Arruda Bastos: O escritor tanto é iluminado quanto ilumina

“A sensibilidade dos médicos para a literatura vem em grande parte da prática diária da nossa profissão. O contato com a linha tênue que separa a vida da morte, o sofrimento, o contraste da alegria de uma nova vida que nasce ao desespero de uma outra que parte ou se acorrenta a uma doença terminal. O jogo da vida entre diagnósticos positivos e negativos, a avaliação de sobrevida e os prognósticos. Nenhuma outra profissão tem interseção com tão amplo espectro de sentimentos”.

Por *Arruda Bastos

Médicos cearenses lançam livro com coletânea de artigos

O sofrimento é um importante substrato impulsionador da inspiração artística. Quando sofremos, ficarmos mais receptivos, sensíveis e, desta forma, mais expressivos. Tentamos, de certa forma, a sublimação do sentimento vivido através da força criativa emanada pelo nosso espírito.

Sofrer para a grande maioria dos escritores é sinônimo de produção literária. Sentimentos bons como o amor, a alegria e a realização também impulsionam os caminhos enigmáticos do artista. A intensidade sentimental, seja ela boa ou ruim, faz-nos rúptil e com um desejo incontrolável de fazer emergir tudo que está a palpitar no peito.

O professor e médico Ivo Pitanguy foi a principal referência brasileira e mundial em cirurgia plástica. Na área acadêmica, formou várias gerações de profissionais na nobre arte de Hipócrates. Como escritor, também se destacou: era imortal pela Academia Brasileira de Letras, onde ocupava a cadeira 22 e cujo patrono é José Bonifácio.

Na terra alencarina, a médica Celina Côrte era sinônimo de profissional competente na especialidade que exercia: a ortopedia. No mundo da literatura, realçava-se dos demais pela forma leve e ao mesmo tempo contundente de escrever e na abordagem percuciente dos mais diversos temas do nosso cotidiano. Na presidência da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames-CE), elevou em todos os sentidos o conceito da nossa sociedade. Celina é uma estrela que foi brilhar no céu.

Os quadros da nossa entidade estão repletos de excelentes e competentes profissionais da medicina e de grandes escritores. São muitas Celinas e Pitanguys. Todos com grande destaque na arte de curar, bem como na pintura, literatura, música, entre outras faces culturais. Chegamos imberbes, como um aprendiz de feiticeiro, e logo, como bons noviços, e até por certa osmose, sorvemos os exemplos e ensinamentos que a convivência diária nos proporciona. Tornamo-nos rapidamente inebriados no saber dos Sobramistas mais experientes.

Pablo Picasso, famoso pintor espanhol, dizia que há dois tipos de artista: os que transformam o sol numa simples mancha amarela, e aqueles que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol. Nós, médicos escritores, sem dúvida, integramos o rol dos que transformam manchas amarelas em sois, escritos em bálsamo para os aficionados por uma boa leitura.

Acredito que a sensibilidade dos médicos para a literatura vem em grande parte da prática diária da nossa profissão. O contato com a linha tênue que separa a vida da morte, o sofrimento, o contraste da alegria de uma nova vida que nasce ao desespero de uma outra que parte ou se acorrenta a uma doença terminal. O jogo da vida entre diagnósticos positivos e negativos, a avaliação de sobrevida e os prognósticos. Nenhuma outra profissão tem interseção com tão amplo espectro de sentimentos.

No juramento de Hipócrates, entre termos e frases, encontramos nossa sina e a constatação da importância da prática médica na sociedade. Quando juramos por Apolo, Esculápio, Hígia e Panacea, tendo por testemunhas todos os deuses e deusas, sentimos o peso da nossa profissão. Com a boa prática médica buscamos a honra para sempre entre os homens, pois, caso contrário, se dela nos afastarmos, a desonra nos abaterá.

Na oração do médico, rogamos a Deus para agirmos com correção e suplicamos a força para curar ou aliviar, ao menos em parte, a carga de sofrimento dos nossos pacientes. Apelamos também, com humildade, para alcançarmos a graça de confiar no Divino com a fé simples de uma criança. A súplica ao Ser Supremo exprime bem a nossa fragilidade e a condição de mortais, impuros e imperfeitos por natureza.

Como manifestação artística, a literatura tem por fundamento, a partir da visão do autor, recriar a realidade, alicerçada em seus sentimentos, sua experiência, seus saberes, seus pontos de vista e suas técnicas narrativas. Refletindo sobre este conceito, os médicos gozam de uma posição privilegiada, pois têm inspiração cotidiana e à flor da pele.

Os profissionais da saúde abrem as portas do coração aos sentimentos e emoções com mais facilidade; eles conhecem como ninguém as agruras da vida e o sofrimento humano. Acredito que na literatura encontramos benfazejas condições de exprimir os sentimentos e anseios do nosso semelhante, alcançando, assim, os recôncavos da alma através da arte.

Não tenho a pretensão de transformar o meu singelo artigo em uma tese científica, mas sim que ele, apropriado pelos meus colegas e leitores, sirva para esta reflexão: médicos e produção literária têm tudo a ver. A arte, independente da sua forma, deve buscar e ter como fundamento o bem da humanidade. Na literatura como na medicina o escritor tanto é iluminado quanto ilumina, tem luz própria.

*Arruda Bastos é médico, professor universitário, ex-Secretário da Saúde do Estado do Ceará, escritor, radialista e um dos coordenadores do Movimento Médicos pela Democracia.

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