Crimes de guerra: Premiê de Israel tenta se safar das denúncias na ONU

Em seu oportunismo e na propaganda que sustenta a ocupação da Palestina, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu discursou na Assembleia Geral da ONU para ligar os palestinos à mais recente empreitada do imperialismo no Iraque e na Síria, apresentada como a luta contra o terrorismo. Ele buscou angariar apoio e empatia na sua defesa cínica contra as denúncias de crimes de guerra perpetrados contra os palestinos e na justificação do último massacre em Gaza.

Por Moara Crivelente*, para o Vermelho

Netanyahu - Reuters

“Ao dirigir-me à Assembleia Geral da ONU, vou refutar todas as mentiras contra nós e vou dizer a verdade sobre o nosso Estado e sobre os soldados heroicos das FDI [“Forças de Defesa de Israel”], o Exército mais moral do mundo,” disse Netanyahu à imprensa israelense ao embarcar para Nova York, no fim de semana. Nesta segunda-feira (29), ele abriu seu discurso com o típico apelo etnocêntrico sobre o “povo de Israel” que, supostamente ao contrário dos seus vizinhos árabes e persas, prefere a paz à violência.

Netanyahu acusou o presidente palestino Mahmoud Abbas de mentir sobre as ações de Israel. O mesmo fazem as autoridades israelenses contra todos os críticos da política opressiva e criminosa da ocupação e do massacre dos palestinos. Estão no ar os truques da "hasbara", a tática sionista da propaganda – disfarçada de "diplomacia pública" – empregada de forma tão exímia pelo premiê. Será neste esforço enquadrada a visita que ele fará ao presidente estadunidense Barack Obama na quarta-feira (1º/10).

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Assim como durante as diversas e devastadoras operações militares e na escalada frequente da violência cotidiana contra a Palestina, a aposta oficial de Israel é deslegitimar as críticas e os seus autores, com ataques pessoais e manipulações claras dos princípios do direito internacional, principalmente através da mídia. A estratégia é aberta e se dá na articulação entre equipes jurídicas e de relações públicas do Exército, da Chancelaria e do Escritório do Primeiro-Ministro na construção de retóricas de defesa que desqualificam qualquer denúncia sobre as práticas da ocupação.

Como em 2013, quando exibiu um desenho supostamente didático de uma bomba prestes a explodir, Netanyahu exibiu nesta segunda-feira, durante o seu discurso, uma imagem que pretendia corroborar as alegações insistentes do aparato criminoso israelense sobre o disparo de foguetes pela resistência palestina contra Israel desde locais civis. Na imagem em questão, crianças parecem brincar ao lado de um morteiro.

Durante toda a última ofensiva militar contra a Faixa de Gaza, lançada por Netanyahu em 8 de julho e suspensa em 26 de agosto, após 50 dias de bombardeios e mais de 2.150 vítimas fatais, a principal estratégia de Israel para “justificar” as mortes de mais de 500 crianças e o fato ao menos 70% dos mortos serem civis foi esquivar-se das acusações de crimes de guerra e outras violações do direito internacional humanitário ao acusar os palestinos – nomeadamente o Hamas, partido político à frente do governo de Gaza – pelas mortes civis. Segundo as páginas oficiais do Exército e da Chancelaria israelense, dos discursos dos seus líderes e do seu maior porta-voz, a mídia convencional, o Hamas usa civis como “escudos humanos” e dispara foguetes desde locais habitados por civis, o que os tornaria “alvos militares legítimos”.

O simplismo e o cinismo da manipulação do direito internacional para encobrir a matança indiscriminada são assustadores. Não só as autoridades israelenses assumem estar cientes de que seus bombardeios matariam civis, como também admitem terem tomado a decisão do ataque levando em conta o direito internacional, como já foi analisado nas ofensivas anteriores, esticando-o até os limites engolidos por seus grandes aliados. Os Estados Unidos, por exemplo, foram o único membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU a votar negativamente à composição de uma comissão de investigação das denúncias de crimes de guerra, em sessão conduzida ainda em julho, durante as ofensivas israelenses “Margem Protetora”, contra a Faixa de Gaza, e a “Guardião Fraterno”, contra a Cisjordânia.

Para não ficar no limbo, o Exército israelense disse que investigará alguns dos episódios mais polêmicos, que fizeram o mundo se levantar contra a operação militar e o massacre dos palestinos, o que causou a preocupação dos líderes de Israel e a sua reação com a propaganda, para maquiar suas ações e a atuação do seu “Exército moral”. Entretanto, até mesmo a organização israelense de defesa dos direitos humanos B’Tselem, que conduz sua própria investigação, disse há semanas que não vai cooperar com o inquérito do Exército devido à falta de capacidade ou vontade de levar a questão à justiça.

Instrumento de propaganda: O terrorismo

Israel classifica o Hamas como “organização terrorista”, num esforço para deslegitimá-lo enquanto ator político e de resistência. Apostando nisso e na aliança criminosa estadunidense, Netanyahu aproveitou a mobilização e articulação do imperialismo em mais uma ação militar, desta vez contra o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIL), para ligar o grupo extremista ao Hamas. Segundo o premiê, ambos são “ramos da mesma árvore venenosa”, usando da propaganda dos EUA para angariar apoio à sua guerra – uma guerra contra o seu próprio constructo para ameaçar governos na região – e uma interpretação deliberadamente falsa da situação.

Netanyahu disse que os mesmos países que apoiam os EUA nos bombardeios arbitrários deveriam apoiar Israel na ofensiva contra o Hamas, o que significa necessariamente o massacre reiterado dos palestinos. Nos últimos cinco anos, Israel lançou três “operações militares” contra Gaza – além de diversos ataques aéreos, transfronteiriços ou marítimos contra o território sitiado há quase oito anos – matando cerca de 3,6 mil palestinos, além da ocupação multidimensional e abrangente da Cisjordânia, sujeita a outra “operação militar”, a "Guardião Fraterno", também supostamente contra membros do Hamas, desde 12 de junho.

A perseguição ao movimento de resistência islâmica é apenas uma encenação e a escolha de um bode expiatório para conduzir a opressão dos palestinos e sustentar – ou melhor, expandir exponencialmente – a ocupação da Palestina. O presidente Abbas apelou à ONU para que cumpra o seu compromisso há tantas décadas postergado com a libertação dos palestinos e com a responsabilização dos líderes israelenses por trás de tantos crimes de guerra perpetrados contra o seu povo. Netanyahu sustenta a continuidade da ocupação, embora tenha apresentado trecho do seu discurso como um chamado à diplomacia, aos países árabes pela apresentação de um novo plano de paz, o enésimo em mais de seis décadas desde o estabelecimento do Estado de Israel e a inauguração de uma nova e longa fase de ocupação da Palestina.

Abbas reafirmou seu compromisso com os diálogos de paz, embora este processo, enquanto mediado pelos Estados Unidos, continue favorecendo a colonização israelense da Palestina e oferecendo condescendência aos líderes israelenses em suas diversas violações do direito internacional humanitário. O presidente Abbas insiste em deixar claro que os palestinos optam pela diplomacia, enquanto Israel opta pela ocupação. Além disso, Khaled Meshaal, líder do Hamas, já afirmou que sua luta de resistência não é contra o povo judeu, mas contra o ocupante; porém, Netanyahu o citou em seu discurso fazendo um paralelo com o posicionamento extremista do EIIL para continuar manipulando a equivocada concepção de conflito religioso. Esta interpretação é mais facilmente vendida pela propaganda de guerra e de colonização para angariar apoio à posição de “um povo judeu” que se defende da violência dos palestinos, dos persas, dos sírios, dos libaneses e, recentemente, dos movimentos sociais que protestaram em todo o mundo contra o massacre palestino nas mãos de Israel, taxados de antissemitas – mesmo quando também compostos ou até liderados por judeus, apresentados pelo sionismo como os semitas por excelência.

Neste sentido, o premiê voltou a promover Israel como uma “ilha de democracia” no Oriente Médio, identificada com os valores ocidentais democráticos e liberais em um mar de radicalismo. As retóricas discursivas são tão retrógradas, anacrônicas e tergiversadas que qualquer análise desse discurso leva ao fastígio da repetição desanimadora e do confronto com ideais de um “excepcionalismo” patético e repulsivo, assim como acontece no exercício de análise do discurso estadunidense. Não é à toa que o sionismo em que se fundou Israel e que se promove como verdade absoluta, manipulando e apropriando-se do Judaísmo, correspondeu-se tão apropriadamente com o imperialismo europeu do início do século 20 e corresponde-se diretamente com o imperialismo estadunidense.

Foi irônica a associação feita por Netnayhu entre o nazismo e o extremismo – que ele classificou de islamismo – na defesa de uma raça ou uma fé suprema, quando é exatamente isso o que o sionismo que sustenta o regime israelense promove em âmbito nacional e entre seus pares que compõem lobbies para a propaganda de Israel no exterior. É extrema a hipocrisia de Netanyahu na acusação contra os seus vizinhos árabes e persas e contra os palestinos cujos territórios Israel ocupa militarmente ou com colônias ilegais, que se proliferam a ritmo acelerado. Como disse Abbas em seu discurso, o governo israelense escolheu o Ano Internacional de Solidariedade com a Palestina para promover outro episódio do genocídio palestino, já cotidianamente massacrado, ocupado e despojado, uma afronta ao mundo e à ONU, que se comprometeu com a proteção do povo palestino e o fim da ocupação israelense.

*Moara Crivelente é cientista política, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) assessorando a presidência do Conselho Mundial da Paz.