Publicado 17/01/2014 10:37 | Editado 04/03/2020 16:27
Já vai lá pra cinqüenta anos que um trio de produtores do nosso meio artístico brindou os cearenses com um sugestivo presente de Papai Noel: o elepê Pastoril, cantigas de Natal. Os autores da proeza: B. de Paiva, Inácio de Almeida e Augusto Pontes. Já falamos aqui sobre este raro disco, voltamos agora ao assunto e o leitor vai entender e perdoar a razão da repetência. Tal bolachão de vinil contem textos referentes à Natividade na voz de consagrados nomes do rádio e do teatro. Criações de escritores como Eduardo Campos, Milton Dias, Juarez Barroso, Blanchard Girão, Jáder de Carvalho, Filgueiras Lima, Francisco Carvalho… vividas por Hiramiza Serra, Aderbal Júnior, Giácomo Mastroianni, José Humberto, Narcélio Limaverde, João Falcão… e a mais comovente função de todas: “O velocípede” de Moreira Campos, interpretado pela voz impecável de José Domingos Alcântara.
Este conto a que o compadre Zé Domingos deu vida é o drama de um cidadão que, às vésperas do Natal, à beira da piscina de sua mansão, presenteou o filho da empregada com o velocípede que havia comprado para o herdeiro. A euforia da bebedeira sob os protestos da mulher. Negócio fechado, palavra de honra. Dia seguinte, o arrependimento. Toma o presente do moleque, devolve-o ao filho. E continua a bebericar como se nada tivesse acontecido.
Agora a explicação. O que nos fez retornar ao assunto foi o centenário de nascimento do mestre Moreira Campos, ocorrido neste janeiro, no dia de reis, mais precisamente. E uma particularidade sobre o aludido conto. É que anos depois de ter ouvido por inúmeras vezes a versão narrada pelo Zé nos deparamos, em um jornal da terra, com o velocípede do mestre bastante modificado. Resumido, enxugado. E com cenas que não as originais. Quando tomamos ciência de que Moreira Campos levava esta mania ao extremo, a ponto de seus escritos, após anos de constante revisão, chegarem a guardar apenas o essencial.
O jornal O Povo em sua edição de 5 de janeiro traz diversas matérias lembrando Moreira, uma delas, artigo da professora Vera Morais onde aborda esse eterno refazer “no sentido de captar a essência (…) da urdidura, dispensando o que considera acessório”. Essa paranoica busca do sucinto, do exato.
Como se o conto de Moreira Campos fosse seu próprio retrato. Penteado, limpo, bem passado, enxuto. E minguado com o tempo, tal o próprio texto. Resumido, porém na medida exata. Nunca a criatura esteve tão coerente com o criador. A narrativa curta com britânica sisudez, empacotada em fraque e cartola. Assim como o alinhado dono cujo terno escuro caía-lhe bem, destoando apenas do proletário fusca azul. Também parco de peças e beleza, econômico em manobras e combustíveis. Moreira Campos estaria mais para um Perfect, pequeno carro inglês dos anos quarenta.
Se no papel o mestre do conto era lacônico, no falatório foi, aos poucos, imprimindo igual parcimônia de palavras. As inocentes anedotas com que nos brindava nas rodas literárias também iam adquirindo contornos redondos, sem muitos rodeios. Direto ao riso. Moreira era um excelente contador de histórias. Causos vistos e ouvidos nos sertões de Senador e Lavras, nas beiras de praia desta Fortaleza de Assunção. Sem apelações, banalidades; histórias com sabor de memória e cheiro de folclore. Repetia, tipo carro chefe, episódio entre padre e sacristão da freguesia de Frade que ganhara nova toponímias: Jaguaretama ou coisa que o valha. Palavrão ao qual o servo menor não se acostumara a ouvir, muito menos a proferir. O vigário, irredutível, definitivo: “Não quero mais ouvir aqui a palavra Frade, é Jaguaretama e estamos conversados”. Até que, certo dia, bateram à porta da casa paroquial na hora da sesta. O pároco manda ver e de lá o sacristão falou: “Aqui tem dois jaguaretamas querendo falar com o senhor… ó o tamanho das barbas!”
P.S.1- O disco Pastoril foi gravado nos estúdios das rádioos Assunção e Dragão do Mar, Fortaleza, sob a batuta de Mauro Coutinho, num patrocínio do Banco de Crédito Comercial. A capa é de Floriano Teixeira com inserção xilográfica de Estácio dos Santos. Na contracapa texto/apresentação do jornalista Edmundo de Castro, o Dedé Beira d’Água.
P.S.2- Moreira Campos é natural de Senador Pompeu e passou a infância em Lavras da Mangabeira, onde o pai comerciava com algodão, peles e cera de carnaúba. Com a morte dos genitores, veio para Fortaleza, onde passou a morar com o primo Jáder de Carvalho. Frequentou o Liceu do Ceará e cursou Direito na UFC.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: O Povo
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