Protestos populares na Bósnia podem ser manipulados, diz crítico

“Exatamente 30 anos após a chama olímpica ser acesa em Saraievo, em 1984, a cidade foi novamente incendiada. Nas últimas semanas, manifestantes invadiram prédios do governo em uma demonstração de revolta contra a sua situação social, pobreza rampante, economia moribunda e uma vida política e social estagnadas,” escreve Igor Štiks, pesquisador bósnio-croata, em artigo para o jornal britânico The Guardian.

Bósnia - Sulejman Omerbasic/Demotix/Corbis

No início da década de 1980, escreve o pesquisador da universidade escocesa de Edimburgo, "Saraievo [atual capital da Bósnia-Herzegovina, então membro da República Federal Socialista da Iugoslávia] estava projetando uma imagem do que a União Europeia queria que seus membros se tornassem: prósperos, diversos e seculares, com indústrias eficientes, igualdade social, mobilidade social invejável e crescimento consistente. A União Europeia, como sabemos, não conseguiu corresponder a esta ambição.”

Andrej Nikolaidis, outro escritor bósnio, também em artigo para o The Guardian, pontua que a atual situação no país não se baseia em uma discussão sobre identidades nacionais: “esta é uma guerra econômica. Os protestos de Tuzla são um produto da revolta dos empobrecidos contra a elite política – eles querem saber onde está o seu dinheiro.”

A eclosão dos protestos, em 5 de fevereiro, ocorreu na cidade de Tuzla (a terceira maior do país) e, em seguida, no centro da capital, Saraievo, espalhando-se rapidamente para outras cidades. O desemprego, em quase 30%, as denúncias de má gestão e de corrupção contra o governo de direita do premiê Vjekoslav Bevanda, entre outras questões ligadas à sua política de arrocho estão entre as principais motivações dos protestos.

O governo, forjado após meses de impasse e negociações, foi inaugurado em 2012, e configurado através das divisões étnico-religiosas que marcam a história de conflitos devastadores nos Bálcãs. Em dezembro de 2011, o Partido Croata de União Democrática, de Bevanda, que ainda não havia sido anunciado como premiê, informava que o governo teria 10 ministros: quatro bósnios (47% da população), três sérvios (37%) e três croatas (14%).

Ainda antes das cenas atuais, Štiks menciona o que ocorria na cidade 10 anos após os Jogos Olímpicos, em 1994: “Sarajevo estava em ruínas, a mesma imagem que a Europa pensava ter deixado para trás: uma cidade bloqueada e destruída, vítima de nacionalismo e sectarismo ressurgidos,” uma guerra civil em que a Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) resolveu intervir militarmente, com ataques aéreos.

E é aí que se faz necessária a ressalva de críticos como Stefan Karganović, que pontua a semelhança desta situação com aquela da Ucrânia, onde uma direita fascista e grande parte do resto dos manifestantes acabam atuando a favor da agenda ocidental. No caso da Bósnia, isso significa a instauração de um regime mais favorável, inclusive, à integração do país à Otan. Karganović explica, em artigo para o portal Voltaire, neste sábado (15):

O plano consiste em explorar a crescente insatisfação social – mais que justificada– para provocar o caos total. Esse caos, assim como a ilusão de "uma vida melhor", que a mídia ocidental e os centros de propaganda estimularam na imaginação das massas populares, serão utilizados posteriormente para pôr no poder uma nova equipe de títeres, não só a nível das autoridades regionais como também no poder central.

Segundo o escritor, o objetivo principal é o afastamento do presidente da República Sérvia (não confundir com a República da Sérvia, um país diferente), Milorad Dodik, socialdemocrata, e acabar com a política independente nesta que é uma das entidades que compõem o país de poder descentralizado, Bósnia-Hezergovina, "para instalar uma equipe que permita a inclusão da entidade autônoma sérvia no Estado bósnio centralizado. Os demais objetivos são a incorporação de toda a Bósnia- Herzegovina na Otan e a sua total adaptação às estruturas ocidentais euro-atlantistas." O país é candidato oficial à integração da aliança desde 2010 e também da União Europeia.

Revoltas contra a elite política

Mais 20 anos e, em 2014, Saraievo volta a estar imersa em tensões. Desta vez, entretanto, ressalvam alguns observadores, a população está mais atenta à manipulação das identidades sectárias por elites étnico-nacionalistas, que se beneficiaram das divisões nestes moldes com toda a riqueza dos territórios que controlam, em coordenação com os representantes do bloco europeu. Štiks pondera, sobre as atuais manifestações no país:

“Quase 20 depois dos Acordos de paz de Dayton [de 1995, que encerrou a guerra], parece que as elites locais e os atores internacionais chegaram a um consenso sobre apenas um ponto: como restaurar rapidamente o capitalismo no país. Ainda assim, foram suas privatizações massivas que levaram à virtual desindustrialização completa e à dependência de bens importados e serviços financiados pela escravidão de endividamento dos cidadãos e do seu Estado frágil.”
 
Segundo o pesquisador, as atuais manifestações na Bósnia, que ainda não receberam tanta atenção como as ucranianas, por exemplo, diferem muito das vistas em várias cidades europeias atualmente. Trata-se da revolta de toda a população “sujeita ao empobrecimento econômico, à devastação social e à destituição política,” diz.
 

“Nisto, a Bósnia é a imagem do futuro da Europa: Populações ingovernáveis, exauridas pelas medidas de austeridade e deixadas aos seus próprios meios depois do colapso do que resta do Estado de bem-estar social, sem perspectiva de crescimento, gerido pelas elites de legitimidade dúbia ou sequer existente, que mobilizam uma polícia de armas pesadas para proteger a si mesmas contra cidadãos comuns.”

Reação popular

Esta é mais uma imagem dos efeitos devastadores das políticas de arrocho espalhadas por grande parte da Europa em tempos recentes, como se tratassem das melhores receitas para enfrentar a crise criada justamente pelo sistema capitalista: os cortes nos gastos públicos, especialmente sociais, empobrecem a população alijada do processo de decisão – conduzido por tecnocratas blindados – e aprofundam uma situação insustentável.

Mas o pesquisador nota a existência, assim como acontece em países como Portugal e Espanha, de movimentos populares em processo de afirmação para fazer frente a estes cerceamentos. No caso da Bósnia-Herzegovina, assembleias populares, ou plenárias, têm sido estabelecidas para fazer propostas aos governos locais.

“Estamos falando de pessoas comuns, que estão famintas, mas que estão, ao mesmo tempo, determinadas a lutar por uma vida melhor, apesar dos obstáculos institucionais. Não estão apenas gritando slogans sobre como deveria ser uma democracia, mas estão colocando a democracia participativa em prática,” através da luta pela justiça social, pela igualdade e pela democracia.

Mas a resposta europeia às movimentações populares ainda define o progresso da situação, lembra o pesquisador. “Será que a Europa vai esforçar-se por apagar a chama, apenas para vê-la reacender-se em algum outro canto do continente, muito em breve, quando já poderá ser tarde demais?,” indaga, em referência às consequências catastróficas de outrora, como em 1994 e, até mesmo, na Primeira Guerra Mundial.

Além disso, o questionamento sobre a posição ocidental para aproveitar-se mais uma vez da insatisfação social, direcionando o seu desenrolar para cumprir suas agendas geoestraégicas e políticas, também fica sobre a mesa.

Por Moara Crivelente, da redação do Vermelho,
Com informações da rede Voltaire e do The Guardian