Rio 2016: a Guerra Fria volta aos Jogos Olímpicos
Boa parte da delegação russa foi excluída dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Conheça a trama que deu origem a esta punição e suas circunstâncias e personagens muito suspeitos.
Por Andrei Fómin, no Oriental Review
Publicado 02/08/2016 17:29
O 6º Princípio Fundamental do Olimpismo (nenhuma discriminação de qualquer tipo, incluídas por nacionalidade ou opinião política) parece já ter sido esquecido há muito tempo. Na Grécia Antiga, a competição entre os melhores atletas fazia parar guerras e servia como ponte de compreensão até entre inimigos recentes. Mas no século 20, os Jogos Olímpicos foram convertidos em arma política.
Nos anos 1980, os EUA e aliados boicotaram os jogos de Moscou como protesto contra tropas soviéticas que entraram no Afeganistão a pedido do governo legítimo daquele país (bem diferente disso, os Jogos Olímpicos de 1936 na Alemanha Nazista, com Hitler no palanque, foram realizados sem qualquer percalço, sob os aplausos do mundo “civilizado”).
Em 8 de maio de 2016, o programa 60 Minutes da rede CBS levou ao ar uma matéria sobre dopagem na Rússia. As entrevistas eram conversações gravadas entre um ex-funcionário da Russian Anti-Doping Agency (Rusada) [Agência Russa Antidopagem], Vitáli Stepanov, e o ex-diretor do laboratório antidopagem da Rússia em Moscou, Grigóri Rodchenkov. Foi o quarto programa do que seria uma longa série sobre a alegada existência de um sistema de apoio “estatal” à dopagem, nos esportes russos.
Poucos dias depois, o New York Times publicou uma entrevista com Rodchenkov. Na entrevista, aquele ex-funcionário disse que teria havido, ativo nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sôtchi, em 2014, um programa de dopagem apoiado pelo Estado russo, que seria orientado quase diretamente pelo presidente da Rússia.
Fato importante, mas que não chamou a atenção da grande maioria dos “analistas” internacionais foi que aquela campanha “jornalística”, que começara pouco depois do extra-congelamento nas relações russo-ocidentais de 2014, foi integralmente construída em torno de “depoimentos” de apenas três cidadãos russos, interconectados e cúmplices numa cadeia de escândalos de dopagem – e que pouco depois deixaram a Rússia para recomeçar a vida no Ocidente.
Uma corredora de meia-distância, de 29 anos, Iúlia Stepanova, pode ser considerada a instigadora de todo o escândalo. O melhor resultado pessoal dessa atleta em competições globais fora uma medalha de bronze no Campeonato de Atletismo Europeu Indoor em 2011. No Campeonato Mundial daquele mesmo ano, obteve a 8ª colocação. A carreira de Stepanova saiu completamente dos trilhos em 2013, quando a Comissão Antidopagem da Federação Russa de Atletismo desqualificou-a por dois anos, por haver constatado “flutuações no sangue, no Passaporte Atlético Biológico da corredora”. Essas flutuações são consideradas prova de dopagem. Todos os resultados de Stepanova desde 2011 foram invalidados. E ela teve de devolver o dinheiro dos prêmios que recebera como corredora profissional nos anos 2011-2012.
Stepanova, que sofrera suspensão por dopagem, foi a informante primária do jornalista da ARD[1] Hajo Seppelt, que começara a filmar um documentário sobre conduta desviante e crime nos esportes russos. Depois de divulgado o primeiro documentário da ARD, em dezembro de 2014, Stepanova deixou a Rússia com o marido e o filho. Em 2015, solicitou asilo político no Canadá. Mesmo depois de sua suspensão já ter acabado em 2015, Stepanova disse à Comissão da World Anti-Doping Agency (Wada) (p.142 do relatório Nov. 2015 Wada Report) que testara positivo para dopagem durante o campeonato russo de atletismo em Saransk em julho de 2010, e pagara 30 mil rublos (aproximadamente US$1.000 à época) ao diretor do laboratório russo antidopagem em Moscou, Grigóri Rodchenkov, em troca de ele ocultar aqueles resultados de testes.
Iúlia Stepanova é casada com Vitáli Stepanov, ex-funcionário da agência russa antidopagem, Rusada. Stepanov viveu e estudou nos EUA desde os 15 anos, mas mais tarde decidiu retornar à Rússia. Em 2008, Vitáli Stepanov começou a trabalhar para a Rusada como controlador de dopagem. Vitáli conheceu Iúlia Rusanova em 2009 no campeonato nacional russo em Tcheboksári. Stepanov diz agora que enviou uma carta à Wada detalhando suas revelações em 2010, mas jamais recebeu resposta. Em 2011, Stepanov deixou o cargo que tinha na agência Rusada. Fato que merece atenção é que Vitáli confessou que sabia que a esposa ingeria substâncias proibidas, tanto enquanto ele ainda trabalhava para a Rusada como depois que deixou aquela organização. Vale lembrar que os testes de sangue de Stepanova passaram a ter resultados positivos a partir de 2011 – isto é, depois que o marido, funcionário especialista em antidopagem, deixou a Rusada. Sem preocupações, os Stepanovs, então já casados, aceitaram prêmios em dinheiro, em competições profissionais, até que Iúlia foi desqualificada. Daí em diante, sem qualquer outra fonte de renda, Vitáli Stepanov optou por procurar jornalistas estrangeiros para revelar “a verdade sobre os esportes russos”. No início de junho, admitiu que a Wada não só ajudara sua família a mudar-se para os EUA, como também lhe pagara US$ 30 mil, como ajuda financeira.
E finalmente, a terceira figura na campanha para "revelar" o escândalo da dopagem nos esportes russos – o ex-chefe do laboratório russo antidopagem em Moscou, Grigóri Rodchenkov. Segundo Vitáli Stepanov, seria ele o homem que vendia drogas para melhorar o desempenho, ajudava a ocultar os sinais dessas mesmas drogas, e foi quem surgiu com a ideia conhecida como “doped Chivas mouth swishing” (pg. 50) [aprox. “bochechar com (uísque) Chivas dopado, sem engolir”], técnica que transforma homens em campeões olímpicos. Esse moscovita de 57 anos é conhecido como o melhor no que faz. Formou-se na Universidade Estatal de Moscou com um Ph.D. em química e passou a trabalhar no laboratório antidopagem em Moscou nos idos de 1985. Adiante trabalhou no Canadá e em empresas petroquímicas russas, e em 2005 foi nomeado diretor do laboratório nacional russo antidopagem.
Em 2013, Marina Rodchenkova – irmã de Grigóri Rodchenkov – foi considerada culpada e condenada por vender esteroides anabólicos a atletas. O irmão também estava sob investigação, acusado de fornecer drogas proibidas. Ameaçado de processo, Grigóri Rodchenkov começou a agir de modo estranho e foi várias vezes hospitalizado e submetido “a exames por psiquiatra forense”. Adiante a corte recebeu comunicado médico segundo o qual Rodchenkov sofreria de “desordem esquizotípica de personalidade” exacerbada por estresse. Resultado disso, todas as acusações contra Rodchenkov foram retiradas. Mas, muito surpreendentemente, esse homem diagnosticado como portador de desordem esquizotípica de personalidade, cuja irmã fora condenada por tráfico de drogas para turbinar o desempenho atlético, continuou no cargo de diretor do único laboratório credenciado para operar na Rússia pela Associação Mundial Anti-Dopagem, Wada!
Na verdade, Rodchenkov manteve o emprego até os Jogos Olímpicos de Sôtchi, de 2014. Só foi demitido no outono de 2015, depois que eclodiu o escândalo insuflado pela rede alemã ARD e os Stepanovs. Em setembro de 2015, a Wada acusou Rodchenkov de destruir intencionalmente mais de mil amostras, para esconder a dopagem em atletas russos. Pessoalmente, ele negou todas as acusações, mas renunciou e mudou-se para os EUA, onde foi recebido calorosamente pelo documentarista Bryan Fogel, que então filmava mais um documentário “sob medida” sobre dopagem na Rússia.
No momento em que escrevo esse artigo, o Comitê Olímpico Internacional examina um relatório assinado por “fonte independente”, o professor canadense Richard H. McLaren, que acusou toda a Federação Russa, não apenas atletas individuais, de cumplicidade no uso de drogas para otimizar o desempenho. McLaren foi rapidamente convocado para conversar com a Wada, depois que o NYT publicou entrevista com Rodchenkov.
O objetivo desses movimentos é bem claro: armar um “relatório científico” a ser distribuído em meados de julho, que dará “provas”, ao IOC para banir a equipe russa dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
Em conferência de imprensa dia 18 de julho, o próprio McLaren teve de reconhecer que no prazo de apenas 57 dias, não conseguiria “identificar todos os atletas que possam ter-se beneficiado da manipulação para esconder resultados positivos em testes de dopagem”. A lógica da Associação Mundial Antidopagem [ing. Wada] é aqui bem clara: é indispensável que a associação afaste dela qualquer acusação de viés, antiprofissionalismo, mascaramento de fatos, manipulação de resultados e/ou viés político antiesportivo e antiolímpico. Não importa quantas distorções ou mentiras haja no “relatório”: sempre será relatório assinado por “especialista independente”. Ponto final. Mas McLaren nem tenta ocultar que todo o “relatório” é baseado no testemunho de uma única pessoa – o próprio Rodchenkov, repetidas vezes apresentado como fonte “confiável, com total credibilidade”.
E Rodchenkov, claro, acusado pela própria Associação Mundial Antidopagem de ter destruído 1.417 testes, e que está ameaçado de ser deportado para a Rússia para ser julgado por crimes associados à dopagem de atletas, viu ali uma oportunidade para se converter em “testemunha valiosa” e “prisioneiro de consciência”, mais um infeliz perseguido pelo “regime totalitário de Putin na Rússia”.
O privilégio de que goza essa “comissão independente” – sobre cujo relatório o Comitê Olímpico Internacional está decidindo o destino dos atletas russos aspirantes ao título olímpico nos Jogos Rio-2016 – está em que as acusações que ali se veem não serão examinadas pela justiça, nem as “provas” podem ser contestadas por advogados de defesa. Sequer se assegura ali a tradicional centenária presunção de inocência até a conclusão do processo.
Pelo que já se conhece das declarações do professor McLaren, não haverá acusação formal contra nenhum atleta russo específico. Importante: os atletas podem competir, desde que se declarem “independentes”, vale dizer, como não representantes da Rússia nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Tudo aí é facilmente explicável, até a “seletividade”.
Professor de Direito e há muito tempo membro da Corte de Arbitragem Esportiva, o professor McClaren sabe bem que qualquer acusação direta a indivíduos, feita publicamente e que resulte em “ato significativo perante a lei” (como o impedimento de participar de Jogos Olímpicos) pode ser e com certeza será contestada nos tribunais, nos termos da lei internacional e considerada a presunção de inocência. Todas as provas que a acusação use serão contestadas legalmente e, se houver nas acusações qualquer fato que possa ser interpretado a favor do acusado, a Corte tem de excluir o tal fato e os Procuradores de Justiça ficam impedidos de considerá-lo.
McLaren é advogado e compreende tudo isso muito bem. Centenas de processos iniciados por atletas e que certamente resultarão em condenação dos “especialistas” não apenas destruiriam sua reputação e o arruinariam profissionalmente, como, além disso, serviriam de base para uma investigação criminal mais do que bem servida de provas, que levaria a acusação contra o próprio McLaren de ter intencionalmente distorcido alguns fatos, que segundo seu ponto de vista podem ser expostos como se segue:
Durante os Jogos Olímpicos de Sôtchi, um agente do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa [ru. FSB] de nome Ievguêni Blokhin teria trocado a urina de atletas russos que teriam tido resultado positivo para dopagem, por amostras de urina “limpa”. Esse agente portaria um crachá de uma empresa de manutenção de encanamentos, que lhe permitiria entrar no laboratório. Além disso, há relatos de que Ievguêni Kurdyatsev – chefe do Departamento de Registro e Controle de Amostras Biológicas – trocaria as amostras durante a noite, através de um “buraco de rato” na parede (!). No prédio ao lado, estavam o homem que agora dá “testemunho confiável” – Grigóri Rodchenkov – e outros não identificados, que passavam para Blokhin novas amostras ‘limpas’ a serem usadas para substituir as amostras originais. Se a gravidade específica da urina limpa não coincidisse com o perfil original, era “adaptada” com sal de mesa ou água destilada. Claro que em todos os casos, o DNA era incompatível. E tudo isso acontecia no único laboratório credenciado pela Wada para fazer testes de antidopagem em toda a Rússia!
Como uma trama desse tipo seria apresentada em qualquer tribunal do mundo? Temos testemunhas, mas a defesa não pode interrogá-las? Não podemos provar que Blokhin é agente secreto, mas temos fé de que sim, é? Não temos nenhum documento original – uma foto, uma declaração assinada de interrogatório oficial de testemunhas – mas o homem nos confessou seu crime? Nada garante que não seja criminoso ele também, mas…?! Nenhum perito jamais examinou os e-mails que Rodchenkov nos trouxe, mas temos fé que, sim, eram genuínos, que todos os fatos estão ali corretamente narrados e que os nomes dos que teriam enviado as mensagens, sim, estão corretos e perfeitos?! Em outras palavras: Sim. Não há como acusar atletas limpos… Então acusamos e condenamos o governo do país cujo nome apareça escrito nas camisetas de atletas limpos?! Simples assim?
Falando bem sinceramente, ainda não estamos convencidos de que o movimento Olímpico teria caído tanto. Seria como dar adeus à reputação da Associação Mundial de Antidopagem, Wada, do Comitê Olímpico Internacional e a todo o sistema global de esportes. É possível que o colossal problema da dopagem de atletas já tenha ultrapassado todos os limites razoáveis e exija solução drástica e imediata. Mas de onde tiraram que essa solução tenha de ser encontrada num único país, mesmo que seja um grande país, como a Rússia?
Não seria mais racional parar e examinar a história de muitos e muitos volumes impressos de escândalos de dopagem em todos os países do mundo? E, diante dos fatos que agora estão vindo à luz, não seria mais racional começar por investigar a própria Associação Mundial de Antidopagem, Wada e seus laboratórios credenciados em todo o mundo?
Para concluir, citamos abaixo a íntegra da tradução da declaração do Comitê Olímpico Russo, em resposta ao relatório da Wada:
O Comitê Olímpico Russo tem política de tolerância zero e apoia a luta contra todos os tipos de dopagem. Estamos preparados para oferecer total colaboração e para trabalhar juntos, se necessário, com qualquer organização internacional.
Discordamos total e completamente da ideia introduzida pelo Sr. McLaren, para quem banir centenas de atletas russos limpos, impedindo-os de participar dos Jogos Olímpicos Rio-2016, seria “consequência desagradável” aceitável das acusações reunidas no relatório daquele professor.
As acusações vêm baseadas exclusivamente no que disse Grigóri Rodchenkov. Vêm baseadas no testemunho de alguém que está no epicentro do mesmo esquema criminoso – o que atinge não só a carreira e o destino de muitos atletas limpos, mas também a integridade de todo o movimento Olímpico internacional.
A Rússia sempre lutou contra a dopagem e continuará a lutar com todo o empenho no plano do Estado, endurecendo as penas por qualquer atividade ilegal desse tipo, sob a prescrição de punição inevitável.
O Comitê Olímpico Russo apoia integralmente que se imponham as penas mais duras contra qualquer pessoa que use ou estimule ou facilite o uso de substâncias proibidas.
Ao mesmo tempo, o Comitê Olímpico Russo – agindo em plena observância da Carta Olímpica – defenderá e protegerá os direitos de atletas limpos. Atletas que ao longo das suas carreiras – graças a treino incansável, talento e força de vontade – lutam para realizar seus sonhos olímpicos não podem ter o futuro determinado por acusações insubstanciais e infundadas e por atos criminosos de vários indivíduos. Para nós, essa é uma questão de princípio.”
[1] ARD, al., Arbeitsgemeinschaft der Rundfunkanstalten Deutschlands, uma associação de emissoras de radiodifusão pública na Alemanha, conhecida como Canal 1 [NTs].