Audifax Rios: O homem e seu discípulo

Por *Audifax Rios

Naquele tempo, os devotos observavam rigorosos jejuns ou praticavam abstinência de carne, em todos os sentidos; comiam apenas o corpo do Senhor em forma de bolachinhas de farinha de trigo, as tais hóstias consagradas. Às quais só tinham acesso o padre ordenado; tocar aquele símbolo sacrossanto era uma heresia, uma profanação, as mãos imundas dos pobres mortais eram indignas, indecentes, impróprias para tal.

Numa instrução sobre o jejum quaresmal, a Santa Madre advertia que tudo aquilo era imposto no intuito de lembrar o exemplo de Jesus nas quarenta noites do deserto; para prestar satisfação pelos pecados cometidos; pra sujeitar, enfim, a natureza interior do domínio do espírito. E, curioso, salientava que a carne era proibida mas a gordura animal, não. Isso para o pobre não influía nem contribuía, ele jejuava mesmo cotidianamente sem preceitos e normas, a lei era a penúria, a precisão.

Esses pequenos sacrifícios eram compensados no sábado da Aleluia. Perus, capotes, galinhas e aves de caça eram abatidos a fim de satisfazer a gula dos brincantes que ao badalar da meia noite abriam as latas de paçoca e tiravam o atraso. Por estas alturas com o buxo e a cabeça empanturrados de cachaça, aperitivo perfeito para a malhação do Judas, uma das mais animadas festas pagãs ainda cultuadas no Nordeste brasileiro.

Os bonecos ficavam pendurados nos caules das carnaubeiras ao pé da qual eram lidos jocosos testamentos, exarados em versos onde o suicida doava seus pertences materiais e mimos d’alma aos companheiros de jornada terrena. Documento vazado num texto debochado, irônico, tirando mesmo para um baixo calão quando, a pretexto de presentear o herdeiro, nomeava seu apelido carregando nas tintas para vilipendiar a conduta moral, amigo urso. Aí surgiam os podres arquivados de há muito: uma traição, uma agressão, um desplante, um calote, outro qualquer desvio de comportamento, venial ou mortal, tanto fazia.

Cumprindo este ritual maledicente, o corpo esmolambado do apóstolo traíra era entregue à sanha da meninada; com o qual percorria as ruas da povoação, os membros do boneco destroçados pelo chão até não ficar mais trapo sobre trapo. A cabeça, muitas vezes, era guardada para o ano seguinte quando não servia de ex-voto para pagar promessa no Canindé. E assim Judas Iscariotes era vingado pela malta, se não enfurecida; alegre, galharda e embriagada.

Já o Cristo, no dia anterior, sexta-feira da Paixão, cumpria seu périplo ao estridente ruído das matracas e abafados sons de tubas e bombardões da bandinha; ou ainda, latomia de benditos e cantorias dolentes. De ordinário chuviscava no momento da procissão, bem aventuradas gotinhas molhando véus de carolas das irmandades, fitinhas de congregados marianos e as opas vermelhas dos irmãos do Santíssimo. Delmiro, no uso das atribuições legais de seus possantes músculos, fazia girar o sino da matriz o que para ele era uma honra divinal. Finda a tarefa ganhava o rumo do Caneco Amassado, o lupanar da cidade, onde o esperava, despudorada e bem nutrida, a Noemi, chamego antigo que naquela noite santa ajudava a quebrar o jejum como fazia nestes tantos anos de xodó.

Quarenta dias de tanta privação libertavam agora homens e mulheres para os ritos carnais, sem jejuns nem abstinências, a carne glorificada com excesso nos altares eróticos que eram pobres catres e suadas redes, numa noite escura, sem archotes ou círios bentos, só as estrelas cintilando no pretume do céu.

Ainda que eu falasse na língua dos anjos diria que o Mestre aprovaria todas estas demonstrações mundanas, Ele, o Deus feito Homem, o que era tabu nos meus tempos de cruzadinho e acólito alatinado. As coisas bem que melhoraram, o homem evoluiu neste quesito compreensão. Hoje em dia o cristão se serve da hóstia consagrada com suas próprias mãos e pode até mastigar, degustar, salivar escancaradamente, ato condenado em tempos de pratrasmente. E talvez este severo cerimonial da Santa Madre ganhe mais abertura a se pensar na brandura do Papa Francisco, bem acessível à variantes que aproximem o homem de Deus.

Reflitamos, pois , nos dias da Paixão. Alegramo-nos, pois, na noite da malhação. Oremos e bebamos com moderação. Pra evitar que o retinir dos cálices soem como o tilintar dos trinta dinheiros. Aleluia!

*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo

Fonte: O Povo

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