Da denúncia à delação – que prêmio motiva o “Pardal” do TSE?

No período eleitoral em curso, o Tribunal Superior Eleitoral apresentou um aplicativo informático: o “Pardal”. Segundo Gilmar Mendes, o “Pardal” é “uma nova ferramenta institucional de combate à corrupção eleitoral”¹. A afirmação não é, todavia, juridicamente exacta. Infração não é sinónimo de corrupção.

Por Alexandre Weffort*

Na imagem, sobre fotografia retirada da internet - Reprodução: internet

O “Pardal” é anunciado como um reforço do sistema de vigilância eleitoral. Todavia, não inclui (o que seria até simples, num programa informático) o texto legal que estabelece e tipifica a presumível conduta irregular, desperdiçando a oportunidade de assumir um papel preventivo ou mesmo pedagógico².

O aplicativo “Pardal” propõe ao utilizador a inclusão de um registo (uma foto ou filme) como elemento probatório para denúncias relativas a atos de campanha. Sugere, ainda, a possibilidade de o utilizador acompanhar, também por via eletrônica, o seguimento da sua denúncia.

Em nome da transparência, absorvendo funcionalidades das novas tecnologias, o aplicativo “Pardal” oferecido pelo TSE transforma o cidadão comum num apêndice do sistema policial e judiciário, partícipe de um sistema de vigilância global, tornando-o um denunciante diligente. O aplicativo torna-se, assim, instrumento modelador de atitudes, no mesmo sentido em que, no plano judicial, se valoriza a delação e deve ser visto no quadro de uma generalização do uso da chamada “delação premiada”.

Estado Democrático de Direito

As razões políticas diferem das razões jurídicas na sua natureza, mas não no objecto. Ambas buscam a regulação da vida social. A sociedade contemporânea, na sua forma mais comum de organização, assume a conjugação dessas duas dimensões na fórmula: Estado Democrático de Direito.

A Democracia, como critério de legitimação do Poder, terá no Direito – no quadro legal normativo das condutas – um seu instrumento (mas não o único instrumento). O Direito, por sua vez, subordina-se ao critério democrático, mas de forma indireta (através das leis criadas pela sociedade democrática através do Poder Legislativo). Entretanto, na vigência das leis, o Direito deve operar de forma autônoma, segundo critérios intrínsecos de coerência jurídica.

A política e a justiça brasileiras percorrem caminhos cruzados e confusos onde, muitas vezes, os critérios e valores de um contaminam o outro, problema que se revela de forma complexa, em múltiplas facetas (questão que se tornou evidente no processo de impeachment de Dilma Rousseff e é patente no modo como persecutório como o Poder judiciário tem atuado em relação ao PT).

O prêmio político à delação

No Brasil, a delação tem sido um instrumento frequentemente utilizado, nomeadamente no que respeita às investigações relativas à corrupção econômica. O termo midiático mais frequente é o da “delação premiada”. E, como tem sido amplamente discutido pela mídia, o uso desse instrumento não deixa de refletir uma dimensão política, nomeadamente, pelo filtro político-ideológico que se manifesta no modo como o aparelho judiciário tem tratado as informações obtidas, permitindo o seu vazamento público.

Essa é uma das facetas do problema – da promiscuidade entre a política e a justiça – ou, dito de outra forma, do desvirtuar da autonomia do Direito através da sua instrumentalização política. Mas há outra dimensão em jogo: o modo como a prática da delação se repercute na formação dos hábitos sociais, o que nos remete para os problemas relativos à moral e à ética.

Sem entrar na discussão do uso concreto da chamada “delação premiada”, no seu mérito processual ou na forma como, na decorrência do seu uso, são desencadeados os procedimentos persecutórios e de investigação probatória, vejamos o termo “delação premiada” e como se vulgarizou a associação entre os conceitos de “delação” e de “prêmio”.

Aqueles dois conceitos apresentam polarizações contrárias. O “prêmio”, no quadro dos costumes sociais mais generalizados, será um benefício que se alcança por mérito, ou por sorte, e apresenta uma carga semântica naturalmente positiva. Por outro lado, a “delação” é um ato que acarreta uma carga negativa, correlacionado à “traição”, sendo o delator, por regra, um ser execrado.

Plutarco, em Vidas Paralelas, vol.I, atribuiu a César, a afirmação: “gostava da traição, mas aborreciam-no os traidores”. A frase “ama a traição, mas odeia os traidores” tem sido referida na mídia, no debate sobre a legitimidade do recurso à “delação premiada”. Ela sintetiza o problema e a contradição ética em que o Direito brasileiro se encontra quando recorre sistematicamente àquela forma de delação.

Vigilância, delação e medo

O aplicativo “Pardal” é um instrumento de denúncia. Convida o cidadão a exercer uma função de vigilância que cabe, normalmente, às autoridades públicas, nomeadamente policiais. Como ferramenta de comunicação, consiste num facilitador do gesto de denunciar, através de um registo de imagem ou video, situações abusivas. Não constituindo estritamente uma delação, a denúncia insere-se no mesmo âmbito de relação do cidadão com as autoridades públicas (o outro termo dado à delação no jargão jurídico é “colaboração”).

Os dois procedimentos (denúncia e delação) apontam para uma crescente judicialização das relações sociais, através de um incremento da vigilância e da denúncia. Traduzem um aumento da pressão coerciva do Estado sobre a sociedade em geral (talvez por isso o presidente do TSE tenha feito equivaler, na declaração citada, os conceitos de infração e corrupção).

Podemos ainda estabelecer uma correlação, no âmbito da promoção da vigilância, da instigação denúncia e da promoção de uma cultura do medo, entre a esfera de ação judicial e o projeto designado por “escola sem partido”. Nele, promove-se à categoria de denunciante até a criança em idade escolar.

A ideologia oficial que, sub-repticiamente, se instala hoje no Brasil, apresenta um caráter inquisitorial e fascizante, procurando instilar a desconfiança como condimento básico da cultura do medo. O aplicativo pode também ser entendido no âmbito daquela ideologia. E não será por acaso que o ícone do “Pardal”, reproduzido no início deste texto, traz à lembrança as imagens finais do filme “Os Pássaros” de A. Hitchcock.

Notas:

¹ http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Agosto/presidente-do-tse-destaca-papel-do-aplicativo-pardal-no-combate-a-corrupcao-eleitoral

²No site https://apps.tre-es.jus.br/pardal/public/inicial.jsf, a versão on-line inclui informações (um quadro “pode x não pode” na campanha eleitoral).