O novo canal do Egito e o grande desafio que o rodeia

Há um século e meio, o Egito teve que sacrificar 120 mil vidas no altar de um sonho: um canal marítimo que encurtasse a distância entre a Europa e as posses africanas e asiáticas da Grã-Bretanha e França, os dois impérios mais poderosos da época.

General do Egito - AFP

O gestor da ideia foi um francês, Ferdinand de Lesseps, que triunfaria no empenho, mesmo que tivesse fracassado em outro similar, o canal de Panamá, abandonado nas mãos dos Estados Unidos, ainda que sempre lhe tenha ficado o consolo de ser o proprietário da torre Eiffel.

A possibilidade de aproximar dois continentes tinha sido acariciada desde a antiguidade, mas nem o poder onímodo dos faraós ou a pressão imperial de Napoleão I puderam com os obstáculos de semelhante obra, um símbolo da apoteose do colonialismo ao que mal lhe restava um século de vida.

Desta vez, o Egito voltou à carga para construir uma via aquática paralela ao primeiro canal em cujos financiamentos e influência deposita grandes esperanças o presidente Abdel Fattah Al Sisi, em guerra com movimentos armados muçulmanos que juraram derrubá-lo, realizar um julgamento sumaríssimo e o executar.

O mandatário, um militar especialista em inteligência e portanto em psicologia social, sabe que o caminho mais curto para a vitória sobre esse rival decidido e arrojado reside na criação de empregos que diminuam o descontentamento social prevalecente faz décadas.

Essa premissa explica que tenha exigido uma diminuição de três a um ano o tempo necessário para executar o viaduto, que tem uma extensão de 72 quilômetros e possibilita que o Egito desempenhe por direito próprio um peso pesado na economia mundial.

Uma das expectativas em curto prazo é quase triplicar as rendas por pedágio, cifrados hoje em 5,3 bilhões de dólares anuais a 13,2 bilhões em oito anos e elevar a capacidade diária de operação dos atuais 45 navios para 97 nesse espaço de tempo.

A rigor, o antigo canal e sua reluzente adição, que na realidade é uma espécie de apêndice do original, é uma das fontes de renda da economia nacional que, junto às remessas dos expatriados, se mantêm flutuante após quatro anos de tempestades políticas.

Durante esse lapso, um presidente foi obrigado a renunciar; uma junta castrense governou; foi eleito um mandatário surpresa, Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, que se manteve no cargo um ano antes de ser derrubado pelo Exército, e eleito chefe de Estado o artífice de sua defenestração, Abdel Fattah Al Sisi.

O ditado popular afirma que depois da tempestade vem a calmaria, mas a política egípcia é a exceção que confirma a regra, pois depois da chegada de Sisi ao palácio presidencial de Ittihadia seguiram-se meses de uma guerra aberta na península do Sinai, nordeste, e uma onda de atentados letais à dinamite que mantêm este país em brasas.

No final de junho, o então fiscal geral egípcio, Hicham Barakat, morreu destroçado em um distrito da capital pelo estouro de um carro bomba reivindicado pelo Estado Islâmico, autor de outro atentado dias depois que devastou parte do consulado da Itália.

Ambas ações no meio de um aumento substantivo das operações do Exército no Sinai, que custou mais de 300 baixas aos muçulmanos, mudanças nas chefaturas dos serviços de segurança e pressões desde o poder para cercar a qualquer preço os rivais do governo que, é justo dizer, não têm surtido efeito.

Nesse difícil contexto aparece a inauguração do novo canal como uma forma de acalmar as apreensões dos cidadãos que já se perguntam se as autoridades são capazes de derrotar seus adversários.

A cerimônia se obscureceu pela difusão de uma gravação na qual um súdito croata, empregado de uma firma francesa, sequestrado em julho passado, anunciou que seus captores o matarão se as autoridades não libertarem no prazo de 48 horas "às muçulmanas presas" neste país.

Em seu breve discurso na cerimônia inaugural, o mandatário egípcio enfatizou que o novo canal é uma evidência da vontade do povo egípcio e fechou com palavras chave: "A maldade tentou prejudicar o Egito e os egípcios e deter seu desenvolvimento (mas) continuaremos combatendo o terrorismo e venceremos, não há dúvidas…".

A mensagem à população é clara, requer-se paciência e é possível que, dado o nível de aceitação do mandatário, mais de 70 por cento segundo pesquisas da entidade estatística oficial, tenha um efeito balsâmico sobre os egípcios, que suportam com estoicismo as medidas extremas de segurança no Cairo e outras cidades.

No entanto, é improvável que exerçam a mesma influência entre os investidores estrangeiros, tímidos e cautelosos quando se trata de dinheiro, cujos capitais o Egito quer atrair a todo custo para reanimar a economia.

O desafio está presente; os oponentes velam suas armas: o governo com seu enorme poderio em armas e pessoal e seus rivais com perícia para ações-surpresa, uma fortaleza humana que parece inesgotável e a vantagem de atuar em um meio que conhecem bem.

Um desenlace dessa justa, que é a morte, não pode estar tão longe.