UNE debaterá “preconceito linguístico” em sua Bienal de Cultura

 A União Nacional dos Estudantes (UNE) discutirá as relações entre a língua e a sociedade, no Brasil, durante a sua nona Bienal, realizada no pŕoximo mês de janeiro, no Rio. O evento, considerado o maior festival estudantil da América Latina, terá dessa vez o tema #vozesdobrasil, reunindo estudiosos, artistas, movimentos sociais e educadores para refletir sobre a língua como uma das principais manifestações da brasilidade.

Bienal da UNE - UNE

Um dos convidados para o evento, o professor Marcos Bagno do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB), concedeu entrevista para a Bienal da UNE, explicando o conceito de preconceito linguístico, que historicamente desconsidera as variações regionais da língua e a forma de expressão das classes mais baixas.

“Como todo preconceito, o linguístico é a manifestação, de fato, de um preconceito social, porque o que está em jogo não é a língua que a pessoa fala, mas a própria pessoa como ser social”, afirma Bagno, referência na área da sociolinguística no país. “Rejeitar a língua é rejeitar a própria pessoa e a comunidade de que ela faz parte”, completa.

As inscrições para a Bienal da UNE estão abertas no site oficial. Podem se inscrever estudantes em geral e aqueles que desejam apresentar trabalhos nas áreas da música, literatura, cinema, artes cênicas, artes visuais, artes plásticas, extensão universitária, ciência e teconologia.

Veja a íntegra da entrevista com o professor Marcos Bagno:

UNE: O que é o preconceito linguístico?

Marcos Bagno: O preconceito linguístico é a atitude que um indivíduo ou um grupo social assume diante de algum modo de falar que é diferente do seu. Pode ser uma variedade linguística social (usada por determinada classe social) ou regional, mas também pode ser uma outra língua, no caso de sociedades plurilíngues. Como todo preconceito, o linguístico é a manifestação, de fato, de um preconceito social, porque o que está em jogo não é a língua que a pessoa fala, mas a própria pessoa como ser social. Uma vez que a língua é parte fundamental da identidade de um indivíduo e de um grupo social, rejeitar a língua é rejeitar a própria pessoa e a comunidade de que ela faz parte.

O que é um erro de português?

Na concepção do senso comum, o “erro de português” é qualquer uso linguístico que não esteja previsto nos instrumentos normativos tradicionais, a gramática e o dicionário. No entanto, não existe uma concepção única e homogênea do que seja o português “correto” nesses instrumentos normativos, porque os gramáticos e dicionaristas têm posturas diferentes diante dos usos da língua: alguns gramáticos admitem certas formas inovadoras, enquanto outros ainda as rejeitam, por exemplo. Além disso, a noção de “erro” está muito vinculada à posição que uma pessoa ocupa na pirâmide social. Os usos já bem fixados entre as classes sociais privilegiadas, mesmo quando contradizem as prescrições tradicionais, passam despercebidos e não provocam reações extremadas: ao contrário, a atitude mais geral é do tipo “pode até estar errado, mas todo mundo fala assim”. Por outro lado, se o uso vem das camadas inferiores, nenhuma relativização é possível: é erro e ponto final. Como tudo em sociedade, o que é certo e errado depende de quem utiliza esses rótulos contra o quê e contra quem.

Como se deu o processo de construção da língua portuguesa falada no Brasil? Por que essa diferença com a língua escrita formal?

Como país resultante de um processo colonial, a elite brasileira sempre importou seus modelos culturais, e faz isso até hoje. No caso da língua, mesmo após a independência e as tentativas dos intelectuais românticos de valorizar os usos propriamente brasileiros do português, o modelo que acabou vencendo foi mesmo o do português europeu escrito literário. Os linguistas brasileiros sustentam a tese de que já no final do século XIX existia uma gramática própria do português brasileiro, com características bem diferentes da gramática do português falado em Portugal. No entanto, pela rejeição que nossas camadas dominantes sempre tiveram com relação ao que é propriamente nosso, o reconhecimento do português brasileiro como uma língua autônoma e diferente do europeu até hoje encontra forte resistência.

Qual a influência dos grandes meios de comunicação na criação de um padrão linguístico para o Brasil?

A televisão foi um meio de comunicação muito valorizado pela ditadura militar para promover a integração ideológica do Brasil. Com isso, o país se tornou um dos que apresentam a maior cobertura televisiva do mundo. Praticamente toda residência brasileira tem televisão, mesmo as mais pobres e mais afastadas dos grandes centros urbanos. Como braço ideológico da ditadura, a TV Globo se tornou essa potência hegemônica que é ainda hoje, embora já venha sofrendo a concorrência da internet. O padrão linguístico difundido pela TV Globo de fato se firmou como uma espécie de “objeto de desejo” da maioria da população. Ele pretende ser “neutro”, isto é, não ser marcado por nenhum traço regional mais saliente. No entanto, como não existe neutralidade em língua, a pronúncia “global” é de fato uma síntese das variedades do triângulo Rio- São Paulo-Belo Horizonte, com o apagamento das características mais evidentes (como o “S chiado” carioca ou o “R vibrado” do paulistano).

O padrão Globo ajuda a difundir o preconceito, mas é claro que ele já existia desde sempre, como acontece em todos os lugares do mundo: a língua do poder central, a língua de quem detém a riqueza é sempre considerada a boa e a bonita, enquanto todo o resto é jogado na lata de lixo do “erro”.

No Brasil temos, regionalmente, vários sotaques ou vários dialetos?

Chamamos de “sotaque”, normalmente, diferenças de pronúncia, enquanto o termo “dialeto” é mais amplo, pois inclui diferenças de pronúncia, de construções gramaticais e de léxico. Os sotaques são inevitáveis, porque constituem traços identitários das comunidades de fala. Os dialetos, por sua vez, se formam ao longo do tempo, e a história linguística do Brasil ainda é curta para a formação de dialetos, segundo a definição tradicional do termo. Ainda assim, já é possível detectar características morfossintáticas específicas em diferentes regiões.
O que chamo de características morfossintáticas é o que se conhece tradicionalmente por “gramática”. Por exemplo, o uso do pronome “lhe” como objeto direto e indireto referido a “você” caracteriza algumas regiões (Nordeste, por exemplo), enquanto é desconhecido em outras (em Minas, por exemplo). No Sul é comum o uso de “nós” como objeto (“ele viu nós ontem na rua”).

Na formação do imperativo, predomina no Nordeste o uso das formas derivadas do subjuntivo (“venha, fale, corra”), enquanto no Sudeste-Sul predominam as derivadas do indicativo (“vem, fala, corre”). Em Minas, é comum o apagamento do pronome reflexivo (“eu assustei”, “eu formei ano passado”). Em amplas zonas do Sudeste é comum o não uso do subjuntivo (“você quer que eu faço isso?”), enquanto no Nordeste o uso do subjuntivo está bem preservado, incluindo em construções com “não saber”(“não sei o que diga desse seu comportamento”). E por aí vai…

Fonte: UNE