.684/2006 que, no artigo 171, autoriza o município a firmar convênio com entidades filantrópicas, organizações não-governamentais (ONGs) e escolas particulares de educação infantil para crianças não contempladas pela rede municipal. Mas o advogado da ONG Ação Educativa entende que qualquer transferência de dinheiro público da educação para instituições privadas lucrativas é inconstitucional. Segundo ele, como o artigo 213 da Constituição Brasileira define que "os recursos públicos serão destinados às escolas públicas", abrindo uma exceção apenas para "escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas", mesmo que o dinheiro usado em programas como esse não venha do Fundeb, está-se ferindo o texto constitucional.

Perguntado sobre sua posição em relação a esse tipo de convênio, o MEC não respondeu.

O que está sendo feito

A presidente da Undime aponta o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância), do governo federal, como uma das iniciativas que ajudam a seguir os passos do que foi determinado pela 1ª Conae. "Mas ainda não cobre todas as demandas", diz.

A partir de 2011, o Proinfancia passou a fazer parte da segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2). "O governo federal vem investindo, dentro do PAC 2, na construção de novos estabelecimentos de educação infantil, na antecipação de recursos financeiros para custeio de novas matrículas e no assessoramento técnico pedagógico para o funcionamento da educação infantil", informa a coordenadora de Educação Infantil do MEC .

Mas os resultados desse investimento ainda são pouco visíveis. Segundo o site do FNDE, para o exercício de 2013 estava previsto investimento para a construção de mais de 1.500 creches e escolas de educação infantil. O 7º relatório de balanço do PAC 2, no entanto, produzido em junho deste ano com dados de janeiro a abril, informa a construção de apenas 60 "empreendimentos" de creches e pré-escolas.


*Cátia Guimarães é da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)