Abbas lembra à ONU compromisso com a paz, contra impunidade de Israel

O presidente do Estado ocupado da Palestina Mahmoud Abbas discursou na Assembleia Geral das Nações Unidas na sexta-feira (26) lembrando aos presentes da responsabilidade negligenciada diante do martírio do povo palestino, uma constante na política agressiva do sionismo, a ideologia racista e colonizadora que sustenta o governo de Israel. Mas a Palestina constrói alternativas no seu reconhecimento e no direito internacional, pela justiça e o fim da ocupação.

Por Moara Crivelente*, para o Vermelho

Presidente Mahmoud Abbas - Nasser Shiyoukhi/AP

Robert Serry, o enviado especial do Secretário Geral da ONU Ban Ki-Moon para o Oriente Médio, visitou a Faixa de Gaza no início do mês, dias após o anúncio do cessar-fogo que suspendeu a campanha de bombardeios israelenses que já duravam mais de 50 dias. Em reunião no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 16 de setembro, ele disse: “Testemunhei níveis verdadeiramente chocantes de destruição da infraestrutura, hospitais, escolas… bairros extensos estão em total ruína.”

Serry confirmou dados já divulgados pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Segundo o enviado, 18.000 casas foram destruídas ou severamente danificadas e 100 mil pessoas perderam seus lares, o que “deixou famílias destroçadas no desespero”. Mais de 65.000 palestinos obrigados a se deslocar continuavam em abrigos temporários. Cerca de 2.150 palestinos foram mortos; a maioria era civil, inclusive mais de 500 crianças, 250 mulheres e 11 funcionários da Agência da ONU para Assistência e Trabalhos no território sitiado, a UNRWA, e mais de 11.000 palestinos ficaram feridos.

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Todos estes números – que nos documentos divulgados pela OLP estão acompanhados de extensas listas de nomes, idades e locais de residência – são frutos, de acordo com Serry, de mais de cinco mil ataques israelenses. O Exército de Israel indicou ter demolido ao menos 32 túneis que levariam até seu território. Do lado palestino, em sua resistência, 3.500 foguetes foram lançados contra Israel, enquanto 700 foram interceptados pelo moderno sistema antimíssil Cúpula de Ferro, financiado pelos Estados Unidos. Além disso, 66 soldados israelenses e seis civis – inclusive um jornalista estrangeiro – também morreram.

Durante a ofensiva, enquanto os bombardeios israelenses elevavam exponencialmente o número de vítimas fatais entre os palestinos, o presidente dos Estados Unidos Barack Obama ainda endossou o envio de US$ 225 milhões – além dos US$ 3 bilhões anuais enviados ao setor militar sionista desde a década de 1970 – especificamente à Cúpula de Ferro e a outras medidas de “segurança” na fronteira, inclusive para a manutenção das tropas, tanques e artilharia pesada, enquanto não invadiram Gaza por terra, em 17 de julho, ou após a sua retirada, semanas depois.

Reagindo às alegações das autoridades israelenses de “parcialidade” da ONU – o chanceler Avigdor Lieberman chegou a taxar o Conselho de Direitos Humanos de “conselho de direitos dos terroristas” – o “Secretário-geral reitera que deve haver responsabilização pelas denúncias de violação do direito internacional dos dois lados durante as hostilidades,” disse Serry, apesar da abissal desproporcionalidade e assimetria da situação.

“O acordo de cessar-fogo [anunciado em 26 de agosto] fez provisões gerais sobre a entrada de ajuda humanitária, de assistência e de materiais de construção, a expansão da zona de pesca para seis milhas náuticas [das três milhas permitidas àquela altura, uma violação de acordos anteriores, que estabelecem 20 milhas, ou 37 km]. Esperamos que qualquer arranjo a seguir seja o mais claro possível sobre a manutenção por tempo indefinido do cessar-fogo e sobre levantar o cerco, levando em conta o quadro da resolução 1869 do Conselho de Segurança.”

Serry referia-se à resolução aprovada ainda durante a ofensiva de Israel contra Gaza entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, Chumbo Fundido, que matou cerca de 1.400 pessoas e deixou a infraestrutura e as casas dos palestinos destroçadas. Ao contrário de dezenas de outras vezes, os EUA não vetaram, mas se abstiveram durante a votação da resolução que previa o fim do bloqueio imposto por Israel a Gaza há quase oito anos. O mapa mostra a progressão da limitação imposta pelo Exército israelense até 2008.

Já 2014, que foi determinado pela ONU como o Ano Internacional de Solidariedade à Palestina, lembrou o presidente Abbas, na Assembleia Geral, “Israel escolheu torná-lo o ano de uma nova guerra de genocídio perpetrado contra o povo palestino.” As autoridades israelenses ragiram, de acordo com o jornal Times of Israel, neste sábado, acusando Abbas de proferir um discurso "de mentiras e incitação" e de não ser "um parceiro para a paz", recursos frequentes do governo de Israel para transferir a responsabilidade pela falta de avanço diplomático e pela violência aos palestinos.

Como contexto deste ano ficaram marcados o fim de mais um período inócuo de negociações entre Israel e a Palestina – que pode se resumir com o aumento em espaço e profundidade da ocupação sobre a Cisjordânia, com a expansão sistemática das colônias ilegais – e o anúncio de acordo de reconciliação entre o Hamas, à frente do governo de Gaza – e taxado de “organização terrorista” pelo discurso da violência de Israel e seus aliados – e a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), abrindo o caminho para o fim da fratura que durava oito anos. Mesmo com a agressão e as sanções israelenses, na quinta-feira (25), líderes do Hamas e do Fatah, à frente da Autoridade Palestina, anunciaram o breve retorno às negociações para a consolidação de um governo de unidade.

Mas para justificar a brutalidade do ataque contra os palestinos de Gaza e da Cisjordânia, com duas “operações militares” diferentes, o sequestro e assassinato de três jovens colonos israelenses na Cisjordânia foram usados como pretexto para a intensificação do cerco e da opressão dos palestinos, com mais de 1.500 detenções arbitrárias, cerca de 40 mortes no território e, em seguida, a ofensiva contra Gaza, já que as autoridades israelenses determinaram o Hamas como culpado pelas mortes dos três colonos.

Pela libertação palestina e o fim da impunidade israelense

Antes de discursar na Assembleia Geral, Abbas reuniu-se com chefes de Estado como o presidente turco Recep Tayyip Erdogan para articular o avanço da sua estratégia de efetivação do Estado da Palestina enquanto sujeito do Direito Internacional. Desde o início do ano a diplomacia palestina já vem enviando cartas aos depositários de tratados importantes, para adesão: são mais de 60 convenções e acordos constitutivos de organizações internacionais às quais a Palestina aderiu ou está neste processo. Mas é ao Tribunal Penal Internacional que os líderes palestinos se voltam com expectativas de finalmente entregar a liderança israelense à responsabilização pelos crimes de guerra e crimes contra a humanidade perpetrados não apenas em suas grandes ofensivas, mas no cotidiano de um regime de ocupação militar e segregação racista, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

  Foto: Reuters
Abbas lembrou que já havia se dirigido aos chefes de Estado e Governo mundiais em 2012, quando outra operação militar, em novembro, vitimava os palestinos de Gaza. Ele disse: “certamente, não há uma pessoa no mundo que precise da perda de vida de dezenas de crianças palestinas para confirmar que Israel insiste na ocupação (…). Não é necessário que haja uma nova e devastadora guerra para que se dê conta da ausência de paz.” A diferença hoje, lembrou o presidente palestino, é que “a escala dessa guerra genocida é mais elevada, e que a lista de mártires, especialmente crianças, é mais longa; (…) é inconcebível que qualquer pessoa possa, hoje, alegar que não se deu conta da magnitude do horror desses crimes”. Abbas disse esperar, por outro lado, que não haja atores “tentando ajudar a ocupação, desta vez, na impunidade, ou na tentativa de evadir a responsabilização por seus crimes.”

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou ainda em julho – com um único voto contrário, o dos Estados Unidos – a formação de uma comissão de inquérito para investigar as denúncias de crimes de guerra, que deverá entregar resultados no início de 2015. Entretanto, a mídia e as autoridades israelenses reagem através de acusações e ataques pessoais aos membros da comissão, especialmente ao chefe, o canadense William Schabas, e rechaçam cínica e incisivamente, através de um elaborado aparato de propaganda, as denúncias já levantadas pelos palestinos, pelos funcionários da ONU em Gaza e por organizações nacionais e de defesa dos direitos humanos , como a israelense B’Tselem e outras internacionais. Israel emprega a mídia, os “comentaristas de guerra”, a Advocacia Geral Militar, órgão do Exército, e equipes de Relações Públicas da Chancelaria para espalhar uma propaganda abrangente que usa até mesmo o Direito Internacional Humanitário para justificar o massacre dos palestinos.

Em 2009, a história foi idêntica, incluindo a virulência dos ataques à comissão de inquérito da ONU e às suas conclusões, o que levou o documento e o líder da missão ao ostracismo. Desta vez, a Palestina articulou com um grupo de países árabes o rascunho de uma resolução a ser apresentada ao Conselho de Segurança, inclusive para impulsionar os esforços diplomáticos pela paz, de acordo com o presidente Abbas, que disse contar com os que se comprometam com a garantia de que a Palestina não será mais alvo das guerras e das atrocidades.

Os resultados da agressão israelense ficaram mais evidentes, pontuou ele, mas a impunidade ainda ameaça a justiça, ainda que o presidente Barack Obama, que se mostrou fiel ao sionismo israelense, tenha advertido para a “insustentabilidade” da situação em Gaza. Insustentável é a sua condescendência com os graves crimes cometidos diariamente pela ocupação israelense e a violação sistemática de todas as resoluções e apelos pela libertação da Palestina. O mundo ainda tem este compromisso a cumprir.

*Moara Crivelente é cientista política, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando a presidência do Conselho Mundial da Paz.