A História não aceita desculpas 

Marx ensina que: “A História se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa”. É exatamente isto que acontece no Brasil, nesse momento. Às vésperas do marco de 50 anos do golpe civil-militar que destituiu o presidente João Goulart, as organizações Globo resolveram, enfim, mas inutilmente, reconhecer o apoio dado ao regime que atrasou por trinta anos o início daquilo que Jango chamava de Reformas de Base (reformas agrária, urbana, educacional etc.).

A História não aceita desculpas - Divulgação

Marcelo Diniz (*)

Além de inaugurar um período de 21 anos de terrorismo de Estado, com consequentes sequestros, torturas, assassinatos e a instalação de imensos esquemas de corrupção livres da fiscalização de instituições comuns ao Estado Democrático de Direito, a ditadura contribuiu decisivamente para a perpetuação de desigualdades econômicas, sociais e políticas e uma burocracia improdutiva que justificaria mais à frente o discurso neoliberal sob o qual Fernando I (Collor) e II (Henrique Cardoso) privatizariam empresas estatais atuantes em setores estratégicos, como as siderúrgicas, o sistema Telebras, a Embraer, a Vale do Rio Doce e as empresas de distribuição de energia elétrica.

É importante lembrar que as privatizações ocorridas no período do governo tucano ofereciam vantagens imorais, como a aceitação das chamadas “moedas podres” (títulos de dívida pública inegociáveis), reconhecendo o valor de face das mesmas, quando seu valor de mercado era irrisório, além do financiamento da compra pelo BNDES, inclusive para grupos estrangeiros, causando prejuízos estratégicos, econômicos e políticos ao Estado brasileiro, no maior crime de lesa-pátria de que se tem notícia, também apoiado pelos arautos do livre mercado e seus parceiros editoriais nos grandes veículos.

A mea-culpa da Globo pelo apoio ao golpe e ao regime que o sucedeu apresentou ainda como justificativa para seu erro histórico o fato de que o golpe de 64 teria sido apoiado por segmentos civis, que foram às ruas, por exemplo, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Tratou-se de uma série de manifestações cujas palavras de ordem eram “o gigante acordou”, “em defesa da família”, “fora os comunistas do Brasil”, “Queremos governo cristão” e uma série de declarações de fascismo, intolerância religiosa e desonestidade intelectual.

Após o golpe, passaram a se chamar Marchas da Vitória (foto) e chegaram a reunir em uma de suas edições, cerca de 2 milhões de pessoas, segundo seus organizadores. Se agrupavam nessas marchas corporações e setores historicamente beneficiados com o estado das coisas, como a UDN (que forneceria os fundadores da ARENA, partido do regime que anos depois seria o embrião do PFL, hoje DEM), Plínio Salgado (fundador da Ação Integralista Brasileira, organização de inspiração fascista), a Assembleia de Deus, a Associação Cristã de Moços, setores ligados ao latifúndio, capital especulativo privado etc. Essa configuração da Marcha chegou a preocupar o embaixador dos Estados Unidos (e um dos articuladores do golpe), Lincoln Gordon, que, por telegrama, alertou o Departamento de Estado de que: "A única nota destoante foi a evidente limitada participação das classes mais baixas na marcha".

Dessa vez, os setores poderosos que se envolvem na tentativa de golpe, se veem obrigados a adaptar um pouco o roteiro: ao invés de um golpe militar, tentam um golpe jurídico com apoio mobilizador dos mesmos setores da imprensa e as mesmas palavras de ordem. O protagonista, o juiz Sérgio Moro, utiliza-se de uma operação que supostamente levanta a bandeira do sentimento anticorrupção para perseguir o governo e os partidos que o sustentam, especialmente o partido da presidenta Dilma e do presidente Lula.

É óbvio que o Judiciário precisa investigar todas as denúncias feitas quanto a desvios de dinheiro público e favorecimento de figuras públicas ocupantes de cargos e mandatos públicos, mas o que vemos acontecer contra Lula, como ele mesmo disse em sua entrevista coletiva é um completa inversão do rito comum. Qualquer operador do direito ou cidadão mais atento sabe que o Ministério Público apenas pode agir sob a provocação da sociedade, mas não é esse o desenrolar do fatos quanto a Lula e aos governos de esquerda: primeiro define-se quem deve ser investigado, com base no papel que joga no projeto de país que chegou ao poder central em 2003, depois, se promove uma devassa com o objetivo de encontrar e explorar qualquer suspeita, condenando previamente os investigados, sem que sejam sequer declarados réus.

DNA tucano

E quem é Sérgio Moro? Filho de um fundador do PSDB em Maringá-PR, marido de uma advogada que presta serviços ao PSDB e advoga em nome do vice-governador daquele estado (também do PSDB), financiador de campanha de Francisco Francischini (do partido Solidariedade, que pertence a “Paulinho da Força”), que é ex-delegado da Polícia Federal e foi um dos incentivadores do boato de assassinato de Alberto Youssef, criado para tentar melar a eleição de 2014 em favor de Aécio Neves (foto). Francischini chegou a publicar uma suposta ficha médica do doleiro!

Mas, se alguém pensa que as relações de Moro se encerram aí, se engana: Moro tem convívio regular com Álvaro Dias (senador pelo PSDB) e Youssef. E quem é um dos delatores favoritos de Moro? O suplente de Álvaro Dias, Joel Malucelli, presidente do Grupo Jmalucelli, que possui empresas nas áreas de construção, incorporação, equipamentos, locação de máquinas para a construção civil, energia, hidrelétricas, concessões públicas (administração de rodovias e tratamento de lixo, principalmente), planejamento e implantação de projetos ligados a créditos de carbono, bancos e de investimentos.

Para quem não lembra, Malucelli esteve envolvido com o escândalo do Banestado, esquema que até hoje é apontado como um dos maiores da história do país, além de já ter sido apontado pela revista Forbes como o dono da segunda maior fortuna do Brasil. Por esses fatos, qualquer juiz minimamente decente se declararia suspeito e o Judiciário encaminharia o caso a outro membro da magistratura.

Na última sexta-feira (4), Moro parece ter chutado o pau da barraca, desrespeitando ritos para promover um espetáculo midiático em que a maior liderança popular de nossa história foi conduzida coercitivamente a depor, sem que nenhuma vez tivesse se negado sem motivos a prestar esclarecimentos à Justiça. O episódio, cotidiano em regimes de exceção, afronta às instituições democráticas, especialmente ao STF.

Mídia golpista

Paralelamente, a grande mídia vem dando pouca ou nenhuma ênfase às denúncias que envolvem políticos de partidos de oposição, como Aécio Neves (citado cinco vezes em delações, acusado de construir aeroporto em terras da própria família quando governador de Minas Gerais, sócio dos donos de um helicóptero apreendido com quase 500 quilos de pasta-base de cocaína e que seria o destinatário de um terço das propinas pagas em relação a FURNAS), Eduardo Cunha (que inclusive já admitiu a existência de suas contas não declaradas no exterior), Sérgio Guerra (falecido presidente nacional do PSDB que teria recebido milhões para enterrar a CPI da Petrobras, no Senado), entre outros.

No frigir dos ovos, fica evidente que não se trata de combate à corrupção, mas de uma tentativa de golpe muito bem orquestrada, envolvendo interesses midiáticos, empresariais, especulativos e políticos que foram frustrados nos últimos anos com o avanço de políticas sociais (que enfraqueceram o poder da especulação imobiliária, por exemplo) e das instituições republicanas que hoje contam com muito mais liberdade para conduzir investigações e a fiscalização dos atos governamentais. Se o povo brasileiro não quer outro pedido de desculpas inútil, após cinquenta anos, quando o tempo, os recursos e as vidas perdidas já não puderem ser retomados, precisa responder à altura dos desmandos e manipulações promovidos pela grande imprensa, membros do Judiciário e pelas mesmas forças políticas que tentam historicamente dilacerar nosso patrimônio (vide o projeto apresentado pelo senador José Serra, do PSDB, que enfraquece a participação da Petrobras na exploração do pré-sal).

Pedidos de desculpas precisam, minimamente, ser acompanhados de uma firme mudança de postura e não é esse o comportamento que vemos da Globo e de outros grandes veículos. É preciso reagir, defendendo o legado do projeto nacional de desenvolvimento que vem sendo aplicado desde 2002 e otimizando a organização do povo em torno de suas entidades representativas e partidos, para que nas eleições de 2016 e 2018 e também nas batalhas que serão travadas nas ruas, tenhamos força para intensificar a implementação de bandeiras históricas, como a democratização da mídia, a taxação das grandes fortunas, a reforma política com o fim do financiamento privado de campanhas e o voto em lista pré-ordenada e tantas outras medidas necessárias ao desenvolvimento político, econômico, social e democrático do país.

A História exige: Todos às ruas, contra o golpe! Não queremos mais desculpas, queremos respeito à Democracia e à Nação.

(*) Marcelo Diniz é vice-presidente do Centro Acadêmico Álvaro Lins (CACO – Álvaro Lins) do curso de Comunicação Social da UFPE em Caruaru-PE.