Os desafios do Chile para Bachelet cumprir seu programa

O segundo turno foi a parte fácil, prevista. O problema para Michelle Bachelet começa agora. As pesquisas mostram que a população quer por esmagadora maioria mudanças profundas em um modelo que por um tempo maravilhou o mundo, mas que agora está desiludindo os próprios chilenos. O legado constitucional do ditador Augusto Pinochet trava decisivamente estas aspirações.

Por Marcelo Justo, na Carta Maior

A Carta Maior conversou por telefone com José Gabriel Palma, catedrático chileno de Economia da Universidade de Cambridge, que esteve em seu país acompanhando o processo político.

Bachelet obteve uma vitória contundente. Agora lhe toca governar um Chile muito diferente daquele que conheceu em seu primeiro período de governo.
No primeiro turno, os partidos que apoiam Michelle Bachelet obtiveram uma maioria muito pequena no Senado, o que lhe permitirá administrar o dia-a-dia, mas que dificulta as poucas transformações que propõe em seu programa e, menos ainda, aquelas que todas as pesquisas indicam serem desejadas pela maioria dos chilenos: cobre, pensões, saúde, reforma constitucional, etc. É uma grande trava que a Constituição de Pinochet deixou, que não só dá uma grande representação às minorias, como obriga maiorias muito altas no Senado em temas fundamentais.

De maneira que Bachelet está em uma situação de querer, mas não poder.
O “querer” ainda está por se ver. A evidência de seu primeiro governo me torna um pouco cético. E a falta de senadores dá a desculpa perfeita para fazer o mínimo. O problema que ela tem e que a rua está cada vez mais militante. Os estudantes, por exemplo, estão muito formes em suas exigências de educação universitária gratuita e de alta qualidade. Há uma pesquisa do Centro de Estudos Públicos, que é de direita, mas que busca ser imparcial, que assinala que 85% quer mudanças profundas na redistribuição de renda, 83% defende a renacionalização do cobre, 74% quer educação universitária gratuita e 67% uma reforma tributária fundamental.

Mas Bachelet tem uma equipe econômica muito neoliberal, que ela mesma escolheu, e que não está nem um pouco de acordo com estas transformações. De modo que essa é uma questão chave. Até que ponto Bachelet poderá usar sua magia para fazer mudanças tão pequenas que acalmem as demandas da rua, mas não mudem nada substancialmente. Ela fez isso em sua primeira presidência. Mas creio que agora vai ser muito mais difícil.

Há uma proposta de reforma tributária segundo a qual as empresas passariam a pagar de 20% a 25% de imposto.
O Chile tem um regime tributário muito estranho no qual, muitas vezes, o que as empresas pagam é só uma parte dos impostos pessoais de seus donos, que podem descontar depois de sua carga de impostos total. Desta maneira, tirando umas pequenas complicações, esta mudança é quase uma soma zero desde um ponto de vista da arrecadação fiscal, pois vem conjuntamente com uma redução da taxa marginal dos impostos de pessoas físicas de 40% para 35%. Esta combinação define Bachelet e muito do que fez até hoje a Concertação, hoje Nova Maioria.

Outro exemplo. Os royalties das multinacionais do cobre. Durante a presidência de Ricardo Lagos houve uma grande pressão para que, via royalties, a renda mineira ficasse no Chile. Lagos terminou fazendo um acordo com as multinacionais para que passagem um royalty que hoje não chega nem a 2% de seus lucros, em troca de novas vantagens tributárias. Isto é, se colocou um royalty só para dizer que havia um. O que mudou? Nada. A renda mineira segue sendo apropriada pelas multinacionais. Nos últimos sete anos, as mineradoras levaram do Chile, a cada ano, lucros maiores que todo o investimento que fizeram desde que chegaram ao país.

A questão é se Bachelet poderá seguir fazendo este “gatopardismo” – aparentar mudar tudo para que nada mude -, ou se, desta vez, as demandas sociais a obrigarão a tentar uma mudança de rumo. Se for assim, enfrentará o problema de não ter a maioria necessária no Senado para isso.

Muita coisa dependerá da evolução da economia. O preço do cobre caiu 30% em relação ao ponto mais alto do boom e se espera que caia mais 12% no próximo ano. A economia pode forçar a marcha dos acontecimentos?
Apesar desta queda, o preço do cobre segue em um nível histórico altíssimo. Essa pressão de baixa vai prosseguir porque há uma superprodução de cobre e uma queda da demanda da China. Mas o preço, insisto, segue sendo historicamente alto. O assombroso é que, ainda assim, a conta corrente da balança de pagamentos passou de um excedente de 3,2 bilhões de dólares em 2009 para um déficit de 9,5 bilhões em 2012. Para este ano, apesar da desaceleração da economia, se espera um déficit similar de 5% do PIB. Em números redondos, em 2012, o Chile gastou quase 50 bilhões de dólares mais do que poderia ter feito se o cobre estivesse em seu preço normal histórico e sua conta corrente em equilíbrio.
Esse “extra” equivale a 3 mil dólares por habitante, ou o PIB per capita de Paraguai, Guatemala ou El Salvador.

Não só o déficit de conta corrente está muito alto, como também as reservas do Banco Central são baixas, e a situação fiscal é frágil. Embora o Chile ainda possa endividar-se, está muito mal preparado para uma queda abrupta do preço do cobre. Se isso ocorrer, o que é perfeitamente possível, a conta corrente da balança de pagamentos passaria a ter um déficit de 18%, muito maior do que ocorreu em 1981 e 1982, durante a grande crise que sofreu o governo Pinochet. Neste caso teríamos uma nova crise econômica e as promessas que Bachelet fez em sua campanha, inclusive se fizer o mínimo, serão impossíveis de cumprir porque elas teriam que ser levadas adiante pelo Estado, e o Estado estará desfinanciado.