Mike Whitney: Dividindo o Iraque, tudo para Israel

O plano de divisão do Iraque foi formulado em Israel há mais de três décadas. Os EUA dirigem hoje a sua execução, se a puderem levar a cabo. Mas tal divisão nem sequer serve os interesses dos EUA.

Por Mike Whitney*, para o CounterPunch

John Kerry Nouri al-Maliki - AFP

"Já não é plausível argumentar que o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) foi o resultado de erros dos EUA cometidos inadvertidamente. Faz parte evidente de uma estratégia estadunidense para romper a aliança Irã-Iraque-Síria-Hezbollah. Agora, quando pode verificar-se que essa estratégia constitua um fracasso total e possa acabar por ser um tiro pela culatra, não nos confundamos: EIIL é a estratégia.” – Lysander, Comentários, Moon of Alabama.

“O imperialismo estadunidense foi o principal instigador do sectarismo na região, da sua estratégia de dividir e conquistar na guerra e ocupação no Iraque, do fomento da guerra civil sectária para derrubar Assad na Síria. O seu cínico apoio aos insurgentes islamitas sunitas na Síria enquanto apoiava um regime sectário xiita do outro lado da fronteira, no Iraque, para reprimir essas mesmas forças, conduziu todo o Oriente Médio ao que na segunda-feira um painel das Nações Unidas sobre a Síria considerou aproximar-se do “culminar de uma guerra regional”. – Bill Van Auken, "Obama orders nearly 300 US troops to Iraq" ("Obama ordena o envio de quase 300 soldados dos EUA ao Iraque"), World Socialist Web Site.

Barack Obama está chantageando Nuri al-Maliki, retendo o apoio militar até que o primeiro-ministro iraquiano aceite renunciar. Por outras palavras, estamos a meio caminho de outra operação de mudança de regime iniciada por Washington. O que é diferente nesta operação é o fato de Obama estar usando um pequeno exército de terroristas jihadistas – que já chegaram a cerca de oitenta milhas de Bagdá – para apontar a pistola contra a cabeça de Maliki. Não é surpreendente que Maliki se tenha negado a cooperar, o que significa que a crescentemente tensa situação poderia explodir numa guerra civil. O Guardian formula uma antecipação num artigo adequadamente intitulado “O Iraque de Maliki: Não irei embora como condição para o ataque dos EUA contra combatentes do EIIL.”

“Um porta-voz do primeiro-ministro iraquiano, Nuri al-Maliki, disse que ele não renunciará como condição para ataques aéreos dos EUA contra os combatentes sunitas que realizaram uma avançada relâmpago através do país.”

O ministro dos negócios estrangeiros do Iraque, Hoshyar Zebari, fez na quarta-feira um apelo público na televisão al-Arabiya, a que os EUA desencadeiem ataques, mas Barack Obama foi pressionado por altos responsáveis políticos estadunidenses no sentido de persuadir Maliki… a renunciar perante o que consideram uma liderança falhada face a uma insurgência…

A Casa Branca não pediu a saída de Maliki, mas o seu porta-voz Jay Carney disse que, caso o Iraque seja dirigido por Maliki ou por um sucessor seu, “tentaremos sublinhar de forma veemente perante esse dirigente a absoluta necessidade de rejeitar um governo sectário”.

Obviamente, a Casa Branca não pode dizer diretamente a Maliki que vá embora, uma vez que isso afetaria a sua credibilidade como propugnadora da democracia. Mas o problema existe definitivamente e o plano da administração de remover Maliki está em vias de execução. Leia-se esta passagem do Wall Street Journal:

“Um número crescente de legisladores estadunidenses e aliados árabes, em particular a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, estão pressionando a Casa Branca para que retire o seu apoio a Maliki. Alguns deles pressionam uma mudança caso venha a ser disponibilizada ajuda à estabilização do Iraque, dizem diplomatas estadunidenses e árabes.” ("U.S. Signals Iraq’s Maliki Should Go", ou "EUA sugerem que Maliki, do Iraque, deve renunciar", no Wall Street Journal)

Atenção à última frase: “Alguns deles pressionam uma mudança caso venha a ser disponibilizada ajuda à estabilização do Iraque, dizem diplomatas estadunidenses e árabes.” Na minha opinião soa fortemente a chantagem.

É a essência do que está sucedendo nos bastidores. Barack Obama e os seus lugar-tenentes estão torcendo o braço de Maliki para o forçar a abandonar o seu cargo. Disso tratou a conferência de imprensa de quinta-feira. Obama identificou o grupo chamado EIIL como terroristas, reconheceu que significam um grave perigo para o governo, e logo opinou despreocupadamente que não moverá um dedo para ajudar. Por quê? Por que está Obama tão ansioso em bombardear presumíveis terroristas no Iêmen, Paquistão e Afeganistão e, entretanto, não está disposto a fazer o mesmo no Iraque?

Poderá suceder que Obama não esteja realmente comprometido com o combate contra terroristas, que a treta do terror seja apenas uma folha de parra para planos muito mais grandiosos, como a dominação global?

Por certo, assim é. Em todo o caso, é fácil ver que Obama não vai ajudar Maliki se isso interferir com os objetivos estratégicos mais amplos de Washington. E, atualmente, esses objetivos são livrar-se de Maliki, que está “demasiado ligado” a Teerã, e que se negou a assinar o Acordo do Status de Forças (Sofa) em 2011, que teria permitido que os EUA deixassem 30.000 soldados no Iraque.

A rejeição do Sofa selou efetivamente a sorte de Maliki e converteu-o em inimigo dos EUA. Era apenas uma questão de tempo até que Washington tomasse mediadas para o retirar do seu posto. O que segue é uma passagem da conferência de imprensa de Obama na quinta-feira que ilustra como estas coisas funcionam:

“A chave para a Síria e o Iraque vai a ser uma combinação do que suceder dentro do país, trabalhando com a oposição moderada síria, trabalhando com um governo iraquiano que seja inclusivo, e que fixemos uma plataforma de contraterrorismo mais efetiva que faça com que todos os países na região naveguem na mesma direção. Em lugar de tratar de dar um abanão no topo cada vez que essas organizações terroristas possam aparecer, o que temos que fazer é ser capazes de criar associações efetivas.”

O que significa isto em linguagem que todos possamos compreender? Significa que “ou se está com o time ou se está fora dele”. Se está no time dos EUA gozará dos benefícios da “associação”, o que significa que os EUA te ajudarão a se defender contra os grupos terroristas que arma, financia, e apoia logisticamente. (Através dos seus aliados do Golfo).

Se está “fora do time” – como parece estar o senhor Maliki, Washington assobiará para o lado enquanto hordas de malignos canalhas arrancam as cabeças dos seus soldados, queimam totalmente as tuas cidades, e reduzem o teu país a uma anarquia ingovernável. Portanto, há que escolher. Ou participa no jogo e obedece às ordens e “ninguém é prejudicado”, ou fica sozinho e enfrenta as consequências.

Capisce? Obama está dirigindo um grupo extorsionário de proteção exatamente como um artista mafioso barato da chantagem de bairro. E não estou falando metaforicamente. É como o assunto funciona, realmente. O presidente dos EUA está ameaçando um dirigente democraticamente eleito – que, a propósito, foi cuidadosamente escolhido e aprovado pelo governo de Bush – porque se verificou não ser suficientemente servil em se submeter às suas exigências.

Portanto, agora vão substituí-lo por outro sequaz corrupto como Chalabi. Assim é, o safado Ahmed Chalabi voltou a sair da sua teia de aranha e trata de tomar o lugar de Maliki. O seguinte é do New York Times:

“Funcionários iraquianos disseram na quinta-feira que dirigentes políticos iniciaram intensas manobras para substituir o primeiro-ministro Nuri Kamal al-Maliki e criar um governo que supere as crescentes divisões sectárias e étnicas do país, motivados pelo que qualificam de encorajadoras reuniões com funcionários estadunidenses que manifestam apoio a uma mudança de dirigentes… Os nomes mencionados até agora – Adel Abdul Mahdi, Ahmed Chalabi e Bayan Jaber – são dos agrupamentos xiitas, que detêm a maior parte do total de lugares no Parlamento.” ("With Nod From U.S., Iraqis Seek New Leader", ou "Com consentimento dos EUA, iraquianos buscam novo líder", no New York Times)

Lembram-se de Chalabi? O favorito dos neoconservadores, Chalabi. O sujeito que – como assinala o Business Insider – “foi um personagem central na decisão dos EUA de remover o ditador iraquiano há mais de uma década” e “quem ajudou a que a Lei de Libertação do Iraque fosse aprovada pelo Congresso em 1998, uma lei que converteu a mudança de regime em Bagdá em política oficial dos EUA”.

“Chalabi afirmou que Saddam representava uma ameaça iminente para os EUA e que possuía e desenvolvia um arsenal de armas de destruição massiva, (o que) se converteu no ponto de vista da comunidade de inteligência e eventualmente da maioria do congresso dos EUA. Nos primeiros quatro anos do governo de Bush, o INC de Chalabi recebeu US$ 39 milhões do governo dos EUA.” (Business Insider)

É impossível inventar algo semelhante. Portanto, o estimado Chalabi encontra-se na lista de candidatos preferidos para tomar o posto de Maliki. Formidável. Isso apenas ilustra o nível da opinião no que diz respeito à Casa Branca de Obama. Não sei como poderá alguém seguir objetivamente estes acontecimentos e não concluir que são os neoconservadores quem está tomando as decisões. Certamente que o estão fazendo. Chalabi é “o seu homem”. De fato, os objetivos que o governo persegue nem sequer tomam em consideração os interesses dos EUA.

Tenham paciência comigo por um minuto: Suponhamos que temos razão ao crer que o governo fixou os seus pontos de vista em quatro objetivos estratégicos principais no Iraque:

1– Remover al Maliki
2– Obter direitos para bases através de um novo Acordo de Status de Forças (Sofa)
3– Reduzir a influência do Irã na região
4– Dividir o país

Como s beneficiam os EUA com estes objetivos? Os EUA têm numerosas bases e instalações militares no Oriente Médio. Não ganham nada em ter mais uma no Iraque. O mesmo se pode dizer de remover Maliki. Não se pode prever como resultará algo de semelhante. Talvez bem, talvez mal. É impossível de prever. Poderia ser uma dupla, quem sabe? Mas uma coisa é segura: reduzirá ainda mais a confiança nos EUA enquanto sério apoio da democracia. Ninguém vai continuar a acreditar nessa fábula. (Al-Maliki acaba de ganhar a mais recente eleição.)

Quanto a “reduzir a influência do Irã na região”. Isso nem sequer faz sentido. Foram os EUA quem removeram os partidários sunitas do Baath do poder e os substituíram deliberadamente por membros da comunidade xiita. Como temos mostrado em artigos anteriores, a transferência do poder de sunitas para xiitas foi uma parte crucial da estratégia original da ocupação, que foi claramente descabelada desde o primeiro momento.

Foi como se os britânicos invadissem os EUA e decidissem substituir políticos de carreira e burocratas de Washington por empregados desqualificados do setor de serviços dos bairros de Los Angeles. Faz sentido? Os resultados foram um desastre, como alguém com meio cérebro poderia ter predito. Porque o plano era idiota. Nenhum império operou dessa maneira. Está claro que iria surgir uma aliança tácita entre Bagdá e Teerã. A estratégia dos EUA tornou inevitável essa aliança! O Iraque não se movia na direção do Irã. É um disparate. Washington empurrou o Iraque para os braços do Irã. Todos o sabem.

Portanto, e agora? Portanto agora a equipa de Obama quer “refazer as coisas”? É disso que se trata? Na história não se refazem as coisas. A guerra sectária que os EUA iniciaram e promoveram com a sua virulenta estratégia de contrainsurgência – que incluiu a massiva limpeza étnica de sunitas en Bagdá após a enganosa “vaga de fundo” – mudou para sempre o contexto do país. Não há volta atrás. O feito, feito está. Bagdá é xiita e continuará sendo xiita. E isso significa que haverá uma certa conexão com Teerã. Portanto, se os funcionários de Obama se propõem a reduzir a influência do Irã, provavelmente estarão pensando em outra cosa. E estão pensando em outra coisa.

Querem dividir o país segundo um plano israelense a que foi formulado há mais de três décadas. O plano foi a ideia genial de Oded Yinon, que via o Irã como uma séria ameaça para as aspirações hegemônicas de Israel e que, portanto, concebeu um plano para remediar o problema. O que segue é uma recomendação da obra primordial de Yinon intitulada “Uma estratégia para Israel nos anos oitenta”, que é o roteiro que será utilizado para dividir o Iraque:

“O Iraque, rico em petróleo por um lado e dividido interiormente por outro, é um candidato garantido para os objetivos de Israel. A sua dissolução é ainda mais importante para nós que a da Síria. O Iraque é mais forte que a Síria. A curto prazo, o poder iraquiano constitui a maior ameaça para Israel. Uma guerra Irã-Iraque dilacerará o Iraque e causará a sua queda interna inclusive antes de que possa organizar uma luta numa frente ampla contra nós. Todo o tipo de confrontação interárabe nos ajudará a curto prazo e encurtará o caminho no sentido do objetivo mais importante de dividir o Iraque em seitas, tal como na Síria e no Líbano.

No Iraque, é possível uma divisão em províncias segundo linhas étnicas/religiosas como na Síria durante a época otomana. Portanto três (ou mais) Estados existirão à volta das três principais cidades: Bassorá, Bagdá e Mossul, e áreas xiitas no sul se separarão do norte sunita e curdo. É possível que o atual enfrentamento persa-iraquiano aprofunde esta polarização.” ("A Strategy for Israel in the Nineteen Eighties", ou "Uma estratégia para Israel na década de 1980", Oded Yinon, monabaker.com)

Repitamos “Todo o tipo de confrontação interárabe nos ajudará a curto prazo e encurtará o caminho no sentido do objetivo mais importante de dividir o Iraque em seitas, tal como na Síria e no Líbano”.

É esse o plano. Os EUA não beneficiam com este plano. Os EUA não beneficiam com um Iraque fragmentado, balcanizado, fraturado. Os gigantes petroleiros já estão extraindo todo o petróleo que desejam. O petróleo iraquiano é, de novo, vendido em dólares, e não em euros. O Iraque não constitui uma ameaça para a segurança nacional dos EUA. Os planejadores de guerra estadunidenses já conseguiram o que queriam. Não há motivos para regressar e causar mais danos, reiniciar a guerra, dilacerar o país, e dividi-lo em pedaços.

O único motivo para dissolver o Iraque é Israel, que não quer um Iraque unificado. Israel não quer um Iraque que possa se sustentar sobre os seus dois pés. Israel quer assegurar-se de que o Iraque nunca volte a emergir como potencia regional. E existe apenas uma forma de conseguir esse objetivo, ou seja, seguir a receita de Yinon de “uma divisão em províncias segundo linhas étnicas/religiosas como na Síria durante a época otomana. Portanto três (ou mais) Estados existirão em torno das três principais cidades: Bassorá, Bagdá e Mossul.”

É o projeto que o governo de Obama prossegue. Os EUA nada ganham com este plano. É tudo para Israel.

*Mike Whitney escreve análises para o portal CounterPunch e colaborou com o livro "Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion" ("Sem saída: Barack Obama e a Política da Ilusão"), AK Press, 2012.

Fonte: CounterPunch
Tradução do portal português O Diário.info e revisão do Portal Vermelho