Filme "Brado da Pomba": Cidadã de Israel, membro do inimigo 

Qual é o lugar de uma mulher muçulmana em um país em que o sofrimento judeu é o tema cultural dominante? Um novo filme israelense conta a história de Hadeel, uma mulher árabe de 27 anos de idade que dá aulas em uma escola judia no centro de Israel, e explora a dificuldade de nunca “pertencer” completamente.

Por Shoshana Madmoni-Gerber*, para a +972 Magazine

Filme Dove's Cry - +972 Magazine

Dove’s Cry [“Brado da Pomba”], o novo documentário de Ganit Ilouz – já em exibição no festival de cinema de Nova York “The Other Israel” [“O Outro Israel”] – conta a história de uma carismática professora árabe em uma escola fundamental judia em Israel. Editado por Sara Salomon, o filme fala tanto das possibilidades quanto das limitações da implementação de um programa de ensino intercultural árabe em uma escola judia.

Dove’s Cry acompanha a jornada de Hadeel, de 27 anos, na duração de um ano letivo inteiro; o filme foca nos seus sucessos e nos seus esforços com os estudantes e colegas judeus, assim como com a sua família. O documentário é um testamento sóbrio sobre as fronteiras rígidas dentro da sociedade israelense e a dinâmica complicada de aceitação e exclusão.

Hadeel é uma mulher muçulmana solteira e uma cidadã de Israel. Ela vive em Wadi Ara, no norte de Israel, e faz o seu caminho diário à cidade de Hod Hasharon, perto de Tel Aviv [na costa oeste] para dar aulas aos seus alunos de sexta série sobre o árabe falado e sobre a cultura árabe.

Esta visão é parte de uma tentativa bem-vinda de incorporar a língua árabe no sistema educacional de uma forma mais holística (e desde cedo nas vidas das crianças). Mas enquanto Hadeel é aceita completamente por seus colegas professores, e bastante admirada por seus estudantes, navegar entre a sua identidade muçulmana e o que é percebido em público como uma cultura do inimigo é frequentemente desafiador.

A nível pessoal, Hadeel é bem quista por todos. Ela é simpática, esperta, engraçada e bonita. Os espectadores não podem evitar se apaixonar por ela. As relações interpessoais que se desdobram na tela são frequentemente acalentadoras e encorajadoras. Até mesmo o mais cínico entre nós pode sentir esperança e otimismo quando vê Hadeel batendo papo com um colega professor sobre os horrores do namoro e fazendo as unhas com outra professora, e uma dança adorável de aniversário dos estudantes.

Para o espectador fora de Israel, parece uma coexistência potencialmente feliz entre muçulmanos e judeus, apesar da complicada situação política. Mas não se passam 20 minutos de filme até que a audiência testemunhe a primeira de muitas cerimônias memoriais seletivas – a realidade bate duro.

Exibição número um: Dia do memorial do Holocausto. Como uma cidadã árabe, Hadeel sente-se excluída da cerimônia memorial. Os vários textos lidos durante a cerimônia recitam a narrativa dos judeus como vítimas, sem deixar qualquer espaço para o reconhecimento de outras vítimas na história, para não mencionar aqueles vitimados pelo sionismo.

O hino nacional é ouvido claramente enfatizando a excepcionalidade do Estado judeu, excluindo os cidadãos israelenses não-judeus. A câmera captura Hadeel em pé, ainda parecendo bastante sozinha. Os outros eventos memoriais não são diferentes. Quando ela tenta expressar seus sentimentos, é rapidamente contradita pela diretora:

Hadeel; “É difícil para mim. Hatikva é uma canção apenas judia. Nós não temos uma música conjunta, mas somos cidadãos deste país, também”.

Diretora: “Me magoa o fato de você não se identificar com a minha dor. Você não pode comparar o Holocausto com nenhuma outra dor”.

Hadeel: “Não foi a minha intenção magoar você quando eu me levantei e todos cantaram o hino nacional. Todos estão olhando para mim. É muito desagradável – eu sinto que não pertenço ao lugar onde nasci”.

Enquanto a ideia de uma educação intercultural soa boa no papel, em um país tão consumido pelas narrativas sionistas (e onde o sofrimento judeu é um tema cultural dominante), o caminho para a aceitação de outras perspectivas não poderia estar mais longe. Hadeel não tem problemas em abordar questões difíceis sobre estereótipos e preconceito contra muçulmanos na sala de aula.

Mesmo quando ela é claramente magoada ao ser chamada de “árabe fedida” por um estudante, ela ainda é capaz de lidar com isso graciosamente. Hadeel é naturalmente otimista, embora em uma altura do filme ela abaixa a guarda, dizendo: “Eu não sei se posso fazer isso por muito mais tempo, estou exausta”.

Depois de um entre muitos treinamentos em abrigos de bombas, um dos professores a questiona: “Você também vai ao abrigo na sua vila?”, “Sim”, ela responde, “nós somos cidadãos israelenses também”.

Enquanto o filme captura muitas dificuldades universais e pessoais, como o fato de continuar solteira frente à pressão da sua cultura tradicional para casar-se, e a necessidade de sentir-se atrativa e aceita apesar de usar o hijab [véu que cobre os cabelos], a principal luta de Hadeel é dedicada a manter a sua identidade cultural e política.

A última cena do filme demonstra o poder de uma realidade política em Israel, uma que frequentemente parece mais estranha que a ficção. Enquanto Hadeel prepara-se para a festa de fim de ano na escola, a celebração é interrompida pelo som agudo de uma sirene, indicando outro treinamento para o abrigo (os estudantes deixam as salas de aula e dirigem-se ao abrigo contra bombas).

Ao tempo em que os alunos se retiram, Hadeel é deixada sozinha – a sua exclusão é ilustrada duramente pela longa cena em que ela está sentada no fundo da sala. Ela então pega lentamente a sua bolsa e sai da classe. Lá, mas nunca completamente “pertencendo”.

*Shoshana Madmoni-Gerber é professora de Mídia e Jornanalismo na Universidade de Suffolk, em Boston, Estados Unidos.

Fonte: +972 Magazine
Tradução de Moara Crivelente, da redação do Vermelho