Da falácia do quarto poder ao laboratório de esperança da AL

Em recentes entrevistas ao jornal Tiempo Argentino e à agência de notícias Télam, da Argentina, abordei a perda de credibilidade da imprensa, os monopólios midiáticos, o discurso falacioso de grupos empresariais sobre liberdade de expressão, a regulação democrática da mídia, redes sociais, meios alternativos e o jornalismo contra-hegemônico na internet.

Por Dênis de Moraes, no blog da Boitempo

 
No ranking das 200 maiores empresas não financeiras do mundo, estão nada menos do que 20 empresas de mídia e entretenimento. Ou seja, 10% do total

A entrevista foi concedida a propósito do lançamento do livro Medios, poder y contrapoder: de la concentración monopólica a la democratización de la información (Editorial Biblos), escrito por mim, Ignacio Ramonet e Pascual Serrano.

Divulgo a seguir a versão traduzida e editada das conversações em Buenos Aires com os jornalistas Javier Borelli e Julieta Grosso. Ao revisá-la, lembrei de uma lúcida observação do mestre Alfredo Bosi sobre a necessidade de levar adiante “o esforço argumentativo para desmascarar o discurso astucioso, conformista ou simplesmente acrítico dos forjadores ou repetidores da ideologia dominante” (1).

No Brasil, o livro Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação foi publicado, em 2013, pela Boitempo Editorial, em co-edição com a FAPERJ.

O livro aponta a perda de credibilidade da imprensa como quarto poder. Por que isso acontece?
Dênis de Moraes: Imaginou-se que a imprensa poderia ser uma espécie de quarto poder moderador, um contrapeso aos poderes legítimos da democracia, capaz de fiscalizar e denunciar eventuais abusos. Mas hoje o que restou desse quarto poder? Ignacio Ramonet assinala em nosso livro que os poderes midiáticos foram confiscados pelo poder econômico e financeiro, e na atualidade o quarto poder não é mais um contrapoder, e sim um poder complementar para manter a sociedade no estado atual de coisas. O chamado quarto poder perdeu credibilidade pela cumplicidade de grandes grupos de mídia com o poder econômico e político, acentuando ambições lucrativas e domínios monopólicos. Isso tem a ver com a constatação de que tais grupos exercem um duplo papel na sociedade contemporânea: por um lado, são agentes retóricos, ideológicos e políticos que defendem o neoliberalismo, as hegemonias constituídas e o grande capital; por outro lado, são agentes econômicos de peso. No ranking das 200 maiores empresas não financeiras do mundo, estão nada menos do que 20 empresas de mídia e entretenimento. Ou seja, 10% do total!

A perda de credibilidade se relaciona ainda a mecanismos de controle ideológico que distanciam a mídia hegemônica do compromisso ético com a informação veraz e do respeito à diversidade cultural. Cabe perguntar: onde estão as classes trabalhadoras nos noticiários dos principais diários latino-americanos? Estão subestimadas, ignoradas ou silenciadas. Apenas nos momentos de crise ou nas tragédias aparecem nas manchetes. O cotidiano das classes populares e as reivindicações comunitárias estão fora das agendas da maior parte da mídia, e isso afeta a sua credibilidade, porque se confundem os interesses empresariais e políticos com o que seria, supostamente, a missão de informar.

A mídia poderia exercer poder sem o apoio da sociedade civil? Que responsabilidade lhe cabe à cidadania na consolidação dos monopólios informativos?
Não creio que à cidadania se lhe possa atribuir responsabilidade. Pelo contrário, ela é afetada pela constante falta de pluralidade nos meios de comunicação. Por mais que, por razões de mercado e concorrência, determinadas demandas da audiência sejam identificadas e incorporadas, são os grupos privados que detêm o poder de determinar o que a sociedade pode ler, ouvir e ver, quais são os atores sociais que merecem estar nas pautas informativas, que enfoques e ênfases devem ser adotados nos noticiários. Quando, onde e de que forma a sociedade foi chamada a opinar, fora das sondagens do mercado, sobre a variedade e a qualidade das informações transmitidas?

A mídia se crê intérprete da vontade geral, não se sabe apoiada em que fundamento crível. Que eu saiba, os meios não têm mandato ou delegação popular para apresentar-se como intérpretes dos aspirações de seus leitores, ouvintes e telespectadores. Claro que é uma mistificação; a mídia é intérprete de suas próprias vontades e interesses, sobretudo os de natureza econômica e política. Na essência, quer permanecer até a eternidade interferindo na definição dos valores e visões preponderantes na sociedade. As consequências mais perversas são o esvaziamento das reivindicações comunitárias nos noticiários, a criminalização de mobilizações sociais e a exclusão dos diferentes pontos de vista da cidadania. Esse processo, historicamente longo, de conformação do imaginário social pela mídia também se aprofundou pela ausência ou inércia dos poderes públicos diante da necessidade de regulação democrática da radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisão). As licenças para operar os canais pertencem ao conjunto da sociedade, e não a grupos monopólicos; são concedidas pelo poder público a empresas privadas por tempo definido e podem não ser renovadas, a critério do poder concedente.

Como descreveria a América Latina em matéria de liberdade de expressão?
América Latina representa hoje um laboratório de esperança para a democratização da informação e da comunicação, apesar do cenário ainda estar dominado por conglomerados midiáticos, quase sempre vinculados a dinastias familiares. Em vários países, há convergências entre governos progressistas e setores organizados da sociedade civil em torno da ideia de que as múltiplas vozes sociais precisam expressar-se livremente. Legislações e políticas públicas tentam reestruturar os sistemas de mídia em bases antimonopólicas e sintonizadas com o direito humano à comunicação.

Refiro-me, especialmente, aos casos de Argentina (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), do Equador (Lei Orgânica de Comunicação), de Venezuela (Lei de Comunicação Popular), do Uruguai (Lei de Radiodifusão Comunitária e a Lei de Serviços Audiovisuais) e Bolívia (Lei Geral de Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação).

Há também a preocupação de estimular a produção audiovisual independente e os meios alternativos e comunitários, através de editais públicos de financiamento e capacitação. Estas medidas enfrentam ferozes campanhas opositoras das corporações midiáticas, que recusam modificações nas normas da radiodifusão, temendo perder influência política e rentabilidade. Não querem pôr em discussão seus privilégios, e para isso não hesitam em distorcer os fatos e sufocar o contraditório.

Um conglomerado midiático poderia argumentar que como o Estado é muito poderoso pode fazer falta um poder equilibrante para garantir a diversidade Como desmontaria esta formulação? Os monopólios de comunicação são sempre maus, sejam privados ou públicos.
É falacioso o discurso de certos grupos midiáticos sobre “liberdade de expressão”. Em verdade, oculta o desejo assumido mas não declarado de fazer prevalecer a liberdade de empresa sobre as aspirações coletivas, impedindo providências antimonopólicas na radiodifusão sob concessão pública, por parte dos poderes legislativo e executivo. Edward Said, um dos grandes intelectuais do século 20, tinha razão ao sublinhar que somos bombardeados por representações midiáticas pré-fabricadas do mundo, que tentam prevenir a crítica e os questionamentos às ideias convenientes ao poder e aos poderosos (2). Qual é a autoridade moral dos grandes meios para falar em “liberdade de expressão”, se com frequência o que mais fazem é restringir a liberdade de expressão dos jornalistas e estabelecer controles sobre as informações que difundem?

Não se trata, de maneira alguma, de defender a estatização dos sistemas de comunicação, nem de submeter as sociedades aos desígnios do governo de turno. É totalmente falsa a dicotomia entre monopólios privados e estatais. Regular democraticamente a radiodifusão em nada afeta a liberdade de expressão. Trata-se de estabelecer – como o faz a Ley de Medios da Argentina – uma divisão equitativa entre três instâncias envolvidas: o setor estatal/público, o setor privado lucrativo e o setor social sem fins lucrativos, independente do poder estatal e constituído por entidades e movimentos comunitários, sociais, étnicos e de gênero, universidades, sindicatos, associações profissionais, etc. Critérios justos e transparentes para concessão de licenças de televisão e rádio são fundamentais, já que a radiodifusão é parte dos bens públicos comuns, e deste modo não pode ser monopolizada por empresas privadas, como se fosse de sua exclusiva propriedade.

Quais são as razões pelas quais, uma vez pulverizados os governos neoliberais na maioria dos países latino-americanos, sobrevivem estruturas que, no caso dos meios de comunicação, reproduzem a lógica de acumulação e lucro tão emblemática da década passada?
Em primeiro lugar, devemos mencionar a terrível herança de décadas de hegemonia neoliberal na América Latina, que realçaram o rasgo histórico de concentração da mídia em mãos de um reduzido número de megagrupos. As ditaduras militares já os tinham favorecido com concessões de canais de rádio e televisão, financiamentos, publicidade oficial e isenções fiscais — tudo isso em troca de apoio político e ideológico. O neoliberalismo aprofundou o desequilíbrio em favor do setor privado. Hoje, na maioria dos países latino-americanos, mais de 2/3 do setor de comunicação estão sob o domínio de conglomerados. Apesar das medidas positivas de governos progressistas e das campanhas de entidades da sociedade civil por uma comunicação democrática, não é simples desmontar um cenário de concentração monopólica de muitos anos. E mais: o poder de fogo da mídia empresarial dificulta o esclarecimento da sociedade sobre a urgência de uma comunicação plural e inclusiva.

A restruturação dos sistemas de comunicação em bases equitativas provavelmente será um longo processo, que dependerá de vontade política, esclarecimento da opinião pública, pressão social, respaldo popular, firmeza diante das reações contrárias e coerência na aplicação de legislações antimonopólicas. A pressão social sistemática é indispensável. Não bastam boas intenções numa arena de disputas tão árduas. Temos que cobrar do poder público ações efetivas, a despeito dos obstáculos e do medo crônico que certos governos ditos “progressistas” sentem de contrariar os grupos de mídia. Um exemplo de pressão organizada é a campanha Para expressar a liberdade, por uma lei democrática de mídia no Brasil, promovida pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e entidades da sociedade civil.

No mundo anglo-saxão existe uma utopia libertária relacionada com o uso das tecnologias de informação como algo liberador em si, fiador da transparência das relações sociais. Por que em Latinoamérica não prosperam visões de mudança como esta e circulam leituras apocalípticas?
As visões apocalípticas estão progressivamente perdendo espaço na América Latina. Talvez de modo mais lento em determinadas áreas acadêmicas, que mantêm concepções teóricas que não dão conta das febris transformações da era digital. Devemos avaliar os matizes que envolvem a expansão tecnológica. As formas de apropriação das tecnologias para usos sociais são um avanço significativo, na medida em que permitem diversificar os modos de expressão, de criação, de sociabilidade, de participação, de informação e de entretenimento. A convergência da internet com a comunicação móvel descentraliza os fluxos informativos e intensifica intercâmbios entre pessoas, grupos e comunidades.

Novas dinâmicas de organização comunitária e ativismo sociopolítico se desenvolvem a partir da utilização de ferramentas e espaços digitais. Mas não percamos de vista que, por maiores do que sejam os benefícios proporcionados, as tecnologias não têm o poder de desfazer desigualdades. Há enormes contingentes populacionais sem acesso ou com acessos bem restritos às tecnologias. Isso tem a ver com a reprodução, no âmbito tecnológico, de graves desníveis socioeconômicos e culturais gerados pela fábrica de desigualdades do capitalismo. Precisamos construir modelos socioeconômicos inclusivos e políticas públicas que universalizem os acessos às tecnologias, entre outras exigências.

A expansão das redes sociais é um aliado importante para recortar o poder dos meios e a circulação de um discurso hegemônico? Fenômenos relativamente recentes como o da Primavera Árabe e o dos indignados em Espanha, ambos disparados justamente pelas redes sociais, instalam uma luz de esperança em torno da democratização da informação, à multiplicação dos pontos de vista?
Sem dúvida. As redes sociais constituem não só um espaço de sociabilidade e interação, como também de circulação informativa e debate cultural. E não somente as redes sociais se inserem nesta perspectiva de maior democratização da informação e da palavra. Há uma explosão do jornalismo em rede. Incluem-se aí projetos contra-hegemônicos, como as coberturas compartilhadas e as agências alternativas de notícias em rede (experiências que focalizo no livro). Esses projetos se estruturam em bases cooperativas, priorizam temas sociais, buscam contextualizar os fatos e oferecer interpretações críticas. Pascual Serrano tem razão ao acentuar que existe uma demanda cidadã por enfoques alternativos à informações e às análises dominantes. Trata-se de desenvolver meios que não se pautam pela obsessão capitalista de rentabilidade como princípio para sua existência. O objetivo é outro: amplificar as vozes das ruas e dos povos, fazer ecoar reivindicações por melhores condições de vida e justiça social. A internet é um canal complementar de difusão, com vantagens apreciáveis: custos relativamente mais baixos, descentralização das fontes, possibilidade de emitir, receber e interagir sem subordinação aos crivos da mídia.

Estes avanços não significam que a internet seja a solução de todos os problemas, porque sabemos que não é assim. Está pendente a universalização de acessos e usos. Devemos considerar a crescente mercantilização do ciberespaço, onde ocorre uma invasão dos bárbaros midiáticos no que diz respeito ao comércio, publicidade e serviços online. E sabemos que o potencial contra-hegemônico dos meios digitais será insuficiente para democratizar a comunicação, sem uma regulação que garanta a diversidade nos meios sob concessão pública.

A internet se apresenta como um espaço com menor regulação, ainda que existam controles por parte das agências de segurança e o predomínio hegemônico do principal buscador de conteúdos [Google].
Essas barreiras são integrantes do mundo múltiplo e contraditório da internet. É uma ilusão pensar que a rede não ficará sujeita a intromissões econômicas, financeiras e monopólicas. Sempre será um ecossistema no qual conviverão, com pesos e objetivos diferentes, todos os atores que nele atuam. Do nosso ponto de vista, comprometido com outra sociedade, outro mundo e outra comunicação possíveis, a internet é potencialmente capaz de aprofundar a variedade informativa e a pluralidade cultural. Mas volto a dizer que não representa o Eldorado. Reflete também o mundo desigual no qual vivemos. O que me parece ser uma novidade é a chance de aproveitarmos seus recursos em favor da cidadania e de um mundo com mais justiça social. Sobretudo, um espaço no qual as manipulações midiáticas podem ser combatidas e denunciadas a todo momento. Agora mesmo muitas pessoas estão organizadas em redes sociais e listas de discussão discutindo temas que não aparecem nos noticiários e denunciando mentiras.

Quando escolhemos as palavras “poder e contrapoder” para o título do livro, foi com o intuito de chamar a atenção para situações que se apresentam como desfavoráveis à liberdade de expressão e ao jornalismo ético e plural, ao mesmo tempo em que sublinhamos a possibilidade da contrainformação, não apenas na internet, como também através de rádios e televisoras comunitárias, da comunicação instantânea por celulares, que favorecem a circulação de conteúdos. Nesse sentido, uma das instigantes lutas a travar é pela contínua apropriação da digitalização com sentido cidadão, crítico e participativo.

Segue pendente o grande problema dos meios alternativos, que é a sua sustentabilidade.
A sustentabilidade representa um enorme desafio. Os meios alternativos são discriminados na partilha da publicidade oficial e não conseguem patrocínios privados em função de suas posições críticas. Têm surgido formas de sustentabilidade como os fundos de contribuição voluntária (crowdfounding), que permitem a qualquer pessoa fazer doações para ajudar a financiar projetos independentes. Mas as doações são incertas e podem não cobrir os custos. Com a crise internacional, houve retração dos investimentos de fundações que contribuíam com os meios alternativas. Creio que o Estado tem um papel crucial no sentido de promover fontes de financiamento específicas para os veículos sem fins lucrativos, através de editais públicos, patrocínios, inclusão criteriosa na partilha das verbas de publicidade oficial e programas de capacitação. Apenas uma ressalva: fomento não pode se confundir com atrelamento dos meios alternativos a esquemas ou estruturas governamentais; a preservação de sua autonomia editorial é essencial, inclusive para assegurar a diversidade de vozes.

Notas

1. Alfredo Bosi, Ideologia e contraideologia, São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 394.

2. Edward Said, Humanismo e crítica democrática, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 95.

*é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da Faperj. Autor, organizador e co-autor de mais de 25 livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012).