Último minuto

Cercado, ele, que engraçado, logo agora que o outro Samuel vinha rindo, de frente para ele, e esse Samuel ele compreendia, e como, era um homem cônscio de sua consciência, o melhor Samuel que ele, o Samuel cercado, poderia ser.

Por Urariano Mota
 

Cartaz perseguidos políticos pela ditadura
– Alto! Braços para cima. Se se mexer se fode!
 
Isso, os seus ouvidos mais factuais ouviram. Samuel, o liberto, corria, dando voltas sorrindo com desdém ao cerco do outro Samuel, que a miséria queria prender. Dois minutos e trinta burros segundos tinham passado. Foi então que Samuel compreendeu que mais vale na vida o que não tem valor. Isso ele soube, compreendeu, tateou, pegou, amassou no ar com os dedos da sua mão úmida.
 
– Porra! – ele gritou, com os braços erguidos. – Por que nunca me disseram isso antes?
 
Então ele compreendeu que o bolo de feijão dado e feito por sua mãe, com farinha pesada e composta no afeto, era um valor que rajadas de balas não sacodem. Então ele soube, por aquele bolo de feijão, que dona Maria era um valor mais alto, que apostilas e livros não lhe disseram. Então ele soube, por sua mãe, que a réstia de sol era fundamental, única, inexcedível. Então ele soube que as poucas alegrias que um dia ele dera àquela senhora gorda eram o melhor prêmio, eram o seu maior galardão, a sua ordem ilustre da jarreteira. Então ele redesenhou um avião em papel usado em padaria e o mostrou à costureira e a viu pegar aquela obra com um orgulho mais fundo que o escultor do Moisés não conseguiu romper de suas entranhas. E ele ousou ver aquelas pernas rombudas de varizes. Beijou-as nos pontos mais nodosos. Então ele sentiu o gosto e a textura do chá de capim-santo que recebeu na boca nos dias em que teve febre. Pois o mundo, e o valor do mundo, lhe veio todo no sentido único do gosto. O tato, a visão, o cheiro, o que ele ouvia, o imaginado, o lembrado, o apenas entrevisto na vizinhança do sentido, passavam pelo crisol do gosto. O sabor essencial do ovo cozido, água e sal somente. Então ele viu que esse gosto na sua vida havia sido corrompido. As receitas para a adição de molhos e temperos, o concerto sinfônico, as fórmulas da mais-valia, nada disso tinha mais valor que o ovo com sal e as veias a arrebentar da mulher gorda na ladeira. Então ele a viu costurando sua camisa azul escura, da mesma cor do espaço noturno onde ele viajava, montado num corpúsculo que vinha a ser o dorso da sua mãe gorda. Que concentração e apuro ela punha na máquina, alinhavando, acariciando as costuras, bicuda, compondo a camisa da cor que ela nunca lhe dera! Aquele bico, aquelas bochechas infladas ele conhecia: ela estava zangada, aborrecida. Então, correndo suas varizes, beijando-a, e com as lágrimas a lhe correrem no rosto, em razão de todo o passado de estupidez, ele que certa vez quis fazer daquela natureza a repetição da Mãe revolucionária, ele que a censurava, que tinha repugnância do seu desconhecimento das tarefas necessárias para a construção do socialismo, ele se disse num jorro, “Estúpido! mil vezes estúpido! – Hei, isso é o inferno? Ter sido tão estúpido, é isso o inferno? Saber o erro máximo que se deu e sabê-lo definitivamente sem remédio… Isso é o inferno! Para e por todos os séculos estúpido”, então mais uma vez Samuel correu-a, afogou-a de beijos, e os beijos tinham o calor de suas lágrimas no rosto na praça, porque só então ele a compreendeu: Dona Maria era uma senhora digna, corajosa, agindo como era possível ser naquele meio e naquele tempo. “Estúpido”, e mais Samuel a beijava, ao saber que a gorda estava costurando a sua mortalha com a determinação de quem faz o enxoval do último homem da sua vida. Então ele, repositório daquele amor, daquela despedida, soube o que era o contrário do beijo – era o que ele havia feito, quando dera as costas à Dona Maria. Então ele ergueu mais alto os braços e gritou:
 
– Viva dona Maria!
 
– Cala a boca, filho da puta!
 
– Respeitem a minha mãe, fascistas!
 
Então Samuel, embora sabendo que o tempo lhe era adverso, não porque 4 minutos da sua última vida corriam no passado, mas porque não havia tempo entre o espaço do seu braço e a arma nas costas, pois tinha à sua frente animais com sede e engatilhados, embora tendo essa clara consciência, Samuel soube que mais vale na vida a afirmação do beijo. E soube, ah como soube, na força com que sonhou em pegar na arma, com o peito ardendo ele soube que o amor é revolucionário. A mão que se dirigiu à arma teve a serena convicção de que o mundo só vale a pena se nele couber o amor que beija as pernas estragadas. Que o respeito ao que se ama é o ponto do ponto do ponto. Tentando-se ir além não se consegue ir mais alto. Então ele soube que não se morre pela revolução com o cérebro. O cérebro é canalha, poltrão. Engoliria, amargo, mas engoliria o insulto às mulheres que sozinhas, sem marido, doam-se até a própria destruição por seus filhos. Puta … ah se aquela mulher fosse puta, certamente não teria as pernas arruinadas.
 
– Calado, filho da puta!
 
– Respeitem uma mulher do povo. Fascistas! Fascistas!
 
Samuel gritou fascistas, fascistas, como balas, eram suas últimas balas, que a arma não pôde sacar. Recebeu um balaço no ombro que quase o arranca.
 
– Peguem ele vivo! – ouviu. Mas era tarde. Atarantados, os bravos atiravam em todas as direções. Ele, o Samuel cercado, quis correr para o rio, quis, gostaria. O seu outro, o liberto, conseguiu. Estava debruçado no parapeito da ponte. Olhava o céu, que desce e se abraça com o rio no espaço aberto, largo, fluindo manso do Apolo à Ponte de Limoeiro.
 
– Vem ver que dia, Samuel. Vem.
 
Ao ouvir essa voz cálida, conclamante, ele também ouvia, num contraste soturno, mais próximo, saindo dele mesmo: “como é que se morre num dia assim?”
 
– O rio fala, Samuel. Recife grande e solidária – o outro lhe anunciava, qual marujo na gávea. E este outro, de fato, subia, deslocando-se para o azul. Já então, o “Recife grande, solidária” chegava-lhe grave, caudaloso, como se falado por voz rouca, que se embaraça em golfos de sangue. “Como é que se morre num dia assim?” unia-se ao grave, agora sem controle, cantando junto numa só voz, à capela, para daí passar a um só cantor, aliás, Samuel descobriu, numa só cantora, em véus diáfanos, curioso, véus que deixavam ver um corpo de fêmea sem sensualidade, pois o corpo, a jovem, eram referência muda para a sua voz, dir-se-ia melhor, para a sua canção, em melodia longa que cantada num ponto se estendia a outro ponto, como se fosse uma sucessão de despedidas, um afastar-se cada vez mais para longe. Samuel estava por terra então. Seu corpo se aninhava num leito de flores caídas. Estava a um espaço menor que o seu último minuto.
 
– Engraçado – disseram os policiais. O engraçado que achavam, nos seus risos nervosos, é que ao meterem fuzilaria cerrada em Samuel, ele parecia um boneco em convulsão, vivo e dançando. O terrorista virou um corpo atravessado por descarga elétrica pelo tronco. Que dança engraçada. Porra, bala de 45 tem força. E o bandido insistia em ficar em pé, como se estivesse sapateando, ao ritmo do peito acompanhando-se na cabeça. Aquela dança nem parecia consequência do impacto das balas. Pois, apavorados, tinham enchido de buracos as árvores da praça. Perderam tiros, e o indivíduo na dança. Agora mesmo, ele estava no chão, estrebuchando. Corpo emporcalhado de sangue.
 
Foram devagar para cima, até sentirem um fedor de merda e de carne no açougue. Cautelosos.
 
– Cuidado, comunista tem manha. 
 
– O bandido tá rindo…
 
De fato, o rosto de Samuel sorria. Seus lábios finos e morenos iam aos cantos, compondo uma expressão de paz com os seus olhos vítreos.
 
– Terrorista filho da puta!
 
Os olhos vítreos iluminaram-se. Um baque repentino, brutal, recebeu no crânio. E até mesmo isso teve um gosto, ainda que sua massa encefálica desabrochasse, flor legítima da praça. No dado factual, ele sentiu bocados de sal no mel. Esse gosto veio na dor que não concluiu o seu fim. Os seus olhos, ele viu, embutiram-se em cavernas. Mas isso não era o concreto. O clarão, que assaltou a janela da catedral onde a voz cantava, se deu antes, durante ou depois do esgarçamento do tecido no crânio?
 
– Caga pela cabeça, miserável – isso ainda ele ouviu, longínquo, voz áspera saída de um anão endiabrado, pulando na frente de um aglomerado, distante. Pois Samuel já não mais era, na praça. O outro em que ele se havia tornado alçou voo. Nem mais um só som de rajada o atingiria, porque mais alto se fez o canto do bem-te-vi. E como isso era conhecido! Como lhe eram familiares, íntimos, plasmadores da sua identidade, esse canto e esse voo. Isso se deu antes, durante ou depois do clarão do tiro? Em que ponto preciso Samuel cruzou o seu infinitésimo instante de vida? Porque o clarão se estendeu na lembrança, breve, brevíssima, mas lembrança. O espaço que vai, tão curto, entre o clarão e a bala rasgando o cérebro, mistura-se pelo impacto de luz na moça que cantava com a mudança brusca de cenário, onde Samuel se viu de repente num enleio de cipós na lama, de onde ele sumiu, voou. Quando ele viu o outro Samuel voando, isso também se esgarçou, virou pó, ele era os granulozinhos de pó, da réstia de luz em sua casa na ladeira, e a moça o soprava na palma da mão. Então se fizeram trevas? Difícil. A passagem da vida para a morte, supondo existir uma passagem, não foi uma sucessão de fotogramas com um The End por último. Samuel foi retirado do espetáculo antes do ato final.
 
– Mortinho da Silva – um policial o revirou com o pé.
 
 
Do romance Os Corações Futuristas. Recife, Editora Bagaço, 1999