PEC 215 – Uma guerra inconstitucional e ruralista

Atualmente cerca de 12,90% do território brasileiro está definido como terra indígena segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio). Esse processo, considerado lento, inclusive por funcionários do próprio órgão responsável é um dos principais motivos dos conflitos fundiários que assolam o Brasil e geram mortes no campo. 

Por Waldemir Soares Junior, para o Vermelho

Parque do Xingu - Reprodução

A tensão no campo guarda relação com o avanço do agronegócio já que a demarcação e homologação de terras tradicionais cria uma fronteira para a atividade rural de extensão, tais como: pecuária, plantio de monocultura e exploração madeireira.

Até dezembro de 2013, segundo a Funai, existiam 115 áreas em estudos, 30 delimitadas e 51 declaradas indígenas. Com homologação foram definidas 2 e regulamentadas 428 áreas. Esse processo lento de estudos realizados pela Funai é necessário e complexo, todavia, essa demora é agravada pela inercia do Poder Executivo em elaborar o decreto de homologação, ato privativo da Presidência com necessidade de previsão orçamentária.

Neste sentido é evidente a necessidade de modificação do processo de demarcação de terras indígenas de forma a garantir seus direitos fundamentais que passa indubitavelmente pela terra. No entanto, a Proposta de Emenda Constitucional – (PEC 215/2000), aqui discutida, além de inconstitucional, pode agravar ainda mais a problemática dos  conflitos fundiários, diante da representatividade no Congresso Nacional do agronegócio e seus interesses territoriais.

Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000

A Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000 – PEC 215 – foi apresentada à Câmara dos Deputados em 28 de março de 2000, pelo Deputado Almir Sá e outros. Essencialmente a proposta via alterar a competência para a homologação das demarcações de terras indígenas em transito e ratificar àquelas já finalizadas. Para tanto, a proposta busca acrescentar o inciso 18 ao art. 49; modificar o § 4º e acrescenta o § 8º ambos ao art. 231, da Constituição Federal de 1998, vejamos:

Art. 1º Acrescenta-se ao art. 49 um inciso após o inciso 15, renumerando os demais:

Art. 49 É de competência exclusiva do Congresso Nacional:

18 – aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas;

Art. 2º O § 4º do art. 231 passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 231.  § 4º As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 8º Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei.

O instrumento constitucional – PEC – é uma proposta para incluir e/ou alterar determinados artigos, parágrafos e incisos da Constituição. Seu regimento está contido no art. 60 da carta magna, incluindo procedimento e possibilidades, ou seja, não são todos os artigos que podem sofrer a ação do Poder Constituinte Reformador ou Derivado. Artigos que versem sobre a separação dos poderes (art. 60, § 4º, 3º) e direitos e garantias fundamentais (art. 60, § 4º, 4º) não podem ser matéria de Proposta de Emenda a Constituição, portanto, o poder reformador do Constituinte derivado é limitado.

No que pese qualquer entendimento contrário, é justamente, nos incisos, 3 e 4 do § 4º do art. 60 da Constituição que a PEC 215/2000 entra em rota de colisão.

Atualmente sob a responsabilidade de relatoria do Dep. Osmar Serraglio (PMDB-PR) na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a PEC 215, vem sendo alvo de duros ataques realizados pelos Povos Indígenas que serão diretamente afetados pelas mudanças nos procedimentos de demarcação e homologações de terras pelo Executivo se aprovado o texto proposto pela Emenda elaborado em consonância com os interesses da bancada ruralista.

O processo de demarcação e homologação de terras indígenas

O processo de demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas é regido pelo dec. nº 1.775/96, que em conformidade com seu art. 1º o confere caráter administrativo e de competência do “órgão de assistência ao índio”, no caso a Funai, ligada ao Ministério da Justiça.

O dec. nº 1.775/96 toma como base para sua fundamentação legal, os art. 231 da Constituição e o art. 2º, 9º da lei nº 6.001/73, o último, também conhecido como Estatuto do Índio.

O presente decreto deixa claro que o procedimento para a demarcação de terras e seus critérios são de caráter administrativo e submetidos a Funai, então órgão competente ligada ao Ministério da Justiça. Doravante qualquer entendimento contrário, a situação dos povos tradicionais e suas garantias, tem por necessidade um órgão técnico e especifico para análise etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental (Art. 2º, § 1º do Dec. nº 1.775/96).

Após o processo administrativo de demarcação, a terra indígena será objeto de homologação mediante decreto (Art. 2º, § 1º do Dec. nº 1.775/96), em conformidade com a Constituição Federal e posteriormente, a FUNAI promoverá a inscrição da área homologada no respectivo Cartório de Registro de Imóveis da localidade e na Secretária de Patrimônio da União (SPU) (Art. 6º do Dec. nº 1.775/96), para que esta tome os efeitos legais e de uso (Art. 20, inc. XI da Constituição Federal de 1988.)

Por todos os procedimentos discorridos, tem se, atualmente que o procedimento de demarcação e homologação de terras indígenas é administrativo e de caráter eminentemente técnico, de competência de órgão ministerial sob responsabilidade do Poder Executivo.

Hamonia entre poderes

A Constituição promulgada em 8 de outubro de 1988 é estruturada na divisão dos Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses poderes se compõem harmônicos entre si e cada um sua função para garantia do Estado Democrático de Direito. Esse principio de administração do Estado encontra amparo nos art.2ª como segue: “São Poderes da União, Independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Essa harmonia é fundamental e base estrutural da Republica e sua administração sendo que todos os cidadãos, em última análise, tem acesso ao judiciário, este como poder regulador para analisar eventual ineficiência
dos poderes.

Qualquer ingerência de um Poder sobre outro se reveste de inconstitucionalidade. E assim, decidiu o Supremo Tribunal Federal em ADIn 4.102: “ As restrições impostas ao exercício de competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de politicas públicas, importam em contrariedade ao principio da independência e harmonia entre os Poderes (STF; ADIn 4.102, rel. Min. Cármen Lúcia, Plenário, j. 26.05.2010). Nota-se que é exatamente o que propõe a PEC 215/2000, quando busca incluir o inciso 18 ao art.49 da CF/88 com o seguinte texto: “aprovar a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas” Os pontos “aprovar a demarcação” e “ratificar as demarcações já homologadas” são flagrantes na ingerência sobre ações de competência do Poder Executivo, portanto, se reveste de inconstitucionalidade baseada no art. 2º e art. 60º, 3º da CF/88.

Garantias fundamentais indígenas e o agronegócio

As garantias fundamentais dos povos indígenas são amparadas pelos artigos 5º e 231 da CF/88 quando este último trata da questão fundiária em sua parte final: “(…) as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União, demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Tem-se, portanto, a responsabilidade do Poder Executivo na manutenção e proteção fundiária dos povos tradicionais. Em sentido oposto, a PEC 215/2000 busca retirar do Poder Executivo essa prerrogativa e transferi-la ao Legislativo, deixando os povos tradicionais a mercê da democracia representativa que não os representa diante da correlação de forças existentes no Congresso Nacional, em especial, a Bancada do Agronegócio.

Todo esse aparato defende interesses próprios e do agronegócio. A alteração na forma de demarcação e homologação das terras indígenas, levando-a para o Congresso Nacional, reduzirá o acesso ao direito à terra de forma substancial frente o inquestionável interesse financeiro em jogo.

Não é demais salientar que, uma vez homologada, a terra tradicional passa a pertencer a União e fica impossibilidade de manejo não tradicional e de larga escala ou extensão, criando no Brasil várias fronteiras agrícolas e impedindo a expansão do agronegócio.

Não bastasse, além de inconstitucional do ponto de vista da harmonia entre os Poderes, a PEC 215/2000, também reduz à garantia fundamental (Direitos Humanos) de acesso à terra contida na segunda parte do art. 231 da CF/88: “(…) as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União, demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” O acesso a terra e manutenção de sua cultura tradicional é parte das garantias fundamentais dos povos indígenas instituída na Constituição pelo constituinte originário, portanto, sua redução e alteração não pode ser realizada por meio de Emenda a Constituição conforme preceitua o art. 60, inc 4º do texto constitucional.

As razões transcritas tornam o texto da PEC 215/2000 flagrantemente inconstitucional e tendencioso de forma a prejudicar as garantias fundamentais dos povos indígenas em privilégio do agronegócio representado por sua bancada no Congresso Nacional.

*É advogado, militante do PCdoB em São Carlos (SP)