Para os 100 anos de Dona Elzita

Não pude comparecer à missa pelos cem anos de Dona Elzita, completados em outubro de 2013. Mas como na literatura o tempo se recupera, atualizo a seguir um texto que escrevi um dia sobre ela.  

Por Urariano Mota  

D. Elzita
Elzita Santa Cruz é mãe de dez filhos. O quinto, chamado Fernando Santa Cruz, foi preso em 23 de fevereiro de 1974. Com a prisão de Fernando, dona Elzita percorreu os quartéis do Rio, do Recife, de São Paulo à sua procura. Nada conseguiu. Fez intermináveis cartas sem respostas às autoridades civis e militares, e denúncias, com risco da própria vida. Mas Fernando Santa Cruz nunca mais apareceu. Uma foto do filho, a última, permanece na parede da sala da sua casa, enquanto ela fala, com a voz embargada: “Espero que deem uma luz à história, que contem realmente o que aconteceu com os desaparecidos”.
 
Fora de um parágrafo, deverá ser dito que ela e o marido, nos idos de 1964, tinham uma república democrática em casa, de respeito aos próximos e à diferença. Que tiveram também os filhos que eu conheci, Marcelo, advogado e vereador em Olinda, e Márcia, a quem eu via na Universidade Católica de Pernambuco nos anos 70. Lembro que Márcia era o amor platônico de um amigo de infância, e para ela, em noites solitárias e desertas, ele repetia infinitas vezes as músicas “Não Identificado” e “Três Apitos”. O disco de vinil arranhava. Márcia nada ouvia, porque estava dormindo, naquelas madrugadas, na casa dos pais em Olinda, enquanto meu amigo estava bêbado em uma casa distante na Imbiribeira. Mas isso foge dos limites deste artigo.
 
Importa dizer que as colunas sociais avisaram que na Igreja do Carmo, em Olinda, teríamos a celebração de Ação de Graças pelos 100 anos da matriarca Elzita Santa Cruz. 
E além dos limites da nota da coluna as notícias falaram que Dona Elzita continua, desde os seus 96 anos, uma fundamental luta. Ela continua, acompanhada de militantes, amigos, filhos e autoridades de direitos humanos a reclamar a abertura dos arquivos da ditadura. Dos 96 anos de idade até hoje, o seu aniversário tem sido como uma data nacional, podemos dizer, pois Dona Elzita amplia em uma reivindicação geral um anseio particular, legítimo, como são legítimos e universais os anseios das mães. Quem sabe se nessa abertura não seriam revelados também o dia, as circunstâncias e o lugar onde jogaram os restos de tantos filhos?
 
Numa campanha que o governo brasileiro vinculou há quatro anos nas tevês, para que as pessoas doassem e revelassem o que ainda, aterrorizadas, possuem em casa, Dona Elzita apareceu com um breve depoimento onde recitou um poema. O vídeo está aqui. Com voz firme ela encanta: “Hei de vê-lo voltar, ela dizia, o meu doce consolo, o meu filhinho. Passam-se anos, e o véu do esquecimento baixando sobre as coisas tudo apaga. Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração esmaga”.
 
Um dos filhos vivos, Marcelo Santa Cruz, me disse uma vez que ela é uma grande mulher. E que para os católicos ou cristãos, ela é uma dádiva de Deus. Mas uma semana depois eu respondi a ele, por email, que Dona Elzita, para mim, se assemelhava a um baobá. Não pelo porte, pela altura, pelo tronco ou pela copa da árvore majestosa, porque Dona Elzita é pequena de corpo e magrinha de carnes. A semelhança com a maravilhosa árvore vem da sua resistência. Vem do que o baobá, árvore sagrada para os cultos afros, árvore sagrada para os que amam a vida, retém de homens e mulheres, da memória de homens escravizados e resistentes desde a África. Dona Elzita lembra também o baobá pela fecundidade, pelo exemplo fecundo de mulher, que também nasce quando faz nascer.
 
Os pesquisadores contam que os baobás se desenvolvem em zonas sazonalmente áridas. Os sobreviventes e estudiosos da ditadura sabem que aqueles anos mataram, destruíram, difamaram, mas fizeram crescer algumas pessoas. Como se tais pessoas fossem um baobá. Por isso encerro aqui, deixando para a guerreira esta saudação como um feliz aniversário. Salve, Dona Elzita.
 

Baobá