Mário Albuquerque: Conversa com o Coronel

Por *Mário Albuquerque

Pois é, coronel, no estado democrático em que hoje vivemos (conquistado contra a vontade de grupos como aqueles a que o senhor pertencia) é possível ter conversa com ministro, sem risco de punição. E comemorar e receber elogios dos pares pelo “feito”. Diferente dos tempos em que pessoas de sua patente tinham poder de vida e morte sobre as demais, e conversa como essa poderia resultar em sentença irrecorrível. No seu tempo, (o senhor sabe) não tinha conversa: era porrada, choque elétrico e outros métodos do receituário aplicado nos centros de tortura e ensinados à oficialidade militar latino-americana na Escola das Américas e em outros centros de “ensino”.

Não vou me referir às “conversas” nos porões do regime, algumas das quais a Comissão da Verdade vem trazendo a público, inclusive, com a colaboração de agentes que as perpetraram. Quero me referir a conversa pública (atente para o detalhe, conversa pública) travada entre a então estudante Rosa da Fonseca, com 20 anos, e o então ministro da Educação da época (coronel como o senhor) Jarbas Passarinho, em programa local de televisão. Procure saber o que aconteceu. Vou refrescar sua memória: dela resultou a detenção, tortura e encarceramento por dois anos. Por aí, dá para o senhor fazer esforço de rastreamento mental e lembrar o que acontecia nas “conversas” em salas de delegacia, galpões de quartéis, fazendas e sítios clandestinas, – as ditas “casas da morte”.

Não recorro aos milhares de casos no eixo Rio – São Paulo, nem aos trucidados no Araguaia, depois de rendidos, mas a dois locais: o ferroviário José Nobre Parente, amanhecido morto numa cela do Dops, em 1966. A versão oficial depois viraria moda na ditadura: “suicídio”. Sabe com que instrumento disseram que se matou, coronel? Uma toalha de rosto (um escárnio). O outro foi Pedro Jeronimo de Sousa, do MDB, “suicidado”, em 1974, cujos detalhes foram revelados por agente do Doi-Codi e que constam do relatório da comissão especial criada pela OAB-CE.

Felizmente, coronel, agentes arrependidos – ou torturadores impenitentes – têm vindo a público revelar barbaridades que prisioneiros políticos e entidades da sociedade civil já denunciavam. É bom lembrar que o Brasil é signatário de convenções de tratados que consideram a tortura e os desaparecimentos forçados crimes de lesa-humanidade. Isso significa (se o senhor ainda não entendeu direito) que se o país onde isso ocorreu não punir os responsáveis, qualquer outro membro pode não só exigir a punição, mas executá-la. Chegaremos lá.


*Mário Albuquerque é Conselheiro da Comissão Nacional de Anistia/Ministério da Justiça

Fonte: O Povo

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