Marina Valente – Convite ao debate: Temos de falar sobre precariado

“Nós estamos dizendo para toda classe trabalhadora que ela não vai se aposentar enquanto os que estão retirando seus direitos estão dizendo que tudo vai ficar bem se eles aceitarem o que acontece. O dirigente não: ele está dizendo que não vai ficar bem, que não vai melhorar, que só melhora se nos despirmos dessa ideologia promovida pelo capital e lutarmos contra a opressão".

Por *Marina Valente

Comunicação alternativa mídias sociais

Temos de falar sobre um tipo especifico de trabalhador. Encaixo-me nesse perfil também. É gente que não é rica, mas também não é pobre. Ganha a vida prestando serviço, trabalha para levar a vida, dar “seus pulinhos”. Muitas vezes possuem uma escolaridade alta, mas não têm direito trabalhista assegurado e, portanto, não sabem o que é CLT. Muitas vezes estão distantes do sindicato, que também não os enxergam e não são patrão para participar do jantar de federação das indústrias ou do comércio. São o que se chama de precariado, e o que está em torno dessa categoria, próximo a ela.

Eles não entendem uma greve geral. Não sabem como ela opera. Nem sempre conseguem pagar pela aposentadoria, então simplesmente não ligam para a Previdência. Ficam preocupados com a perda de um mísero dia de trabalho parado, afinal, precisam desse dia para fechar o mês. E estamos falando de uma grande parcela da população.

Nós temos que falar sobre eles e falar com eles. Pois são esses trabalhadores que estão ocupando as ruas com pautas quase sempre difusas, entrando nas redes sociais, indignados com quase tudo e chamando os que participam das organizações trabalhistas (e portanto, têm mais direitos que eles) de vagabundos.

Falam com a autoridade de trabalhador revoltado, sendo que, no fundo, embora tenham problemas típicos de sua classe, não vão sofrer o que vai sofrer o operário. E que nós erroneamente, chamamos de “pobre de direita”.

É esse pessoal que está caindo no discurso fácil de políticos de extrema direita e, em alguns casos, também se envolvem com a extrema esquerda, em ideias fascistas, sendo mais facilmente captados pelo discurso do patrão. Gente que assiste a Globo e acha que, por não ser peão, entende tudo de política. Mas na verdade não.

E ainda, muitas vezes emplacam um discurso altamente contrário ao fazer político, acham todo político ladrão. Não conseguem verbalizar suas queixas com clareza. Não sustentam longos debates sem acabar por finalizá-los com acusações do tipo “é porque você é petista” ou com recortes confusos do que passamos a chamar de pós-verdade (indiferença com a verdade dos fatos).

Entendam, não estou aqui criticando estas pessoas. Eu mesma, jornalista, tenho relações trabalhistas que me fazem sentir parte integrante do precariado. Vivo de falsas liberdades que aliviam a minha visão da relação de trabalho, mas, também passo apertos ao fim do mês. Não tenho férias, muitas vezes nem fim de semana e minha jornada de trabalho que deveria ser de oito horas, muitas vezes entra na madrugada. Sei que posso me sentir mais trabalhadora que patrão, ao mesmo tempo em que sei que nenhum dos direitos que muita gente tem, eu nunca terei. A frase “você não vai se aposentar” não é para mim nenhuma novidade.

Mas eu consigo olhar para um trabalhador celetista e enxergar sua dor e sua luta. Sentir EMPATIA. Sentimento que se torna o maior desafio da classe trabalhadora no atual momento político econômico do Brasil. Essa empatia eu tenho porque aprendi, porque minha família, de classe média trabalhadora, me deu a oportunidade de uma formação crítica e humanitária.

Embora não ganhe nenhum benefício e nem o perca com os suscetíveis golpes que afligem a classe trabalhadora, sei o mal que cresce em nossa sociedade. Então posso optar por lutar pelo outro. Mas nunca, nunca mesmo, saio com uma máscara do que não sou. Não posso falar em nome do operário, no máximo ser ferramenta de sua fala. É a tal história: se não é mulher não fale por ela. Não determine como ela deve lutar. Não ouse julgar o que ela sente. E se não vai perder direitos, também não faça o mesmo. Simplesmente fique em silêncio e RESPEITE!

Porém, o fato de o precariado estar em diferentes condições de opressão do restante da parcela da classe trabalhadora não significa que ele não tenha de ser ouvido dentro desta mesma classe, bem como estando em grande número, não significa que sua dificuldade de articular seus anseios, que ele não traga efeitos significativos para todo o tecido social.

Passou da hora de o movimento sindical, social e progressista enxergar efetivamente o precariado, compreender o papel fundamental que ele teve no golpe de 2015 e aprender a dialogar com essa gigantesca parcela da classe trabalhadora.

Não sendo, socióloga, economista ou filosofa ou até mesmo psicóloga (categoria que acredito ser de grande valia a esse debate), atenho-me a buscar respostas no campo que domino: a comunicação, mais precisamente a comunicação sindical.

O que é precariado?

A primeira vez que o termo foi utilizado foi no final dos anos 1990, pelo sociólogo francês, ROBERT CASTEL, mas o termo ganhou maior dimensão através do economista inglês, GUY STANDING. Existem discordâncias sobre o perfil exato do precariado e, principalmente, se ele constitui ou não uma nova classe social como defendem ROBERT CASTEL E GUY STANDING.

O precariado se diferencia daquilo que Karl Marx chamou de LUPEM. O lupem é constituído pela população abaixo do proletariado. Desprovida economicamente e sem consciência de classe. Em situação de miséria extrema, desempenhando atividades à margem da sociedade, como ladrões e prostitutas. Já o precariado é entendido por Giovani Alves, sociólogo e professor da UNESP, como “a camada média do proletariado urbano constituída por jovens adultos altamente escolarizados e com inserção precária nas relações de trabalho e vida social”.

Enquanto Alves determina que o precariado é uma categoria bem definida dentro do proletariado, RUY BRAGA estende o conceito a toda classe em condição precária de trabalho. Braga ainda destaca que durante muito tempo o modelo fordista protegeu os trabalhadores homens, brancos, sindicalizados, com educação, e colocou apenas as minorias em condição de trabalhador precário, mas que aos poucos, a condição de trabalhador precário foi se estendendo na classe trabalhadora com uma “nova regra” das condições do assalariado.

Braga, afirma que “os trabalhadores precarizados são uma ‘parte da classe trabalhadora em permanente trânsito, entre a possibilidade de exclusão socioeconômica e o aprofundamento da exploração econômica’”. Ele ainda sinaliza para um “policlassimo” que “assume aparência de uma nova classe”.

Na minha opinião é muito interessante perceber a imensa área social cinza que compõe o precariado, permitindo que ele se relacione com maior ou menor intensidade com as diferentes classes sociais e, dessa forma, influenciando na visão de mundo delas, ao mesmo tempo em que absorve as diversas ideologias das mesmas.

Ainda estendo uma reflexão sobre a abrangência do precariado ao perceber o fenômeno das classes sociais no Brasil e seu capitalismo rudimentar, onde a distância entre um miserável, e um pobre é pequena; entre um miserável e um rico é gigante, mas entre essa imensa faixa de trabalhadores de classe média (baixa e alta) e o “pequeno burguês”, existe nuances do tecido social, principalmente no crescimento impulsionado pelo governo Lula e na queda da crise econômica mundial.

O governo Lula, proporcionou à classe operária um acesso inigualável na história nacional ao ensino superior, antes só acessível a uma pequena camada da população. Parecia que o paraíso poderia ser enfim conquistado. A realidade, porém, é frustrante. Primeiro porque grandes parcelas desses universitários acabou por preencher vagas em cursos específicos, produzindo mão de obra excedente em algumas profissões. Em 2015, por exemplo, existiam mais de 813 mil estudantes de Direito, em compensação, o acesso a cursos como Medicina ainda são limitados. Outro fator é a formação tecnicista de muitas universidades particulares que excluem uma formação voltada ao pensamento político e à pesquisa, limitando ainda mais a entrada desses recém-formados no mercado de trabalho para o qual estiveram empenhados em estudar. Além disto, ao contrário do grande contingente de operários contratados para as grandes obras, essa mão de obra recém-formada não encontrou, nos governos petistas, grandes políticas de primeiro emprego. Ao contrário, foi incentivada a abertura de micro e pequenas empresas, muitas das quais fecharam as portas nos primeiros anos de existência.

Não é incomum, encontrar motoristas do Uber com alto grau de escolaridade e não inseridos no mercado de trabalho ao qual se dedicaram a estudar, ou antigos donos de negócios pequenos e familiares que fecharam as portas. Exemplo claro desse precariado crescente, principalmente pós-crise econômica.

Esse precariado “seja seu chefe” então passou a ocupar o espaço da pequena burguesia, mas seguiu impossibilitado de estar lado a lado dos poderosos integrantes das federações patronais da indústria ou do comércio, ao mesmo tempo que segue com condições de trabalhador precário, sem férias, fim de semana, jornada e vivendo de um salário flexível e de instabilidade profissional.

Muitos deles questionando a desigualdade proporcional na questão tributária em relação aos grandes empresários, a obrigatoriedade de pagar direitos trabalhistas que o impedem de contratar ou crescer, achando que o funcionário possuiria mais direitos que eles mesmos, e empunhando, mais do que nunca, a bandeira da MERITOCRACIA. O sonho do paraíso, transformado em frustração, um dos sentimentos mais presentes na alma do precariado.

JOSÉ SOEIRO, no artigo “Afinal, o que é precariado?” para o blog EXPRESSO, ressalta que “somam-se grande parte dos trabalhadores ‘imateriais’ e do ‘conhecimento’, da chamada ‘classe média’, vítima da precarização, da austeridade e do empobrecimento, ao ‘novo proletariado de serviços – do caixa do supermercado ao Call Center – que tem salários baixos, instabilidade profissional, tarefas rotineiras e horários longos e instáveis”. Somados ainda aos “estagiários, bolseiros, e o falso voluntariado”.

O peso político do precariado

GUY STANDING escreve no “O precariado: A nova classe perigosa”, que o precariado, que não possui relações trabalhistas seguras e formais, bem como não possui uma identidade trabalhista definida, precisa encontrar uma agenda política e formas de representação.

JOSÉ SOEIRO, ainda no artigo “Afinal, o que é precariado?”, lembra que no início dos anos 2000, iniciou-se em Milão (Itália), e depois espalhou-se por toda a Europa, um movimento “que dava expressão autônoma a esses trabalhadores, juntando precários e imigrantes. O MAYDAY era uma manifestação peculiar, com estética visual pop, que se aproximava mais das Loves Paredes do que os tradicionais desfiles sindicais”, e que “em apenas dois anos, a parada dos precários ultrapassava, em dimensão, os desfiles organizados pelas centrais sindicais italianas”.

Características presentes nas chamadas “manifestações dos coxinhas” ou “revolta da classe média”, que recusavam completamente ou parcialmente bandeiras partidárias, carregavam reivindicações difusas e produziram “pérolas” como a dancinha “fora Lula, fora Dilma, fora PT”.

Ainda segundo o artigo de SOEIRO, a “rebelião do precariado” está entre os fatores considerados para os resultados obtidos pelo Podemos e das alianças da esquerda alternativa. Ou seja, partidos e organizações que criticam a esquerda tradicional ou que constroem o discurso “nem direita, nem esquerda”, semelhante a iniciativas recentes, como O PARTIDO NOVO, no Brasil.

O professor da USP, ANDRÉ SINGER, em artigo para a Revista Nova Opinião, baseando-se em pesquisas de opinião, identificou que entre os 2 milhões de pessoas que participaram das manifestações de 2013, cabendo abrir um parênteses que elas ocorreram após as greves do PAC de 2011 (envolvendo operários das grandes obras de Jirau, Pecém e Suape) e dos policiais e bombeiros em 2012, era composta por uma classe média insatisfeita e por trabalhadores precariados. Cerca de cinquenta por cento (50%) dos manifestantes tinha renda familiar de até 5 salários mínimos. (Em artigo de Leonor Assad).

O precariado é fruto da mercantilização das relações de trabalho, do neoliberalismo, e da direita, que conforme afirma o professor espanhol de ciências políticas, JUAN CARLOS MONEDERO, repetiu a receita, senso-comum, de desmonte do estado, privatização, controle da mídia, financiamento de fundações e universidades, retirada da ideologia dos parlamentos e partidos, e no Brasil vemos o exemplo através do ESCOLA SEM PARTIDO, e combate aos “excessos da democracia”.

Sobre o combate aos excessos da democracia, cabe um recorte: para a formação da polícia brasileira na atualidade, ocupada cada vez mais por profissionais de nível superior atrás de emprego e estabilidade, precariados que têm atuado de forma bastante repressiva nas mobilizações contrárias ao que chamamos de golpe.

Outra característica ressaltada por MONEDERO é que o precariado é receptivo a mensagens de rebeldia de 1968, são urbanos e, portanto, “sujeitos à condição paradoxal de estar profundamente conectados às redes, ao mesmo tempo em que estão desconectados do mundo real”. Assim, não podemos deixar de refletir sobre o papel do precariado nas redes sociais e sua “indignação seletiva”, além do aprofundamento do sentimento de solidão e falsa pertença do mundo virtual, quebrado a partir das manifestações, trazendo não apenas o sentimento de pertença, mas o efeito manada (indivíduos em grupo que reagem todos da mesma maneira, mesmo que não exista uma direção planejada) do precariado.

Como já disse anteriormente, o precariado, não é rico e está mais próximo à realidade do proletariado, não janta na mesa da grande elite, mas é levado a desejar e até mesmo acreditar que pode ocupar esse espaço, como afirma GIOVANNI ALVES. “Muitos integrantes do precariado cultivam aspirações fetichistas de consumo e adotam o individualismo competitivo próprio do ethos burguês, mas estão profundamente imersos na condição de precariado”.

Assim sendo, a sensação de frustração, de não realização misturada à angustia da instabilidade levam o precariado a ser uma esponja para ideologias perigosas. Dentre elas o fascismo, conforme alertam alguns desses autores.

A falsa vitória do precariado

Distante de uma ideia de classe e pertença, o precariado levanta a bandeira da meritocracia, e tem dificuldades de expressar solidariedade de classe. Dessa forma, a perda de direitos trabalhistas, promovidas pelo golpe de 2015, pode dar até uma sensação de satisfação ao precariado, que percebe no proletariado que possui seguridade social, um adversário privilegiado, bem como o sentimento de estando em condições “iguais de corrida”, ele finalmente poderá encontrar o tão sonhado paraíso, passando a se sobrepor ao trabalhador com menos escolariadade. Podemos ainda levantar a hipótese do sentimento de indiferença, ou seja, a incompreensão do dano dessas perdas, tendo em vista que o precariado desconhece os benefícios desses direitos e, distante de uma representação sindical, não compreende o papel dessas entidades, passando facilmente a adotar o discurso de que “elas não querem perder o imposto”.

Trata-se, porém, de uma falsa vitória, pois o comando do golpe ainda pertence às elites que se somaram nas ruas e nas mídias às manifestações antipetistas, e todas as medidas adotadas caminham para o aumento da precarização e, consequentemente, para o aumento do precariado. Não para o reconhecimento de suas necessidades, mas para o enriquecimento através de uma maior exploração dessa força de trabalho.

Arrisco-me a afirmar que teremos uma grande quantidade de precarizados, produzindo em casa, a baixo custo, para a revenda as grandes empresas e corporações. Daí termos, na reforma, cláusulas como o teletrabalho. O precariado então estará mais distante dos seus anseios de consumo e inserção social junto aos mais ricos, e cada vez mais próximo ao trabalhador, em situação análoga à escravidão.

Caso não ocorra uma aproximação e a formação de uma identidade de classe com o proletariado, novamente me arrisco à profecia ao afirmar que isso resultará no aumento do sentimento de vazio e frustração e no aumento desenfreado de ideias de cunho fascista.

Então vamos falar de precariado?

Precariado e a classe média foram tema da 64ª edição dos encontros de BILDEBERG (Dresden, Alemanha). Uma versão, segundo a Revista Exame, “mais elitizada” que o encontro de DAVOS (Suíça). A reunião com 130 participantes, dentre eles representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI), altos executivos de corporações, membros do mundo da mídia, ministros de finanças e primeiros-ministros, não registra o que é discutido, bem como considera secreto tudo o que é dito. Desta forma, não sabemos o que pensam a elite mais poderosa do mundo acerca do precariado, mas sabemos que ele constitui um fenômeno de magnitude para ser temática de discussão nesse grupo e, portanto, deveria ser igualmente importante para a classe trabalhadora.

Porém a esquerda ainda está atenta a uma compreensão meramente de foco econômico e trabalhista voltada para visão do trabalho precário dentro do mercado formal, não se aprofundando na dimensão social do precariado, no que é e como influência a sociedade. O que fazer com essa frustração do precariado? É esse o debate que o campo progressista deve fazer.

Estamos diante de um longo caminho a percorrer. Se olharmos as diretorias dos partidos políticos de esquerda no Ceará, perceberemos um grande número de trabalhadores precariados. Lideranças com formação profissional e política, mas que há certo tempo ocupam cargos de assessoria, comissionados ou de administração partidária. Poderíamos refletir que, estando distante do que chamamos “chão de fábrica”, exista neles uma dificuldade de perceber as questões latentes, porém menos óbvias, do proletariado atual, bem como a sua dificuldade em verbalizar e dialogar com o próprio precariado, essa parte da classe trabalhadora que está tendo dificuldades de expressar seus anseios, reivindicações e angústias de forma mais clara.

Caberá então à classe operária como um todo, aos dirigentes sindicais que ainda resistem ao comodismo pós Lula, chamar para si essa tarefa. Dialogar com os pensadores, agitar as direções partidárias, abrir espaço para o proletariado e ajudá-lo a construir a voz em unidade com a classe e, dessa forma, combater o crescimento da ideologia fascista e da cooptação do precariado pela elite nacional e mundial.

Diálogo aberto

Como disse, não posso apresentar soluções econômicas, sociais ou até mesmo psicológicas para a questão do precariado. Porém, muitos dos que pensam e pensaram acerca dessa parte da classe trabalhadora apontam para a construção de uma voz política do precariado e o encontro de sua representação, ou a aceitação da identificação de classe proletária e, assim sendo, a unidade dessa classe contra a opressão. O que posso, é dar início a um debate sobre a importância do diálogo, da construção de uma comunicação trabalhista e sindical voltada para o precariado.

Durante muito tempo, senti-me perturbada por um fato ocorrido, em pleno processo de luta contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Na agonia de tentar contribuir na luta contra aquilo que compreendi como um golpe de estado, ofereci-me para ajudar na comunicação das manifestações durante uma reunião na CUT. Já em casa, busquei a arte mais tradicional da Frente Brasil Popular e me coloquei a criar um modelo bem típico de arte dentro do moldes da comunicação sindical tradicional. Acontece que a comunicação contrária ao golpe tem sido produzida em grande parte por um grupo de jovens-adultos que compõem movimentos recentemente criados a partir das mobilizações de 2013, como Casa Fora do Eixo, Mídia Ninja e uma série de outros coletivos. E logo, eles me pediram para refazer o trabalho, dessa vez sob nova perspectiva. Para ajudar, me mandaram exemplos e até recortes de figuras que deveria utilizar. Agradeci a ajuda e fiz o que me foi pedido, mas com uma sensação agonizante, de que estava criando uma comunicação sem a menor eficiência. Era uma arte bastante “pop” com figuras diferentes de representação social: mulheres, negros e LGBTs.

Pensei imediatamente que aquelas artes jamais seriam compreendidas pelos operários da construção civil, por exemplo. E verbalizei isso ao meu marido (ele é igualmente um jornalista sindical e filosofo), que resolveu testar a eficácia do material, enviando umas das artes prontas para um grupo de operários formado de forma espontânea sem a presença de dirigentes sindicais. Não deu outra. A arte não somente foi incompreendida, como surgiram alguns comentários de cunho homofóbico à figura de uma transexual presente na arte.

Nós sabíamos que o recorte de gênero vinha sendo discutido pela diretoria do sindicato, que havia iniciado esse debate com a categoria e encontrado bastante compreensão. Um coletivo LGBT havia se formado e alguns peões assumiram sua opção sexual junto aos demais. Então o que estaria errado? Por diversas vezes temi que estivéssemos perdendo a batalha por uma dificuldade enorme em comunicar o que ocorria para uma fatia importante do operariado.

E estava certa em parte. Aquelas artes não servem à comunicação concreta e objetiva do operariado, mas estava cega para algo que só pude entender a partir do momento em que me debrucei sobre o conceito de precariado. Se pararmos para analisar, os coletivos formados a partir do conceito da Casa Fora do Eixo são compostos por artistas e outros profissionais que trocam trabalho por trabalho, sem relações trabalhistas especificas e sem remuneração salarial. Eles são precariado, um precariado que criou uma ideologia acerca de sua condição de trabalho, mas ainda assim, um precariado. Assim sendo, eles estão mais próximos de traçar a comunicação a esse perfil de trabalhadores do que eu, que me construí para a comunicação do trabalhador a partir de sua entidade de classe.

Acredito que eles acertaram em muitas coisas em relação à estética e ao modo, por isso tantos acessos e seguidores, mas, ao mesmo tempo, sinto que eles, assim como o precariado, têm dificuldades de se aprofundar no cerne no problema. Ou seja, eles trazem a representação de um transexual, dos negros, das mulheres, dos jovens, em uma arte. A mensagem é clara: eu sou parte da sociedade e preciso que me percebam enquanto sujeito, mas estamos ainda na superfície dos anseios dessas chamadas “minorias”. Excluindo o debate mais profundo a ser feito, que pode ser, por exemplo, sou transexual, negro, mulher, jovem e quero emprego; quero renda quero direito ao consumo e assim por diante.

Outra questão que me chama atenção é a agressividade nas redes sociais, não apenas por parte da elite ou do precariado, mas do campo progressista como um todo. Mesmo que esse sentimento de raiva tenha se iniciado a partir do preconceito de classe da elite e da frustração do precariado, preocupa-me que o campo progressista reaja com a criação de expressões como “coxinha”, “pobre de direita”, e a generalização de “burguesia” e seus derivados. Ao fazer isso, não somente afastamos a possibilidade de diálogo trancando o precariado no sentimento defensivo como o entregamos ao sentimento de pertença à burguesia e o distanciamos do sentimento de classe.

Tenho uma forma de agir que tem obtido certo sucesso no diálogo com o precariado. Todos eles passam pelo entendimento do que é o precariado, a identificação dos que compõe essa classe, o sentimento de solidariedade com sua dor e a paciência para as explicações. A simples recusa ao diálogo quando ele passa pela agressão verbal – copiando e colando, quantas vezes necessárias frases como: não dialogo com agressividade; caso queira uma conversa fraterna estou disposta a te ouvir; caso siga agressivo, não irei lhe responder, é uma das formas.

Em alguns casos, a identificação da agressividade que confronto com a ideologia dessa pessoa como: “você é um seguidor da Bíblia, então sabe como eu que só quem julga é Deus. A amai-vos uns aos outros como vos amei” ou “eu te conheço, tenho profundo carinho por ti, nossa amizade é importante e, por isso mesmo, estou aqui dizendo que podemos discordar, mas você não pode dar espaço ao ódio, pois sei que isso não é você”.

Em muitos casos não respondo diretamente, mas exponho uma opinião contrária em meu perfil (uma indireta direta) que não agride o outro, mas ele verá que sua opinião não é unanimidade e que existem outros pontos de vista.

Além disto, tenho a paciência de seguir um diálogo iniciado até a sua exaustão. E fujo do campo meramente opinativo, fornecendo dados concretos colhidos em fontes seguras, pois também existem fontes de esquerda que atuam com a pós-verdade.

Tenho levantado um debate com o movimento sindical sobre a invisibilidade do precariado. Não perceber sua face nas manifestações e no despejo das insatisfações nas redes socais pode ser um erro fatal. Julgá-lo como parte da burguesia também. Da mesma forma, a insinuação de que “não lêem livro de história” ou “são burros”, é um verdadeiro atentado à percepção de que o precariado tem de si, alguém que estudou e se sacrificou para chegar lá.

O movimento sindical deve aceitar o precariado e tentar entender suas insatisfações auxiliando, através dos veículos de comunicação sindical e ações políticas, essa parte da classe trabalhadora a encontrar sua voz, bem como encontrar o sentimento de pertença junto ao proletariado. Costumo afirmar que é preciso carinho, paciência e toda uma postura de diálogo que faz parte do processo de uma boa comunicação. O dirigente sindical deve preencher esse sentimento de vazio, levando segurança onde existe insegurança, solidariedade onde existe indiferença, substituindo aos poucos o desejo pelo consumo e ideias da burguesia pelo desejo de estar entre os seus.

Não é tarefa fácil. Entendam: o papel do dirigente sindical é incomodar. Nós estamos dizendo para toda classe trabalhadora que ela não vai se aposentar enquanto os que estão retirando seus direitos estão dizendo que tudo vai ficar bem se eles aceitarem o que acontece. O dirigente não: ele está dizendo que não vai ficar bem, que não vai melhorar, que só melhora se nos despirmos dessa ideologia promovida pelo capital e lutarmos contra a opressão. Isso é muito trabalhoso, ainda mais para o precariado, que todo tempo deve se preocupar em se manter estável no mercado de trabalho, aceitando assim a abertura de qualquer direito.

Essas pessoas estão exaustas, precisam de soluções fáceis, como afirma Zizêk, no filme “Guia pervertido da ideologia”: um inimigo único. Como o judeu para os nazistas, a mãe solteira inglesa na década de 1980 para o primeiro-ministro John Major e o PT para o precariado e a elite em 2015.

Cabe ao dirigente sindical desconstruir esse discurso apresentando os reais inimigos da classe trabalhadora.


*Marina Valente é jornalista sindical.

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