Érico Firmo: As muitas faces do escândalo dos ingressos

O Brasil ajuda a desvendar um dos muitos casos obscuros dos quais a entidade máxima do futebol é acusada. Irregularidades em ingressos envolvendo gente próxima demais a figurões da federação internacional de futebol não começaram aqui. Mas podem sofrer seu maior baque em terras brasileiras.

 A observação da realidade, sobretudo quando envolve paixões, torna difícil que se enxergue meios termos. Entre o branco e o preto, a vida possui escalas acinzentadas. Nuances possíveis entre extremos. A Fifa era tratada como inimiga pública número um e a Copa do Mundo era, por isso, maldita. A competição começou e os excelentes jogos, a organização que não compromete, o clima que se cria, o fascínio do futebol e, como por encanto, tudo fica ótimo, a Copa deixa de ter qualquer problema e a Fifa passa a ser legal. Não é assim. E o Brasil ajuda a desvendar um dos muitos casos obscuros dos quais a entidade máxima do futebol é acusada. Irregularidades em ingressos envolvendo gente próxima demais a figurões da federação internacional de futebol não começaram aqui. Mas podem sofrer seu maior baque em terras brasileiras. Em mais um exemplo da complexidade a que me refiro, o fato de a Copa ser no Brasil expôs uma face obscura que envolve o comando da Fifa. Afinal, as relações entre as esferas não são tão simples.

O desvendar de uma velha história

O enredo é antigo. Na Copa de 1998, o próprio comitê organizador admitiu critérios políticos na escolha das agências que venderam pacotes turísticos. E reconheceu "falhas graves" na distribuição, que deixou fora do estádio até 18 mil torcedores de vários países, que tinham comprado ingressos, mas não conseguiram assistir aos jogos. As boas relações de donos das empresas com a entidade ajudaram a selecionar as operadoras oficiais. Inclusive, na seleção de quem seria escolhido para fazer as vendas oficiais, nos casos em que as 'preferidas" fizeram propostas inferiores, elas foram informadas para aumentar os valores. Por outro lado, comprar pacotes, por exemplo, com a empresa de Pelé – que fazia oposição aos dirigentes da CBF – poderia tornar mais difícil obter ingressos.

Em 2002, a Fifa decidiu centralizar as operações em uma única empresa, pertencente a amigos do presidente da Fifa, Joseph Blatter (foto). Mas, juntamente com as péssimas arbitragens, a venda de ingressos acabou sendo reconhecida pela Fifa como a maior falha da Copa da Coreia do Sul e do Japão. Mesmo em estádios nos quais a procura por ingressos era grande, milhares de lugares ficaram vazios. Até na final, havia mais de duas mil cadeiras vagas. A maioria porque a empresa não conseguiu entregar os ingressos vendidos.

Em 2006, o sistema mudou de novo, e se agravou cada vez mais. Antes da Copa, estourou o escândalo no qual Jack Warner, na época vice-presidente da Fifa e presidente da Confederação da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf), transferiu todos os ingressos que seriam destinados a Trinidad e Tobago para sua própria empresa de turismo revender. Seriam sete mil para cada partida da seleção, que disputaria sua primeira Copa – e até hoje única. Sem falar de denúncias de sobrepreço que chegaria a 10 vezes o valor do bilhete. Mesmo após o escândalo, permaneceu à frente da Concacaf até 2011. Na mesma Copa, outro membro do Comitê Executivo da Fifa – Ismail Bhamjee, de Botsuana – foi flagrado vendendo ingressos pelo dobro do valor. Nesse caso, a punição foi mais rápida e o dirigente, menos influente, foi expulso ainda durante a Copa.

Mas nunca se lançou luz sobre escândalo de tamanhas dimensões como agora. Era difícil ir ao Castelão e não tropeçar em cambistas, que, na fila para entrar no estádio, tinham cartazes oferecendo ingressos. Sem falar do mercado nas redes sociais, a preços escorchantes. O que se revelou, entretanto, foi algo muito maior. Nenhum escândalo dessa natureza de proporções consideráveis ocorre se não na vizinhança imediata da Fifa. Esquemas envolviam gente influente, com trânsito livre na entidade, entre jogadores e técnicos. A organização da Copa não era vítima, mas sócia – se não do esquema, dos acusados de envolvimento. Gente que negociou e fechou acordos com hotéis brasileiros e governos locais. Com intermediário dentro da Granja Comary, com contato com a seleção brasileira e acesso livre na concentração. Não, não há santos.

A fraude envolvia uma quadrilha internacional de venda irregular de ingressos, em atuação desde a Copa de 2002, que passou a atuar aqui em parceria com brasileiros. Cambistas oficiais. Foram descobertos por policiais disfarçados de torcedores e interceptações telefônicas, feitas com autorização da Justiça.

A base de operações da quadrilha era o hotel Copacabana Palace, que abriga a cúpula da entidade máxima do futebol e onde Whelan foi abordado pela Polícia. No momento da prisão, estavam no mesmo ambiente o príncipe Albert, de Mônaco e o ex-jogador argentino Caniggia, além de dirigentes da Fifa.

Golaço do Brasil

O delegado responsável pelas investigações disse ter recebido cumprimentos da Scotland Yard, a polícia da Inglaterra, que investigava o caso há algum tempo, sem conseguir provas suficientes. O personagem central é Raymond Whelan, preso anteontem e solto na madrugada de ontem. Ele é diretor da empresa que detém exclusividade na negociação dos melhores e mais caros ingressos para a Copa. Ou seja, a negociação era top. Whelan pagou US$ 300 milhões à Fifa pelos direitos deste Mundial, o que já lhe antecipou exclusividade sobre as Copas de 2018 e 2022. Seu “operador” seria o franco-argelino Mohamadou Fofana. Tem ligações com jogadores e ex-jogadores e usava carro e credencial da Fifa. Foi preso na semana passada.

Érico Firmo é jornalista e colunista do jornal O POVO

Fonte: O POVO

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