Publicado 27/12/2013 09:09 | Editado 04/03/2020 16:27
O desmonte da lapinha de Dona Nazaré Pereira, catequista e mestra de primeiras letras, causava um transtorno de fazer dó, um rebulício na escola e no catecismo. Sofria todo mundo, principalmente ela. Era como se cada peça retirada fosse uma mutilação no corpo do Cristo no calvário embora Ele ainda estivesse na manjedoura. Projetada, pensada e executada ao longo do ano, num piscar da estrela guia eis que se desmoronava aquele castelo de areia. Tão efêmero quanto a solidariedade natalina.
Tudo guardado em caixas de sapatos, rotuladas e numeradas, as imagens do presépio já com chaboques na pintura do gesso era protegida por velhos jornais amassados; os bichinhos de plástico, com atenção secundária, acomodados onde desse na telha. O pano do cenário de fundo, que bem podia ser enrolado, era dobrado até chegar a um formato que coubesse no caritó eivado de naftalina, as tais bolas desinfetantes. Assim, a panorâmica de Belém de Judá era esticada até perder o puído das arestas já encaliçadas pelos dezembros.
Mal Dona Nazaré dava por terminada a tarefa, iniciava os afazeres agendados para o ano vindouro, já pensando na encomenda dos carneirinhos de algodão à Rita Gertrudes, sendo assim a primeira da longa fila de pedidos da artesã. E já providenciava a vinda de conchinhas da praia de Almofala, só serviam as de lá, sagradas, quem sabe não teriam participado do soterramento da capelinha secular da aldeia Tremembé.
Latas de sardinha prestavam-se a canteiros para o plantio do arrozal à margem do lago de espelho, agora descartadas, estavam enferrujadas. Material similar não faltaria, sardinha foi, na verdade, o primeiro enlatado a ir pra mesa do sertanejo. Sardinha Gomes da Costa ou Camurupim Louzada do Acaraú, trunfos acidentais já frequentes na cozinha arroz-feijão.
Já a casinha de madeira e palha de carnaúba, simbolizando a estrebaria, este ano seria descartada, os cupins haviam invadido a estrutura que iria para o fogo. Lá pra setembro encomendaria ao mestre carpina Domingos uma réplica em cedro, sobra de uma velha porta de sacristia substituída por biombo de pevecê. Zequinha, o filho cruzadinho, encarregado da sagrada tarefa, exultante. Época em que Dona Nazaré acionava também o Chico Pequeno, cenógrafo do teatro, para dar os devidos retoques nas marcas das dobraduras do pano pintado. E acentuar um pouco as estrelas, pálidas como estavam não transmitiriam o devido fulgor do pequeno Messias ou mesmo a paz luminosa dos voluntariosos cidadãos.
Os Reis Magos, cunhados, igualmente, em gesso: Gaspar, Belchior e Baltazar, só haviam tomado lugar no presépio lá pelo dia primeiro e percorreram um caminho arenoso entre pedras, adrede preparado, até chegar ao estábulo. A cada ano descolavam-se pedras das coroas, incontinenti repostas pelo artesão Jesus Adeodato e o reparo era tão criterioso que as gemas novas pareciam mais preciosas que as legítimas.
Mas a grande novidade da lapinha da Dona Nazaré Pereira e Vasconcelos era a faixa colocada na cumeeira do casebre. No princípio somente um prosaico “glória a Deus nas alturas”, mas o repetitivo bordão extrapolava e a catequista, fazia anos, reciclava a mensagem. E tão diferente e original surgia que dava a impressão que a mestra catequista passava o ano inteiro maturando a sentença. Que este ano, se viva ainda fosse, arriscamos a deduzir que ela criaria algo assim, tipo: “Paz na África aos negros de boa vontade”. Quando rogaria a Jesus, o artista, um retoque no rosto do mago Baltazar, de maneira que ele ficasse com as feições semelhantes com a do Nelson Mandela. O coração acompanharia o restante.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: O Povo
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