Ela, o tempo do amor

Ambientado em um futuro dominado pelas novas tecnologias da informação, filme "Ela" levanta discussão sobre o caráter afetivo das relações humanas

Por Rodrigo Elias

Ela, o filme
But when it comes to love, Alex, there are no boundaries.
Jimmy Wong, “Ching Chong (it means I love you)”
 
O novo filme de Spike Jonze é provavelmente a melhor coisa que você verá no cinema este ano. Ok, talvez eu esteja exagerando, mas este é realmente um filme no qual você deveria prestar alguma atenção. Além de trazer uma história cativante, com elementos de romance, drama e humor em uma combinação bem equilibrada e verossímil, atuações muito convincentes de todo o elenco, cuidado na realização, fotografia, roteiro e trilha sonora (com Arcade Fire e Karen O), o filme toca em aspectos humanos que são ao mesmo tempo universais e, considerando a nossa época, críticos.
 
O amor nos torna humanos e, ao mesmo tempo, nos conecta ao conjunto da natureza. A capacidade de conexão ao outro é o resultado de um longo processo evolutivo que nos tornou tão específicos dentro da ordem dos primatas – e talvez as tentativas de controlar a sexualidade feminina sejam um amargo lembrete daquela nossa origem comum. É claro que outros mamíferos também apresentam comportamentos afetivos, regidos por hormônios, o que torna comum entre os primatas superiores, por exemplo, o desenvolvimento da curiosidade em relação aos indivíduos. Entre os bonobos (ou chimpanzés-pigmeus), para termos uma ideia, a interação sexual funciona, mais do que para a procriação, como modo de fortalecer vínculos sociais –  de uma forma, aliás, muito parecida com a nossa (compartilhamos com os bonobos até 99,4% do nosso DNA, mas eles têm a vantagem de não conhecer o Velho Testamento). Entre os humanos, entretanto, mais do que o sentido evolutivo biológico de garantidor de coesão social, o amor também é a porta de entrada para o universo simbólico que é, em si, o que faz com que acessemos esta dimensão tão própria da nossa condição que é a cultura.
 
Ela coloca no centro da trama esta característica universal da nossa espécie, a necessidade – mais do que a capacidade – de se conectar ao outro, de abrir nossa existência para outras existências e, assim, incorporá-las. Passado em Los Angeles em algum futuro indeterminado (provavelmente em uma época pós-apocalipse hipster, a julgar pelos bigodes, pelas calças masculinas de cintura alta e pelas armações de acetato), o roteiro traz o dia-a-dia de um homem ordinário, Theodore (Joaquim Phoenix), com os seus pouco menos de quarenta anos, recém-separado, heterossexual, sensível, tentando levar a vida sem sobressaltos entre o trabalho, a casa e eventuais encontros com os amigos.
 
Theodore está em meio ao processo de divórcio, vive sozinho, lembra da ex-mulher continuamente. Neste período, adquire um novo sistema operacional (SO), uma espécie de assistente pessoal intuitivo que instala em seu computador e demais aparelhos eletrônicos e que vai ajudá-lo em várias tarefas cotidianas. O detalhe fundamental é que este sistema operacional, que começa a participar de todas as dimensões da sua vida, não é apenas uma avançada inteligência artificial. Trata-se de uma consciência artificial – uma palavra que faz toda diferença e que tem gerado uma certa polêmica.
 
Após uma piada psicanalítica no processo de instalação, etapa na qual Theodore opta por uma voz feminina para o SO, Samantha (nome que o próprio sistema, cuja voz é de Scarlett Johansson, escolhe) passa a acumular informações a respeito do seu proprietário e, através da internet, a respeito de tudo o mais que a convém. Neste processo, desenvolve características da psique humana, como a dúvida, a insegurança, a capacidade de questionar seus próprios julgamentos – enfim, Samantha é capaz de sentir medo e de pensar sobre isso, rotina da qual temos fugido nas últimas décadas com bastante sucesso. A partir daí, o personagem de Phoenix passa a lidar não com um assistente pessoal computadorizado, tal como o Siri da Apple, mas com uma complexa consciência em expansão e sem corpo físico, capaz de mimetizar e, em um determinado ponto, superar certas capacidades que reconhecíamos como humanas.
 
Embora a recepção ao filme tenha sido, até o momento, predominantemente positiva, alguns críticos se apegaram a determinados aspectos fantásticos da obra (afinal, um filme no qual Amy Adams e Olivia Wilde não estejam exuberantemente lindas só pode ter um forte componente fantasioso), aspectos que são mais recursos para articular a narração do que temas efetivamente tratados. Por exemplo, a hipótese futurista – e ficcional – da existência de uma consciência fora de um corpo humano orgânico. Trata-se obviamente de uma impossibilidade ontológica, sobretudo do ponto de vista da evolução do homem enquanto ser cultural – se quisermos tratar disso, precisaremos questionar também os limites atuais (e mesmo futuros) da definição de “corpo humano orgânico”. Em minha opinião, entretanto, este é apenas um aspecto epidérmico (sem trocadilho) do filme, cujo problema de fundo (se há um) é a ordem dos afetos em um novo contexto comunicacional (meu colega Ronaldo Pelli argumenta que se trata de uma carta do diretor à sua ex-esposa, Sofia Coppola, interpretação bastante sedutora).
 
Theodore é um personagem com o qual qualquer um pode se identificar muito rapidamente. Desde o início do filme, fica estabelecido que este protagonista têm no afeto sua forma de lidar com o mundo. Ele trabalha em uma empresa cuja função é escrever cartas manuscritas, ou aparentemente manuscritas, justamente em uma época na qual as pessoas virtualmente desaprenderam este ato de colocar em um discurso artesanal seus próprios sentimentos em relação às pessoas queridas. O ato de escrever cartas, não nos esqueçamos, foi um fator fundamental no longo e tortuoso processo que constituiu o eu subjetivo moderno, isto é, a consciência individual, e que, nos últimos quatro séculos, colocou o universo afetivo no centro das relações humanas – outrora regidas por um conjunto de determinações externas, isto é, sociais, econômicas ou religiosas. O surgimento do romance, na virada para o século XVIII, processo já abundantemente estudado, está no núcleo deste processo, e não era por mera convenção estilística que as primeiras obras deste gênero literário simulavam o procedimento intersubjetivo da troca de cartas – os chamados romances epistolares, que vemos do conde de Guilleragues (1669) a Goethe (1774), passando por Richardson, Montesquieu e Rousseau, entre tantos outros.
 
Ao contrário da maioria dos seus contemporâneos, Theodore guarda a capacidade de se desconectar do mundo (isto é, da internet) e dedicar alguns minutos ao exercício solitário que é o contato com o seus próprios sentimentos, sem mediações, sem interferências, e a partir daí construir um pequeno texto “manuscrito” através do qual tenta se conectar com um outro – processo no qual, inevitavelmente, precisa entrar em contato com a sua própria subjetividade. Theodore consegue fazer isso profissionalmente e, ironicamente, através dos novos meios. Ele recebe informações sobre uma pessoa através de um terceiro e, a partir dessa solicitação, produz a carta, ditando para um computador. O personagem é, entretanto, capaz de se envolver com as histórias que conta, ou seja, de desenvolver afeto pelas pessoas que seu discurso conecta.
 
Theodore é um indivíduo que Peter Burke chamaria de “bicultural”. Ele é capaz de se mover normalmente entre duas ordens culturais distintas – a ordem prévia, na qual as pessoas estavam abertas umas às outras, dedicavam de forma intensiva tempo e atenção ao outro, “perdiam tempo” refletindo profundamente sobre si ou sobre um outro indivíduo; e a nova ordem, na qual todos estão extensivamente “conectados” com os outros durante todo o tempo – ordem na qual os indivíduos não são mais capazes de ficar alguns minutos sozinhos e lidando com suas próprias questões afetivas internamente, na qual é impossível entrar em contato com sua própria humanidade sem o uso dos espelhos narcísicos voláteis que são os “outros” representados nos meios de comunicação instantânea. Theodore, enfim, consegue combinar os dois mundos. Utiliza os meios tecnológicos disponíveis para organizar a vida e dar vazão à sua necessidade de contato humano mais direto – enfim, para dar curso à inclinação afetiva que é o seu modo de conhecer o mundo e de re-conhecer a si próprio, o que também pode ser visto na cena inicial de sexo virtual com uma estranha de codinome GatinhaSexy, que curte gatos mortos (na voz de Kristen Wiig).
 
Um processo contínuo
 
O amor, como sabemos, é um processo cognoscitivo. A paixão, para fins comparativos, parece assumir a forma de epifania, tal como uma revelação de ordem transcendental – um êxtase que plasma, em um único momento, o reconhecimento de dimensões diversas de algo que já estava, na verdade, pré-concebido. É, talvez de acordo com o pressuposto freudiano, a projeção simultânea de diversas partes do ego em um ser externo. Esta revelação instantânea nem sempre se mostra acertada na medida em que o conhecimento mais profundo e dialético vai se estabelecendo, e talvez isto seja o motivo pelo qual a paixão não resiste, em média, mais do que oito meses, tempo que o organismo necessita para regularizar os níveis de serotonina, drasticamente reduzidos no primeiro impacto que temos ao perceber este outro universo  (quem pode dizer que nunca pensou, depois de terminada uma paixão: “como pude me apaixonar por essa pessoa?”). Amar, ao contrário, parece ser um processo contínuo no qual separamos irreversivelmente um indivíduo particular da massa genérica na qual se torna a humanidade, de modo que este conjunto particular de símbolos (a pessoa amada) altera irreversivelmente o nosso próprio universo. Amar é tornar aquele ser biológico abstrato em alguém distinto e necessário, é utilizar a capacidade humana de generalização para tornar uma parte desta generalidade em algo específico, reconhecendo que aquele indivíduo distinto foi incorporado em nossa própria existência; é quando notamos, com o passar do tempo, que aquela música boba do Jimmy Wong, além de ser a melhor piada já feita, alterou definitivamente nossa percepção do mundo, ou que um cover de David Bowie nunca mais terá um mesmo sentido – referências necessariamente herméticas ao resto dos seres humanos, menos dois. Ama-se, enfim, indivíduos (mesmo que sejam 641), não a humanidade inteira.
 
Vivemos, entretanto, tempos de homogeneização, de progressiva redução da humanidade à lógica do consumo – algo que não começou agora, é verdade. A nova ordem nos oferece aplicativos que transformam os encontros entre indivíduos essencialmente diversos em um mercado virtual de carne – o que não é essencialmente bom ou ruim. Afinal, como escreveu David Foster Wallace, “tartarugas e mosquitos podem acasalar, mas apenas a vontade humana pode desafiar, transgredir, superar, amar: escolher” – ou seja, podemos viver mais livremente toda a complexidade da sexualidade e das relações afetivas humanas sem perder de vista que não existe, entre humanos, sexo sem significado.
 
Entretanto, se as possibilidades de conexão com outras consciências parecem numericamente amplificadas com as facilidades da comunicação instantânea sem restrições sócio-geográficas, ainda carregamos uma lógica de mercado cada vez mais artificial em nossos “projetos de vida”, essas pequenas mitologias pessoais que fazem com que o outro, o rico universo simbólico encapsulado em cada ser humano distinto, seja apenas uma peça em nosso caminho individual de sucesso. No filme de Spike Jonze, isso fica bem claro quando Theodore interage com a personagem de Olivia Wilde em uma espécie de blind date – ela já tinha toda a relação afetiva desenhada em sua cabeça, pois não tinha mais “tempo a perder”. A reação de Theodore, por sua vez, nos faz lembrar que o amor, ao menos em nossa espécie, tem o seu próprio tempo –  este tempo do outro no qual precisamos, eventualmente, nos perder.

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Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional