Almas socialistas incansáveis: Soledad e as guerreiras da luta

50 anos após o golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil, o escritor Urariano Mota discute o papel da imprensa e dos jornalistas naqueles anos, o que viveu Recife e as marcas deixadas na cidade pernambucana, e o incansável compromisso que o autor firmou com essa dolorosa herança.

Emtrevista a Patrícia Faermann

Soledad

Nesta entrevista concedida ao Jornal GGN, Uraniano caminha pelo mais sombrio da ditadura militar e nos absorve na fascinante obra Soledad no Recife. Situado no período mais pesado da ditadura militar, o governo de Garrastazu Médici, o livro descreve a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pela capital pernambucana onde  foi assassinada, tendo sofrido a maior traição que a ditadura poderia materializar. Nos jornais, o caso ficou conhecido como a Chacina da Chácara São Bento.

 
Pergunta: Como era ser jornalista e escritor, com as suas colaborações de contos para os jornais de oposição, naqueles tempos?
 
Urariano Mota: Olha, na imprensa alternativa que existiu, que eu lembro claramente, os jornais Opinião, Pasquim e o Movimento, que veio depois do Opinião. Essa imprensa alternativa era, sinceramente, um respiradouro. Vocês não podem imaginar o que era para nós receber, ler O Pasquim. Era uma coisa!
 
Ler O Pasquim para nós era melhor do que o último selinho, era melhor do que o último filme de grandes mestres do cinema. Porque terminávamos fazendo uma irmandade, uma fraternidade de pessoas que estavam no sufoco. Então, é o seguinte: eu sempre quis ser escritor. E o meio era absolutamente contrário a isso.
 
Quando você vem de uma família de classe média, de alta classe média, ainda se aceita, mas quem é, por exemplo, do meio popular, isso é uma coisa que nem está no horizonte, e a minha participação para os jornais da imprensa alternativa se dava através daquilo que era mais caro para mim. Que eram os textos, de contos e crônicas.
 
Então, um belo dia, eu trabalhava no INPS nessa época – não era INSS, era INPS – e tinha uma banca de revista próxima ali, ao edifício JK, onde ficava a sede do INPS, e um belo dia quando eu vou na banca, está lá, na revista escrita, um conto meu.
 
Aquilo pra mim foi, sabe, eu não achava solo nos pés, entendeu? Porque a revista escrita era uma revista de circulação nacional. E tava lá, o meu primeiro conto publicado na imprensa de circulação nacional.
 
Depois eu publiquei no jornal Opinião. Um belo dia, eu também passo pelo Diário de Pernambuco, que tem uma banca de revista, e lá está o jornal Opinião e eu já fui lá atrás: era publicado na última folha. Estava um conto meu “Pensão Paraíso”, que havia sido lido e elogiado por Hermilo Borba Filho, que fazia parte do conselho editorial. Então, esses contos, essas contribuições da imprensa de oposição, eram ao mesmo tempo uma realização íntima e uma maneira de dizer: eu estou presente. Eu estou com vocês, vocês estão comigo.
 
P: Uma curiosidade a respeito disso, você naquela época colaborava para esses jornais de São Paulo e Rio de Janeiro, mas estava no Recife. Como era feito, você enviava?
 
UM: Eu enviava, eu via o endereço no expediente lá atrás e enviava por carta. Era carta, datilografada. Que não havia computador. A gente datilografava, até o verbo é uma desgraça, a gente batia a máquina, o texto e mandava para o Conselho Editorial. A gente não sabia nem se havia sido recebida e como havia sido recebida, ficava aguardando. E não vinha nenhuma comunicação, não. Você, um belo dia, abria e estava lá. Era assim que era feito.
 
P: Corria o risco disso também não chegar e ser…
 
UM: Sim, havia naturalmente, como era uma imprensa combativa, que combatia a ditadura, havia o risco de nem chegar, de ser aberto. E a partir do nome publicado, mostrava que você também estava ao lado daqueles caras.
 
Aqui no Recife, eu ia esquecendo isso, uma coisa importantíssima, aqui nós criamos a nossa imprensa alternativa. Eu, Luiz Paulo, Geraldo Sobreira, Graça Ferreira, Ral, fundamos o jornal A Xepa, e isso no ano, se não me engano, de 1974 ou 75. Fundamos A Xepa, mas A Xepa conosco só durou dois números. Havia censura prévia. Teve que ser registrada na Polícia Federal, os textos irem pra lá, e só depois liberados. Houve isso também aqui no Recife.
 
P: Durante essas apenas duas publicações, receberam algum tipo de ameaça, ou durante as suas colaborações, uma vez apresentado o seu nome, naqueles jornais?
 
UM: Não, eu não cheguei a receber qualquer tipo de ameaça. Mas hoje, só agora entendo o que ocorreu comigo na minha chamada vida funcional. Na época, tinha passado para um concurso no INPS, mais adiante entrei para o Banco do Brasil, e sempre fui preterido, sempre fui jogado de lado em todas as promoções. Eu não sabia como havia gente absolutamente sem um mínimo de qualificação que era promovida.
 
Hoje eu sei por que. O meu nome devia constar na lista dos serviços internos de informações, que toda empresa pública no país havia o serviço de informações. Isso ainda não foi levantado pela Comissão da Verdade. Vai ter, sinceramente, é uma mina, é um tesouro extraordinário de serviços de informações que havia no Banco do Brasil, nos Correios, na Caixa Econômica Federal, na Petrobrás, em todas as empresas públicas. E eu, seguramente, hoje entendo por que fui jogado de lado.
 
Mas ameaça, pessoal não. Agora, é claro. Sofri ameaça séria na ditadura Médici a partir do momento em que houve os seis assassinatos no Recife, que eu falo no livro Soledad no Recife.
 
P: Cinquenta anos depois, nós ainda vivemos o luto da ditadura militar?
 
UM: Sim, é claro. Nós ainda não superamos esses traumas, repare bem, existem traumas da ditadura que não estão claros, os traumas não atingiram somente os torturados nas prisões – com eles fundamentalmente, que as torturas foram bárbaras e selvagens, tem pessoas que estão acabadas pelo resto da vida, que carregam sequelas, e o que eu acho pior são as sequelas morais, os pesares morais.
 
Eu faço parte de uma lista, não estou autorizado a dizer o nome da pessoa, em que ela havia feito um trato com o seu companheiro, de que não se entregariam vivos, sob hipótese nenhuma. Havia militantes que carregavam, é incrível isso, tinham um pacto com a morte. Não se entregavam vivos, porque sabiam que a tortura ia ser de tal maneira que eles poderiam abrir informações preciosas, que carregavam a outros companheiros e combatentes.
 
Os jovens de hoje não entendem, havia uma questão de ponto de honra em não abrir nada. A gente sabe que isso é muito difícil ou impossível. Como disse Dilma, no depoimento, no Senado, em que ela desbancou completamente aquele sacana que é daqui do Rio Grande do Norte, quando ele disse que ela havia mentido durante a ditadura. Ela virou-se para ele e disse: “você não sabe o que é mentir sob tortura, é preciso muita coragem para mentir sob tortura”. Ela é a voz viva da experiência.
 
Dilma, soube-se depois, que com hemorragia, no hospital, recebeu o conselho de não parar a hemorragia, porque se parasse estava boa para tortura. Ela disse que quando ia parar, ela começava a pular para voltar a hemorragia. As pessoas não sabem o que é isso.
 
Havia um ponto de honra em não abrir, isso é muito difícil ou impossível. Houve pessoas que abriram, o que é plenamente compreensível. Dizer, numa boa, sentado nesta cadeira, que não se deve abrir é uma coisa. Outra coisa é você estar passando por afogamento, pau de arara, ameaça de cortar os bicos de seios com tesouras. Entende? Vendo seu filho, sendo torturado na sua frente, o seu filho sendo apresentado a você torturado, como há depoimentos, de filhos que diziam: mamãe, por que a senhora tá toda verde? Não conheciam o que era isso.
 
Essa pessoa da lista que participo, ela tinha um pacto com o esposo. O companheiro dela foi morto, e ela não conseguiu se suicidar, não conseguiu engolir um veneno. Não fez, fraquejou. Acredite você, até hoje ela carrega isso como uma culpa. Como uma culpa de ter faltado a palavra, com o companheiro que ela viu cair fuzilado, no cerco de um aparelho, que era o reduto onde eles estavam clandestinamente.
 
P: Essas são as sequelas mais gerais.
 
UM: Mas há outras sequelas, outros traumas. O meu particular foi ter visto companheiros assassinados, presos, e ter risco de cair também, quando o cabo Anselmo entregou os seis militantes aqui no Recife.
 
P: Explica um pouco melhor do que se trata essa lista?
 
UM: Eu participo hoje da lista “Os Amigos de 68”. É uma lista na internet, por email. Uma participante da lista dos Amigos de 68, que é ex-presa política, nos relatou isso de uma maneira muito traumatizada, que havia faltado a palavra com o companheiro. Aí, fui pesquisar a história dela, e fui entender o porquê.
 
O companheiro dela foi morto tentando fugir de um apartamento pela outra janela e foi fuzilado. E ela fraquejou. Eu não estou autorizado a dizer o nome dela.
 
P: Até hoje se negam tais relatos de tortura. Até hoje tem quem acredite que os mortos da ditadura foram terroristas. Como isso soa para alguém que testemunhou o tamanho das crueldades?
 
UM: A primeira coisa que ocorre em relação a isso é um sentimento de indignação, é um insulto isso. Quando algumas vítimas da tortura escaparam, estão vivas. É insulto quando a gente viu e soube de pessoas que foram trucidadas. Que foram destruídas, não só físicas como psicologicamente.
 
Há relatos da advogada Mércia Albuquerque, uma extraordinária mulher, que ainda tem que ser recuperada para a história do Brasil, Mércia dizia que quando visitava presos políticos que tinham sido torturados, eles estavam sabe como na cela? Estavam comidos, em posição fetal. O que é isso? O que é isso? É uma pessoa no mais absoluto desamparo! Na absoluta nulidade, procurando o ventre da mãe. Em posição fetal!
 
Quer dizer, isso é um escárnio! Isso é insulto! E a extrema-direita insiste nessa conversa de terroristas. Terroristas foi a ditadura, que fez um terror de Estado, calculado e claro.
 
Recentemente, eu vi um relato de que um militar que estava com um prisioneiro do PCdoB no Araguaia e chegou a fazer quase uma amizade com ele porque ficavam jogando dominó. De repente, vem a ordem de Brasília para executá-lo. A ordem vinha lá de cima. Querem dizer pra gente que os torturadores eram desalmados pessoais que agiam por sua conta e risco. Isso é falso! As execuções vinham de cima. A ordem é de cima. Agora, os seus serviçais executavam a ordem suja.
 
P: Em entrevista em 2011 para uma TV Universitária, você diz que ambos os livros, tanto Soledad no Recife como Os Corações Futuristas, são literatura, e que você não estava ali como jornalista, mas como escritor. O ponto comum de um escritor da ditadura e um jornalista, é que ambos reportam a memória daqueles anos. A sua escolha por falar com poesia foi uma forma de enfrentar a frieza do período?
 
UM: Também. E tem uma outra coisa Patricia, é que o escritor não está amarrado ao gancho. Um dos grandes defeitos da profissão do jornalista é ele ser amarrado ao gancho. Então, o escritor é fundamentalmente a memória. Ele fala à memória. Enquanto a imprensa normalmente quer o espetacular, o escritor é a memória por excelência. É contra o jornal velho. Por outro lado, eu também exercia a função de jornalista e sei, naturalmente, das limitações. Quando escreve em um jornal, você está limitado pelo espaço, pelo editor, pelo anunciante. Você não tem condições de aprofundar, não tem tempo de aprofundar. Você está, na verdade, correndo contra o tempo.
 
Um escritor, pelo contrário, ele utiliza a memória, ele aprofunda aquilo que a imprensa não pode dizer. Agora, é claro, existem grandes repórteres. Recentemente, você vê o trabalho que o Mário Magalhães fez da biografia de Marighella, um grande trabalho. Mas Mário Magalhães atuou ali, fundamentalmente, como pesquisador. Ele teve que se ausentar das redações. Disse que foi sustentado pela mulher durante esse tempo todinho.
 
A opção por ser escritor é, primeiro, de vocação e, segundo, é estratégico. Para ter tempo de aprofundar um tema. Repare bem, o personagem como o cabo Anselmo ainda merece ser analisado. As cartas não estão postas na mesa ainda. Uma personagem como Mércia Albuquerque, advogada, ainda não está valorizada a altura de seu grande papel de advogada na ditadura.
 
Várias coisas, por exemplo, não podem ser feitas na imprensa do dia-a-dia. Infelizmente.
 
P: Na obra Soledad no Recife você cita em “almas socialistas”. Depois de Os Corações Futuristas, você se considera um jornalista, ou escritor, a serviço de almas socialistas?
 
UM: Eu me considero um escritor a serviço de almas socialistas. Isso eu coloquei em Soledad no Recife. Aí, eu peço licença para observar uma coisa que é meio supersticiosa. Depois dos Corações Futuristas, eu tinha recebido uma correspondência de uma jornalista italiana, e eu não sei italiano, e procurei uma pessoa da Sociedade Brasil Itália, pra que traduzisse aquilo.
 
Quando eu chego lá, eu tinha saído de um câncer, tinha feito cirurgia, a mulher chegou pra mim e disse: “me dê a sua mão”. Eu dei, “o que essa mulher quer com a minha mão?”. Ela começou a olhar, olhar, e disse: “olhe, você tava pensando que ia morrer, você não vai morrer agora. Você ainda tem um grande trabalho pela frente, e seguramente…”
 
Aí ela usou esta expressão, uma expressão feliz e emocionante [Urariano dá uma pausa, comovido]: “Existem almas socialistas. Que pedem uma recuperação”. Foi isso. Eu sou escritor a serviço delas.
 
P: Durante a pesquisa da sua biografia, vi que você é ateu. Continua sendo ateu, depois dessa situação?
 
UM: Eu continuo a ser ateu, mas sei lá, às vezes um ateu meio abalado. Eu não digo ateu graças a Deus, mas digo um ateu meio abalado. Inclusive com algumas coisas que, sinceramente, são sem explicação. Não tem explicação.
 
Por exemplo, no Corações Futuristas, eu coloquei o nome na principal personagem de Cintia. Mas o modelo dela era Mirtes, uma lutadora extraordinária cearense que esteve no Recife. Quando eu mandei o livro para Mirtes, ela leu e depois ligou pra mim de Fortaleza.
 
Disse pra mim: “De onde foi que você tirou esse nome de Cintia?”. Eu parei assim, e disse “Mirtes, eu não sei, mas eu achei sinceramente que a personagem tinha cara de Cintia, eu não sei por que botei, mas só podia ser Cintia”. Ela falou: “Você não sabia, não? Ninguém lhe disse?”, eu falei “não”.
 
– Cintia é o nome de minha primeira filha, que nasceu na clandestinidade, aí em Pernambuco.
 
Quer dizer, eu fico sem entender, fiquei besta, não é possível isso. Ninguém nunca me falou isso.
 
Em Soledad no Recife, eu coloquei coisas que eu não sabia, não tinha certeza, absoluta, não tinha. Mas como é um trabalho de ficção, eu fui fundo, fui mais longe. E eu não sabia, mas depois se confirmaram. Havia razão naquilo que eu julgava como hipótese, e não era hipótese.
 
Eu vejo o trabalho de pesquisa como um iceberg, o que aparece é o que está nas páginas, mas existe uma base sustentando embaixo.
 
Por exemplo, eu tinha visto um relato de uma pessoa que diz que Soledad, um belo dia, ficou ninando o seu filho, cantando em Guarani, cantigas guaranis para bebês. E eu fui atrás, fui atrás, terminei descobrindo um disco de crianças guaranis cantando, invocando os espíritos para a ressurreição dos guerreiros. Eu disse: “isso me fere, isso é para Soledad”.
 
Aquela imagem das santas paraguaias, que tem uma lua nos pés, mas no caso de Soledad era um feto, aquilo me ocorreu também através de pesquisa e de intuição.
 
A intuição não é uma coisa só do artista. É uma coisa também da Ciência e de todo o conhecimento humano. E essa intuição, sinceramente, a gente não explica. As razões positivistas de causa e efeito ficam sem explicação. Eu não sei, sinceramente, eu não sei.
 
P: Você acredita que, um dia, essas almas socialistas vão te deixar dormir?
 
UM: Eu creio que as almas socialistas não dormem nunca. O trabalho delas é incansável. É permanente. É de construção e de reconstrução do mundo.
 
Mas, enquanto houver torturadores impunes, enquanto houver o escárnio, enquanto houver Bolsonaros, essas almas socialistas estão sem descanso.
 
Eu acho sinceramente, que nós temos o dever. Nós, que levamos tanto tempo pra reconstruir o mundo. Nós temos o dever de dizer: “olha, nós queremos dar uma pausa nessa impunidade, eu quero que vocês reflitam sobre isso”. É assim que eu penso.
 
P: Abordando a sua obra Soledad no Recife. Gostaria de entender a sua proximidade com a personagem principal, Soledad: se deu meramente temporal e geograficamente? Houve algum laço afetivo, de amizade?
 
UM: Essa dúvida que você tem Patricia é uma dúvida que acompanha o livro, que acompanha todos os leitores. Não só, como o primeiro leitor dele, que foi Flávio Aguiar, escritor também, professor aposentado da USP, que foi quem primeiro leu Soledad no Recife, depois a própria editora. As pessoas pensam, realmente, que eu namorei Soledad ou tive alguma paixão platônica por ela.
 
Na verdade, é o seguinte, não estão muito longe da verdade, porque eu tive por Soledad uma aproximação do tempo, na fase, e geográfica, no Recife. Mas eu nunca vi, nunca tive contato com a pessoa dela. Então, para reconstruir, essa paixão do narrador por Soledad, eu tive que reconstruir as dezenas de mulheres guerreiras que eu conheci na vida dura, de belíssimas mulheres guerreiras. E que a beleza vinha mais do que faziam do que das formas físicas.
 
Você sabe que o amor é um sentimento muito subjetivo, então essa subjetividade incluía aquela expedição, aquele risco, aquele futuro que apontava nelas e eram o contrário do comum da mulher brasileira, que na época era profundamente passiva dona de casa, então essas mulheres apontavam o futuro. Eram as musas. Aí, eu pude reconstruir a pessoa de Soledad, a partir da minha vivência com outras mulheres, com outras guerreiras da luta.
 
Agora, estar frente a frente com ela, não.
 
Enquanto corre a leitura, mistura-se muito a realidade com ficção, propositalmente ou não, mas a obra apresenta esse incrédulo dos anos de chumbo, que muito parecia ficção. Diante da constatação do que falou agora, de ter se inspirado nas mulheres da época que lutaram, nós, brasileiros, somos todos um pouco narradores de Soledad no Recife?
 
Essa é uma pergunta que eu gostaria, sinceramente, que fosse respondida fundamentalmente pelos leitores. Mas a minha ambição não foi outra. Eu quis realmente deixar todos os jovens brasileiros como narradores de Soledad. Porque o livro transcorre na juventude, no meio jovem que combatia a ditadura, e hoje eu gostaria que os jovens tivessem a reconstrução desse tempo que é fundamental na formação de toda uma geração, na formação da história brasileira. Agora, essa mistura de realidade com ficção, foi absolutamente proposital. Não foi casual. E é um absolutamente de propósito de tal maneira que o leitor, eu sei, é incapaz de separar o que é ficção do que é fato.
 
Eu imagino que eu tenha conseguido, que é como pele e músculo. Estão juntos, ligados. Agora, nisso não há truque nenhum. Não há truque, nem perícia, nem habilidade. A questão fundamental é a seguinte, Patricia, para quem leva a sério a literatura, nós só temos um dever: fala a verdade. Fala a verdade. Fala o que não foi falado. Diga o que tu fez, diga o que viveste. É isso. E é assim que se mistura ficção e realidade.
 
P: Em entrevista a Conceição Lemes, de Viomundo, em 2009, você falou que “o crime contra Soledad é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil”. Diante de tantos casos, por que você considera esse?
 
UM: A minha compreensão disso é que eu acho que é um caso raro, não só no Brasil, como também no mundo, de um agente duplo que era o cabo Anselmo entregar a própria companheira.
 
Quando fui pesquisar para escrever Soledad no Recife – que foi apoiada em cima da minha vivência e também, naturalmente, de pesquisa – para entender o cabo Anselmo, ele deu uma pista quando disse que adorava literatura policial. Fui pesquisar. E na melhor literatura policial está a história de agentes duplos.
 
Pude ver que os agentes duplos têm um ponto de honra: eles entregam tudo, só não entregam o próprio sangue. Não entregam a própria esposa e o filho, o resto, não cruza não que eles entregam. E o cabo Anselmo é o caso único que entrega a própria mulher. Com um detalhe: a mulher estava grávida.
 
Até hoje, ele procura como um amenizante do crime. Como aquele assassino que diz: eu não matei 50, não, só matei 10, ele quer dizer que Soledad não estava grávida. Mas existem inúmeros depoimentos de pessoas outras que tiveram contato com Soledad e que atestam que estava grávida.
 
É por isso que eu disse a Conceição Lemes, de Viomundo, que esse era o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil.
 
P: O que foi de real e inventado na Chacina da Chácara São Bento?
 
UM: A primeira coisa que eu tenho que esclarecer é o seguinte: a maioria das pessoas, quando falam de ficção tem uma ideia equivocada, porque parece que ficção é mentira. Eles não estão sabendo de nada.
 
O que acontece é que a ficção é fundamentalmente uma investigação do real. Ela é uma prospecção do aprofundamento do real. Então ela avança sobre fatos, coisas, que não estavam ditas ou exploradas ainda.
 
Agora, tem muito ficcionista que pensa que pode abusar da imaginação, achar que a imaginação é superior à realidade. Balela, esse cara não está sabendo de nada. A realidade é o dom supremo.
 
Nesse caso da chacina da Chácara São Bento, tudo que eu digo ali [no livro Soledad no Recife] é real, é documentado. Ali não está nada inventado. Agora, o inventado entre aspas que eu faço em torno da Chácara São Bento são os dilemas que atravessam a consciência de Anselmo na véspera de entregá-la a morte. Mas para fazer aquilo, eu tive que pesquisar muito o Anselmo. De ver como ele se manifesta, quais são as defesas.
 
Porque repare bem, acho que posso usar a palavra aqui, todo filho da puta não quer aparecer como filho da puta para sua própria consciência. Se pegar um ladrão, por exemplo: eu roubo para sustentar a minha família; se pegar um assassino violento, ele diz: ele já tava condenado, por isso que fiz. Procura se justificar à própria consciência. Eu sabendo desse recurso, que é universal, procurei ver que discurso Anselmo deu a sua própria consciência para entregar Soledad. Aí é que está esse dilema.
 
Aquela festa, no aniversário de Soledad é real. Mas não da maneira como eu narro. Porque eu morava numa favela do Recife, Brasília Teimosa, na época era favela, e lá havia uma igreja que foi gente dessa igreja que deu a festa de aniversário para Soledad, esteve presente, e fotografou Anselmo no dia do aniversário dela. No outro dia, ela estava entregue à repressão. Então, a festa houve, atestada por padres da igreja no Recife. Mas não da maneira como eu narro.
 
Aquela reunião que existe em Olinda, aquela casa, eu tive que ver qual era a casa ideal para ter havido aquela reunião. Agora, o fato é que Anselmo e Soledad moraram em Olinda e tiveram uma boutique, a quem ele deu o nome de boutique Mafalda. Existe arapuca maior do que isso na ditadura? Com o Quino censurado? Arapuca você sabe o que é. Aquilo era uma armadilha.
 
Então é essa mistura do real e do inventado. E, mais, no livro talvez eu fui a primeira pessoa a dizer que a Chacina da Chácara São Bento era mentira. Eera uma farsa, aquilo estava inventado. E dizia mais, que nos jornais da ditadura, você não acredite nem nas datas que estão lá. Quando o jornal aparecia 9 de janeiro, você não sabia, se era 10, se era 8. “Ontem”, esse ontem ninguém sabia o que era, principalmente porque havia segurança previa. O informe que saia da segurança era o mesmo reproduzido em toda a imprensa brasileira.
 
A Chácara de São Bento houve, agora o fato que eu desmontei foi, primeiro, aquela chácara não existiu, não existiu, como treinamento de guerrilha. Não existiu como ponto em que os militantes foram assassinados. E, recentemente, na Comissão da Verdade de Pernambuco, o ex-major Ferreira declarou, claramente, que o negócio da Granja São Bento foi um teatrinho montado pelo Exército brasileiro.
 
P: Desde que publicou o livro, em 2009, até hoje, mudou sua observação sobre o cabo Anselmo?
 
UM: Pelo contrário, se aprofundou. Eu tenho acompanhado ele, em depoimentos, como houve no Roda Viva, e outros programas, através de relatos, de um advogado dele que gravou e está no YouTube.
 
Ele é uma pessoa absolutamente cínica, continua sendo uma pessoa fria, venenosa. O veneno dele não tem limite. Não pense que o cabo Anselmo parou de trabalhar. Ele continua a trabalhar e tem o apoio de setores a direita, tanto das Forças Armadas, como da polícia, como de empresários. Ele continua a ser sustentado por essa gente.
 
Ele é profundamente venenoso, que procura atingir a memória de Soledad até entre parentes de Soledad. Acredite se quiser. Plantando informações.
 
Não pense que a partir daí, ficou mais claro pra mim o seguinte, que Anselmo não é de índole uma pessoa violenta. Não é interessante isso? Eu acredito até que o cabo Anselmo tem horror a barata. Ele não pode ver sangue de barata. Ele é incapaz de puxar o gatilho. Não é ele quem puxa o gatilho, como ele diz muito bem “não fui quem matei”. Ele apenas indicou as pessoas para serem mortas. Eu asseguro a você, se ele levar uma porrada, ele não reage. Agora, ai de quem der uma porrada, entra na agenda dele. Ou seja, como todo covarde, ele não enfrenta, ele é de atacar pelas costas. E temos que nos precaver não é dos corajosos. Os corajosos tem que ser respeitados, os covardes é que são profundamente perigosos.
 
Ele continua com a obra dele, porque continua a existir a direita no país. De lá para cá, o sentimento que eu tenho em relação a ele apenas se aprofundou. Ele continua a ser um indivíduo inteligente, venenoso e perigoso.
 
P: Urariano, você não teria vontade de entrevistá-lo, um dia, cara-a-cara?
 
UM: Muita! Muita! É um dos meus sonhos! Muita! Muita vontade de fazer isso. O, meu Deus do céu, como eu gostaria e nunca tive a oportunidade. Eu gostaria de ouvi-lo, eu gostaria de estar cara-a-cara com ele, pra conversar com ele, pra saber dele.
 
Porque, pra mim que sou escritor, ele continua a ser um objeto de estudo. Sinceramente, vamos e venhamos, é típico da história de toda a literatura. Os grandes personagens terminam sendo os vilões também. Isso desde sempre, até hoje. Ele é um vilão, é um personagem extraordinário à complexidade. Ah, se eu pudesse!
 
P: Na obra Soledad no Recife você cita em “almas socialistas”. Depois de Os Corações Futuristas, você se considera um jornalista, ou escritor, a serviço de almas socialistas?
 
UM: Eu me considero um escritor a serviço de almas socialistas. Isso eu coloquei em Soledad no Recife. Aí, eu peço licença para observar uma coisa que é meio supersticiosa. Depois dos Corações Futuristas, eu tinha recebido uma correspondência de uma jornalista italiana, e eu não sei italiano, e procurei uma pessoa da Sociedade Brasil Itália, pra que traduzisse aquilo.
 
Quando eu chego lá, eu tinha saído de um câncer, tinha feito cirurgia, a mulher chegou pra mim e disse: “me dê a sua mão”. Eu dei, “o que essa mulher quer com a minha mão?”. Ela começou a olhar, olhar, e disse: “olhe, você tava pensando que ia morrer, você não vai morrer agora. Você ainda tem um grande trabalho pela frente, e seguramente…”
 
Aí ela usou esta expressão, uma expressão feliz e emocionante [Urariano dá uma pausa, comovido]: “Existem almas socialistas. Que pedem uma recuperação”. Foi isso. Eu sou escritor a serviço delas.
 
P: Você acredita que, um dia, essas almas socialistas vão te deixar dormir?
 
UM: Eu creio que as almas socialistas não dormem nunca. O trabalho delas é incansável. É permanente. É de construção e de reconstrução do mundo. Mas, enquanto houver torturadores impunes, enquanto houver o escárnio, enquanto houver Bolsonaros, essas almas socialistas estão sem descanso.
 
Eu acho sinceramente, que nós temos o dever. Nós, que levamos tanto tempo pra reconstruir o mundo. Nós temos o dever de dizer: “olha, nós queremos dar uma pausa nessa impunidade, eu quero que vocês reflitam sobre isso”. É assim que eu penso.