Para se esquivar da justiça, Israel nega a ocupação da Palestina
O termo “ocupação” caracteriza o regime imposto por Israel sobre os territórios e as vidas dos palestinos. O emprego deste conceito carregado de significado jurídico é disputado, claro, por Israel. Mas a violência cotidiana na Palestina ocupada e a continuidade da luta por libertação dão evidências desta realidade objetiva cada vez que se olha para ela, ainda que a narrativa israelense politizada, judicializada e midiatizada pretenda negá-la.
Por Moara Crivelente*, para o Portal Vermelho
Publicado 12/05/2015 13:14

O debate em torno do Direito Internacional Humanitário para firmar ou rechaçar o emprego do termo “ocupação” é parte do esforço da academia e das autoridades políticas e militares de Israel para manter a questão indefinida. A linguagem usada nesta empreitada é carregada de significado jurídico, na prática que a jurista Lisa Hajjar classificou de “israelização do Direito Internacional”.
Longe de ignorarem ou acreditarem-se alheias ao Direito Internacional (DI), as autoridades israelenses o instrumentalizam para “legitimar” suas ações, ainda que elas resultem, como se viu em julho e agosto de 2014, no massacre de cerca de 2.200 palestinos – majoritariamente civis – habitantes de um dos territórios mais densamente povoados do mundo, a Faixa de Gaza. Foram três grandes “operações militares” conduzidas neste período por Israel contra o enclave que, em 2007 – quando o Hamas assumiu seu governo – foi declarado “território hostil”, uma prática inédita.
Israel explica esta classificação da Faixa de Gaza e o seu bloqueio completo desde então com a caracterização arbitrária do Hamas como “organização terrorista” e dos seus membros como “combatentes ilegais”, despidos da proteção do DI, uma tática jurídica usada também pelos Estados Unidos em sua “guerra global contra o terror”. Discussões sobre a “punição coletiva” devido ao bloqueio de Gaza e às ofensivas devastadoras também entram na conta dos crimes de guerra perpetrados por Israel. Sobre eles, a nova Comissão de Inquérito criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas deve entregar conclusões em junho, embora a falta de acesso a Gaza dificulte o trabalho.
Em 1967, quando teve lugar a Guerra de Junho entre Israel e vizinhos árabes, Israel estabeleceu a ocupação sobre os territórios palestinos – antes sob controle da Jordânia e do Egito até que fosse efetivado o Estado da Palestina. A alegação de acadêmicos e oficiais do Exército israelense é que se tratam de “territórios em disputa” ou “administrados”, não “ocupados”. Nesta discussão é relevante a definição do termo pelo DI. As Convenções de Haia de 1907 e a quarta Convenção de Genebra sobre a Proteção dos Civis em Tempos de Guerra de 1949 – e que Israel ratificou – elucidam o conjunto de obrigações que uma “Potência Ocupante” tem para com os territórios que ocupa e seus habitantes.
Ocupação como realidade factual
Os documentos citados consideram a ocupação enquanto a Potência Ocupante mantiver o controle efetivo sobre o território, com autoridade estabelecida e exercida. Tentativas práticas por Israel de nublar esta realidade foram a “retirada” das suas tropas e colônias da Faixa de Gaza, em 2005 – em seguida posta sob bloqueio completo – e a transferência de algumas responsablidades em limitadas áreas da Cisjordânia à Autoridade Nacional Palestina, um órgão de “autogoverno” nascido dos Acordos de Oslo da década de 1990, que funciona como o Executivo da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Não é à toa que a liderança palestina por vezes discute sua dissolução: seu papel é ponderado enquanto facilitador dessa manipulação do DI por Israel.

Fato intrigante e revelador: depois dos Acordos de Oslo – que dividiu a Cisjordânia em três zonas de controle misto ou exclusivo e militar por Israel, na maior parte, a "Área C" – o então “Governo Militar” israelense da Cisjordânia foi renomeado para “Administração Civil”. Seu recém-nomeado chefe, parlamentar-rabino Eli Ben-Dahan, do partido ultranacionalista Lar Judeu, disse que os palestinos “são bestas, não são humanos”, como recordou na semana passada o crítico blogue israelense +972.
Exemplos grotescos da ocupação incluem funções da "Administração Civil" israelense e outros órgãos: a emissão de documentos de identidade, permissões para a construção ou reconhecimento de propriedade sobre uma terra, recolha de impostos e repasse discriminado às autoridades palestinas, a segregação evidente em cidades como Al-Kalil (Hebron) e a construção gradual e expansiva de 140 colônias em que habitam 600 mil israelenses, com suas próprias rodovias e sistemas de abastecimento de eletricidade e água – retirada das reservas palestinas e aos palestinos revendida por ao menos o dobro da taxa cobrada às colônias.
É notável ainda a repressão brutal da resistência. Não bastassem as vítimas fatais de encontros frequentes entre soldados e manifestantes, como mostra esta reportagem da Palestine TV sobre o protesto de sexta-feira (8) no vilarejo de Silwad, são mais de seis mil palestinos presos nos cárceres israelenses, inclusive crianças e parlamentares, sujeitos a julgamentos militares ou “detenções administrativas” por períodos renováveis de seis meses, sem acusação formal.

Autores como Shane Darcy e John Reynolds enfatizam que a jurisprudência internacional contemporânea está repleta de referências a Israel enquanto “Potência Ocupante”. É o caso da opinião consultiva do Tribunal Internacional de Justiça, de 2004, sobre a ilegalidade do grande muro construído por Israel na Cisjordânia – 800 quilômetros de concreto ou arame com oito a 12 metros de altura, que corta vilas e terras de agricultura, limitando a movimentação dos palestinos.
Analisar a quarta Convenção de Genebra é como ler a ficha corrida do regime israelense; suas práticas e políticas são direta ou indiretamente associadas à descrição do que são crimes de guerra, agravados ainda quando evidenciada a “ocupação”, categoria que gera obrigações específicas à “Potência Ocupante”. A realidade se impõe não só para quem visita a Palestina, mas também para os atentos a uma causa que enfrenta quase sete décadas de pendência: a libertação do povo palestino e o fim da impunidade israelense.
*Cientista política e jornalista, membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando o Conselho Mundial da Paz