Flávio Paiva: Fidel Castro e a função da lenda

"Cuba é mais do que um contundente exemplo da capacidade de um povo de lutar bravamente pelo direito de ser uma nação, mesmo estando na vizinhança do país mais poderoso do mundo, que de tudo tem feito para anexar a ilha caribenha ao seu território. Nesse dilema, que já dura seis décadas de árdua e poética realidade, vingou a figura do líder que preferia perder a vida a renunciar aos seus ideais”.

Por *Flávio Paiva

Fidel Castro - Foto: Ismael Francisco/ Cubadebate (Fotos Públicas)

Quando tomei conhecimento da morte do ex-presidente cubano Fidel Castro (1926 – 2016), lembrei-me imediatamente de uma composição de Sílvio Rodriguez (Playa Girón) na qual o poeta da Nova Trova, inspirado na invasão da Baía dos Porcos (1961), a mais famosa das tentativas dos Estados Unidos de matar o Comandante, faz um chamamento aos companheiros de história diante do implacável que deve ser a verdade: Que deveria dizer? Que fronteiras respeitar? Até onde sabemos? Que tipo de adjetivo usar?

Cuba é mais do que um contundente exemplo da capacidade de um povo de lutar bravamente pelo direito de ser uma nação, mesmo estando na vizinhança do país mais poderoso do mundo, que de tudo tem feito para anexar a ilha caribenha ao seu território. Nesse dilema, que já dura seis décadas de árdua e poética realidade, vingou a figura do líder que preferia perder a vida a renunciar aos seus ideais.

Os longos discursos de Fidel Castro tinham o encanto da fé política e da grandeza do herói mítico. Quando falava, ele se expressava em significação revolucionária: tinha sido filho rebelde de uma família de ricos usineiros, atleta estudantil, advogado libertário, preso por ataque ao quartel de Moncada (numa primeira tentativa armada de tomada de poder) e permanecia com o uniforme de guerrilheiro que patenteava o feito de 1959, quando ao lado de companheiros de utopia conseguiu livrar Cuba do feitor Fulgêncio Batista (1901 – 1973), que transformara a Ilha em um grande centro de prostituição e jogos de azar para a farra estadunidense.

Fidel reunia em si a figura do guerreiro destemido que, a partir de um pequeno lugar, ousava enfrentar com altivez um império conhecido por sua ganância desmedida. Os anglo-americanos, por sua vez, tentaram de todo jeito derrubá-lo do poder, patrocinando invasões, determinando bloqueios comerciais, utilizando insetos para destruir plantações de cana-de-açúcar, instalando rádio e televisão ilegais para instigar dissidências, e apoiando centenas de tentativas de assassinato do líder rebelde, com manobras que iam de charutos explosivos a medicamentos envenenados. Sem se curvar a essas incursões terroristas, ele passou por onze presidentes norte-americanos.

Estive naquela acolhedora Ilha no final da década de 1980 e fiquei muito impactado ao ver as pessoas se encontrando nas ruas, nas praças, no Malecón de Havana ou no Pabellón de Cuba, simplesmente para estarem umas com as outras e não para consumir. Cartazes diziam que em todo o mundo havia crianças dormindo nas ruas, mas nenhuma delas era cubana. A força simbólica desse tipo de fato e mensagem, tão aparentemente simples, sedimentava impressões positivas da Revolução Cubana.

A saída de cena de Fidel, na noite da sexta-feira (25) para o sábado (26) passados, abre um novo ciclo na história cubana. Os destinos do país vêm sendo revisados pelos cubanos, inclusive com reformas possíveis conduzidas pelo presidente Raúl Castro (85). Todos, porém, têm às mãos um país destacado mundialmente em conquistas de saúde, educação e nos esportes. Uma lenda povoa o imaginário da Ilha, dividindo opiniões, como é próprio das lendas. Uns fazem vigília e outros festa. Seja como for, a função da lenda será encorajar o povo a manter Cuba como um país independente.

*Flávio Paiva é colunista do jornal O Povo

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