Entrevista: Helena Serra Azul, Manuel e os rastros da Ditadura

Manuel Monteiro e Helena Serra Azul: filho e mãe sofreram os açoites da ditadura militar no Brasil. Ele nasceu enquanto ela estava presa por subversão, em Recife. Ao longo dos anos de chumbo, foram muitas separações. Leia a seguir, a íntegra da entrevista concedida à jornalista Ana Mary C. Cavalncate, do jornal O Povo, e publicada nesta segunda-feira (31/01):

Não há um jeito mais ameno de começar a história de Manuel. Ele nasceu na prisão. Foi batizado no presídio; viveu os oito primeiros meses no cárcere; visitava, escoltado, o pai em outra cadeia.

Manuel Monteiro, biólogo e servidor público, é filho de Helena Serra Azul (Helena Concentração) e Francisco Monteiro (Chico Passeata) – casal que foi perseguido, preso e torturado pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Helena estava grávida de Manuel quando foi encarcerada na Colônia Penal Feminina Bom Pastor, em Recife. Ela e Chico faziam parte da Ação Popular e depois do Partido Comunista do Brasil, organizações que contestavam o regime autoritário de governo. Nesta entrevista, feita em uma sala da Universidade Federal do Ceará, onde Helena é professora, mãe e filho trocam lembranças sobre os anos de incertezas. E reafirmam cumplicidades e amor inquebrantáveis.

A partir de qual fase da vida você foi tendo curiosidade sobre a própria história? Houve algum fato específico ou palavra ouvida que lhe despertaram o interesse sobre o passado?

Manuel Carlos Serra Azul Monteiro – Que eu me lembre bem, logo quando foi lançado aquele livro, pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Brasil Nunca Mais (1985), meu avô mandou o livro para minha mãe. E eu sempre gostei muito de ler, peguei o livro. Mas eu era muito jovem e foi muito chocante. (Manuel tinha 14 para 15 anos).

Helena Serra Azul – Nessa época, tivemos que sair de Fortaleza. Conseguimos (ela e o marido, Francisco/Chico Monteiro) terminar Medicina, só que não conseguíamos emprego. Meu marido foi trabalhar com o pessoal de Comunidades (Eclesiais) de Base, em Aratuba, ficou mais de dois anos lá. E eu fiquei fazendo residência. Não tinha emprego aqui. Fui demitida, no serviço público, por causa das ideias (na ditadura, Helena e Chico integraram a Ação Popular e depois  o PCdoB, organizações contrárias ao regime militar). Foi em 77. O Chico já era muito envolvido com saúde pública. Aí, fomos convidados para ir pra Campinas, o pessoal garantia trabalho. Moramos lá durante oito anos e tivemos muito apoio. Nesse período, saiu o primeiro trabalho oficial sobre ditadura, o Brasil Nunca Mais. Dom Paulo Evaristo (Arns) foi o grande idealizador. Choca muito porque é o que nós dissemos na auditoria militar. E tem um depoimento meu na parte das mulheres grávidas. Quando saiu o livro, meu pai teve acesso antes da gente. Ele manda pelo correio. (Olha para o filho) Eu nem sabia que foi o primeiro contato oficial que você teve.

Que reação você teve, Manuel? Conseguiu ler?

Manuel – Li um bocado. Mas eu não tinha ideia do que era exatamente. Quando meu tio (Manoel Fonseca) esteve preso (no IPPS), em Fortaleza, a gente ia visitá-lo, mas era dito que era uma escola.

Helena – Isso foi em 1974, ele e o primo tinham três pra quatro anos.

Manuel – Era uma festa porque o pessoal fazia uns quadros (aos sábados, dias de visitas no IPPS da ditadura, havia exposição e feira de artesanatos que os presos produziam), ofereciam doce pra gente. Lembro pouca coisa. Pra gente, que não sabia (a dimensão da ditadura), era tranquilo, não tinha problema.

OP – Quando foi se formando sua consciência dos sentimentos de medo, de ausência dos pais, de insegurança?

Manuel – Isso ficou no subconsciente por 30 anos, praticamente. Eu, casado, com minha esposa, ficamos um mês ou dois na casa da minha mãe. E eu só dormia quando ela chegava. Eu inverti os papéis. Minha mãe dava plantão e eu não dormia, ficava lendo. Mas era tudo muito subliminar, eu não tinha compreensão. Na época, minha mãe usava uns tamancos e, quando ela chegava, eu já sabia pelo barulho dos tamancos. E tinha a maneira de andar dela, aquele ritmo. E eu tinha horror à Polícia, a guarda qualquer que fosse.

Helena – A farda, em si, tinha uma representação.

Manuel – E tinha também essa questão: a gente sempre achava que estava sendo observado, que todo mundo sabia quem éramos nós. Mesmo os filhos. Mas nós não sabíamos quem eram as pessoas que estavam olhando pra gente. Meu avô gostava muito de fotografia e filmagem, e eu era o contrário.

Helena – Até hoje, a gente é um pouco assim; eu e minhas irmãs… Com essa ida pra São Paulo (Campinas), foi outra experiência. Era como se a gente estivesse exilado no Brasil.

Ainda sobre a primeira infância. Manuel nasceu na Colônia Penal Bom Pastor e passou oito meses lá com a senhora?

Helena – Quando fui presa, estava com dois meses de gravidez. Não tive grandes problemas na gravidez em si. Teve (problema) na fase que eu estava incomunicável, que a gente ficou 50 dias, na fase das torturas e tal. Quando fui pro presídio, começaram a chegar outras presas políticas, ficaram umas dez mulheres. E, quando o Manuel nasceu, eu fui com uma escolta, ele nasceu na maternidade de Casa Amarela. Fui muitíssimo bem tratada. É os dois lados da moeda. Tinha uma repressão enorme, mas a gente sempre conseguiu apoio por parte de setores. Setores da Igreja mais progressista sempre nos apoiaram. A diretora do presídio era uma freira e foi pegar a gente. Ela ficou tão comovida com a situação que disse: “Não vou pedir autorização do auditor e nem do esquema (de repressão), vou levar você por uma questão cristã, para seu marido conhecer o menino”. Manuel, com um dia de nascido, fomos direto para a Casa de Detenção. Chamaram Chico no parlatório. A primeira coisa que Chico fez foi aquela festa! Manuel era muito bonito! Lembro que ele tirou logo a roupa do menino pra ver! (risos) A gente era muito novo, tinha 20 anos. Voltamos pro presídio. Com um mês, ele foi batizado. O prior dos beneditinos no Brasil foi nos visitar. Ele foi tirar um padre que estava preso no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e passou a nos visitar toda semana. Ele foi fundamental porque levou as denúncias pra fora do Brasil, arranjou advogado no Rio de Janeiro pra nos defender. No meu julgamento, Manuel estava presente, tinha nascido há pouco tempo. E a gente faz o batizado do Manuel dentro do presídio e consegue que o Chico vá com uma escolta. Foi a segunda vez que o Chico viu o Manuel, com mais ou menos um mês depois. Foi uma festa no presídio.

E por que o nome Manuel?

Helena – Manuel Carlos era o nome do avô do Chico. É que a gente queria botar um nome brasileiro.

Manuel, o que é mais marcante, para você, do período da ditadura militar?

Manuel – Tudo pra gente era filtrado. A maioria das coisas são pesadelos. E lembro uma vez, na casa da minha avó materna, entrou uma pessoa com uma arma. Meu pai e meu tio desarmaram. Eu me lembro, vagamente, disso.

Helena – No presídio, quem sempre ajudava a gente eram as mães das presas políticas. Por isso, ficou um vínculo tão forte. Elas levavam ele pro médico. Havia muita solidariedade. Só que, quando assume o Médici (1969-1974), a coisa vai ficando cada vez mais difícil. O estresse (na prisão) foi muito grande, teve aquele problema do sequestro do embaixador (suíço Giovanni Bucher, em dezembro de 1970, por guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária. Em troca, os sequestradores exigiram a libertação de 70 presos políticos). Lógico, Manuel vivia isso.

Ele chorava muito?

Helena – Ele era um menino ótimo, passava o dia todo nos braços, o coletivo tomava conta dele. Ele tinha dez mães! Até hoje, todo mundo diz que é mãe dele. Com oito meses, ficava impossível (o bebê continuar com Helena, na prisão. Não havia espaço ou privacidade). Eu dividia cela com uma presa comum. Aí, ele foi pra casa da minha sogra. E foram várias separações… Mas, em nenhum momento, Manuel deixou de reconhecer a mim ou ao pai. Eu ainda fico presa, quando a gente sai (da prisão), ele estava com um ano e pouco.

E quando você sente mais a presença dos seus pais perto de você com segurança?

Manuel – Não me lembro muito da primeira infância.

Helena – Teve outra prisão, em Fortaleza, em 1972. Ele ia completar dois anos. Foi, extremamente, traumática. Porque eles invadiram a casa da minha sogra e puxaram uma arma e ele estava nos braços da minha sogra. Inclusive, saíram arrastando a gente, botaram capuz, levaram a gente pro 23º BC e foi um nível de tortura horrível. Foi na Semana Santa de 72. E o Manuel ficou abaladíssimo. A minha sogra disse que ele ficou chorando 24 horas, só parava quando dormia. Quando acordava, já chorava.

Manuel, houve conversas que foram silenciadas quando você se aproximava? Muitos por quês sem resposta?

Manuel – Eu sabia que eles tinham sido presos, agora, eu nem queria saber o porquê. E tinha ódio de quem tinha prendido eles.

Helena – (Olhando para ele) Lembro, Manuel, tu bem bebezinho, naquela época do ufanismo do Médici, e a gente mostrava (a foto do general) e dizia que era o “cara do mal” (risos). Lembro que você tinha horror do Médici, quando o via.

Manuel – Tinha o Médici, o Ernesto Geisel, o Figueiredo. E tinha as coisas muito estranhas, por exemplo: a própria morte do Castelo Branco, do Tancredo Neves, do Ulysses Guimarães. Até mesmo a morte de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, fica uma incógnita.

Você perguntava as coisas para seus pais?

Manuel – Não, não gostava muito. Quem falava era a minha mãe, geralmente. Eu não queria saber.

Helena – Depois dele, tive a Janaína. A Janaína é três anos mais nova. Ela viveu também a ditadura, teve os traumas, mas com ele foi muito mais agressivo. Ela sofreu indiretamente. Porque tivemos que sair daqui, demoramos pra ter a casa da gente (moraram na casa dos sogros). Só fomos ter o primeiro apartamento (alugado), o Manuel já tinha completado seis anos. Tivemos que ir embora pra São Paulo, é outra ruptura. Fomos pra Campinas, vivemos lá oito anos, voltamos. É como se essa volta fosse um pouco de resgate, eu só voltava se fosse pra Fortaleza, pela referência da gente. Quando a gente volta, ele é adolescente. Acho que isso marcou muito. Durante todo esse período, Manuel teve que fazer ludoterapia. E ele tinha raiva das psicólogas! (risos).

OP – Por que a raiva?

Manuel – Ninguém gosta de psicólogo, não! (risos)

Helena – Manuel começou a ficar calado demais. Com três anos, ele estudou no Colégio Canarinho. Me chamaram e disseram que o Manuel não falava com ninguém. O pessoal começou a ficar preocupado porque ele não conversava. A professora foi ouvir a voz dele quando foi visitar a gente, no dia que a Janaína nasceu! Ele já estava com três anos.

Manuel – Eu só falava as coisas em casa.

Helena – Quando a gente foi pra Campinas, o Manuel estava com oito anos. Fizemos nova avaliação lá e o neuropediatra achou que tudo era por conta dos traumas e orientou pra gente levar pra uma psicóloga infantil. Ele teve que fazer psicomotricidade. Hoje, ele está bem, mas teve que tomar medicação até nove anos.

Na adolescência, como foram se construindo as relações de amizade, com o mundo?

Manuel – Eu estava acostumado aqui. Cheguei a conhecer dois bisavós. E os meus primos eram quase como irmãos, porque era tudo na mesma casa. Fortaleza era muito pequena, na época. A gente foi pra Campinas em 78, 79, aí, tem as diferenças culturais, o fato de ir não por querer, mas por uma situação. Então, eu estava em Campinas, pensando em Fortaleza.

Helena – Ele nunca se adaptou muito em Campinas.

Manuel – Era aquela coisa das raízes do nordestino. Além disso, já tinha minhas dificuldades de relacionamento. Quando comecei a me acostumar com Campinas, voltamos pra cá. Em 86, a gente volta e minha mãe fica lá, terminando o Doutorado. Campinas, até hoje, é uma cidade que tem um padrão de avanço muito grande. Bibliotecas públicas, parques, até sala de cinemas, tinha uma orquestra municipal… Mas a falta que fazia era o calor (humano) e a praia! (ele sorri).

Helena – E tinham também as dificuldades econômicas. É porque essas coisas a gente não passa pras crianças. A gente teve que recomeçar a vida várias vezes. Primeiro, durante a ditadura: a gente fica mais de quatro anos sem conseguir estudar. Depois, quando a gente termina (Medicina), eu sou demitida e o Chico faz um concurso, mas só chamam até o anterior a ele. Depois, a gente recomeça tudo em Campinas. (Voltam na gestão Maria Luiza Fontenele, em1986). Aí, começa tudo de novo. Eu fiquei um ano dando plantão domingo de manhã, de noite, até conseguir fazer concurso pra universidade. E isso influenciava a família. Tinha um brinquedo que ele queria que a gente comprasse, eu achava ele feio: o Falcon que, na época, pra gente, era muito caro. Tudo a gente investia na educação e na alimentação. Extra? A gente ter televisão colorida, demorou foi muito!

Nos relacionamentos, na escola ou com colegas de trabalho, você teve que sair em defesa dos seus pais porque eram “comunistas” e “ex-presos políticos”?

Manuel – Ex-presos políticos, não ouvi muito falar. Uma vez, briguei na escola porque falaram mal do meu pai, mas não foi quanto a essa questão. Ele tinha sido candidato a vereador e teve um coleguinha que chamou um apelido com meu pai.

Helena – O Chico também foi uma grande liderança na prefeitura de Campinas. Nas grandes manifestações e greves, eles estavam presentes, no pátio. A Janaína adorava! Só que ela era muito pequena e não entendia muito. Ela só gostava de ver o Chico falando! Ela dizia: “Meu pai, meu pai!”. Já era o final do processo da ditadura.

Manuel – Em Campinas participei (da política), era mesário de uma eleição de grêmio.

Helena – (Olhando para o filho) Lembro que tu era pré-adolescente e andava com a gente, colando cartaz nos postes! (risos) Manuel devia ter uns 12 anos. Era final da ditadura, era o que a gente podia fazer.

Você teve que viver a vida dos seus pais? Quer dizer, as pessoas esperavam que você tivesse os mesmos ideais deles?

Manuel – As pessoas olhavam e diziam: “Ah, é filho do Chico Passeata e da Helena!”. Quando não conhecia, porque eu não sabia se era um amigo ou um adversário, a gente sempre ficava com isso na cabeça, então, eu sempre me escondia. Geralmente, eu não botava o sobrenome e sempre me escondia de fotos e de filmagens.

E quanto a seguir o caminho dos seus pais?

Manuel – Ninguém chegou a cobrar, ao contrário. As pessoas tinham medo quando eu participava de alguma coisa. Uma vez, numa passeata, desligaram o microfone para eu não falar. As pessoas já vinham na defensiva quando eu estava no lugar.

Você se envolveu com a política?

Manuel – Eu me envolvi com política antes mesmo do meu pai se candidatar, em 82, na época das Diretas (Já!, movimento de abertura democrática). Teve um comício muito grande em Campinas. Você deve ter visto o Fora Collor (1992), foi semelhante. Eu também participei do Fora Collor, estava lá, na Praça do Ferreira. Nas Diretas, depois de Campinas, a gente foi pra São Paulo. Aí, era a Fafá de Belém cantando o Hino, com aquele vozeirão dela!

Helena – O Manuel participou de muita coisa, do movimento estudantil… Ele foi do Centro Acadêmico da Biologia.

Manuel, como você foi revertendo o terror da ditadura em algum legado para a vida?

Manuel – Uma das formas que usei foi essa participação política. Foi uma maneira de ir perdendo um pouco o medo. Lembro da primeira campanha do Lula, em 89.

Helena – A primeira vez que eu votei pra presidente foi a primeira vez que ele votou.

Manuel – Teve a história, que eu achei muito bonita, que ele colocou quando venceu a eleição: que a esperança venceu o medo. Essa forma de participar um pouco da política foi uma maneira de superar isso, d´eu enfrentar. Porque se eu ficasse como vítima disso tudo, seria pior.

Para muitos brasileiros, a ditadura parece algo muito distante. O que a ditadura, que completa 50 anos, significa para você?

Manuel – Ela existiu porque a maioria do povo brasileiro ou apoiou, ou se negou a se contrapor. Hoje, o que se diz? Não se ligue a nenhum partido político, não reclame de nada, como se fosse uma classe, o político. Quando a gente vê, em Aristóteles, que o ser humano é um ser político. Então, aqueles são representantes que nós escolhemos ou deixamos que os outros escolham por nós. Se eles estão ali é porque a sociedade brasileira os elegeu.

Seus pais se tornaram história do Brasil. Que imagem você construiu deles?

Manuel – A história do Brasil é muito maior do que isso (ditadura). Começou há muito tempo e continua. Quem teve essas lutas no passado foi importante, mas tem as pessoas que estão lutando hoje em dia e tem as pessoas que continuarão lutando no futuro.

No dia a dia da casa, os pais eram o quê, para você?

Manuel – Eram muito jovens e eram meus pais! Tanto que esse menino foi mexer com meu pai e eu dei um soco nele! Fui pra coordenação, disseram: “Você vai pedir desculpas”. “Não, não vou!”. Até hoje, não me arrependo.

Você sempre foi mais próximo de quem?

Manuel – Da minha mãe. Bom, o filho, geralmente, disputa um pouco com o pai. (risos) Mãe sempre é mãe, né? Uma coisa que acho importante é a família. A família é o embrião da sociedade.

Fonte: O Povo