Publicado 08/09/2017 12:36 | Editado 04/03/2020 17:15
Lamentavelmente a democracia também produz os seus desaparecidos. A prática do desaparecimento de pessoas não ficou restrita aos anos das ditaduras e de regimes autoritários em diversas partes da América Latina na segunda metade do século XX. A indiferença ou o comodismo de parte das sociedades apenas explicitam como a passagem das ditaduras para os regimes democráticos foram feitas em sociedades despedaçadas e fraturadas em seus traumas, onde cada grupo carrega suas dores, memórias e feridas.
Na Argentina, onde a figura do desaparecido causa comoção pelos 30.000 desaparecidos durante a última ditadura militar (1976-1983), um novo caso de desaparecimento agita o país. O jovem Santiago Maldonado, de 28 anos, desapareceu após um protesto no último dia 01 de agosto. Santiago participava de uma manifestação da comunidade mapuche na província de Chubut, na Patagônia argentina. Os indígenas reivindicam as terras vendidas pelo governo argentino nos anos 1990 ao grupo Benetton.
Maldonado foi visto pela última vez durante a repressão policial no protesto de agosto. Desde então, o país faz uma única pergunta: onde está Santiago Maldonado? A polícia nacional e os órgãos oficiais difundem a ideia de que ele teria fugido para a Patagônia ou mesmo sido assassinado em uma desavença entre os que protestavam. A versão oficial é desmentida por indícios e por outros relatos de testemunhas que afirmam que Maldonado foi levado num camburão e que chegou a entrar na delegacia. A Gendarmería, uma polícia nacional responsável pela ordem interna e por combate ao terrorismo, seria responsável pela captura de Maldonado e teria as informações necessárias para esclarecer o episódio. Mas o silêncio oficial é tão incômodo como os possíveis desenlaces da história.
O tema repercute na Argentina e reaviva aspectos conhecidos daquele país. Os desaparecidos pela ditadura militar pertencem a um quadro explicativo mais complexo do que a contabilidade de mortos. Diante de um corpo há um luto que é vivenciado e solidariedades são despertadas em um círculo específico. Os desaparecimentos, como sinalizam importantes estudos como os de Pilar Calveiro e Ludmila da Silva Catela, rompem uma estrutura lógica dos seres humanos que nascem, constroem suas trajetórias e morrem.
Com o desaparecimento permanece uma incógnita e amplia-se a dor de familiares, amigos e pessoas próximas que tentam remontar explicações e, sobretudo, sobreviver com as dores de nunca obter uma resposta para saber o que de fato aconteceu. As suspeitas, as mensagens ambíguas que eram emitidas num contexto de censura e publicidade sobre as ações de repressão amplificavam os sofrimentos dos que ficaram sem notícias sobre as pessoas que desapareceram. A ditadura agiu assim.
A condição de Maldonado como o último desaparecido rememora o terror impensável praticado e patrocinado pelo Estado. As sensações mais doloridas que remetem a experiências pessoais e coletivas de avós, pais e mães, filhas, filhos e amigos que nunca tiveram informações precisas sobre seus entes. Reivindicar Santiago Maldonado, com o mesmo slogan dos anos 1980 que abre essa seção, expressa o dever de memória e o apelo da sociedade argentina de que ninguém deveria ficar indiferente diante de uma desaparição.
A agitação das ruas, os protestos públicos e a atenção midiática demonstram que o silêncio e amedrontamento pretendidos pela ditadura não amordaçaram toda a sociedade argentina. Pode-se dizer que, numa leitura edulcorada, os argentinos são mais mobilizados e não deixam esquecer sua história recente. Num olhar mais atento, pode-se dizer que a dor é tão forte, intensa e duramente experimentada que é praticamente impossível silenciar-se.
O desaparecimento de Maldonado é inadmissível diante do fato em si e diante das perspectivas de que um cidadão não pode sumir em um órgão de Estado. Este mesmo Estado tem que informar, apresentar provas sobre o que ocorreu ou sobre o paradeiro do rapaz que vivia fazendo tatuagens e vendendo artesanato na Patagônia.
A ditadura sistematizou o desaparecimento como prática repressiva primordial do Estado. A democracia não extinguiu práticas que expressam o abuso de autoridade e, sobretudo, a ação contra sujeitos e grupos que o Estado gostaria que desaparecessem. Sujeitos indesejados podem “desaparecer” e os agentes de Estado – do policial ao presidente da República – ignoram as demandas da sociedade argentina, de suas principais figuras públicas e da opinião pública internacional.
A experiência da violência e dos ataques das forças repressoras do Estado são heranças do autoritarismo de cada dia e que persistem na democracia. O século XXI latino-americano traz consigo a convivência e conivência de certos grupos com expressões de poder que não se pautam por princípios republicanos e democráticos. A tortura, o sequestro, o assassinato político, os mecanismos de abordagem da população da periferia e dos “indesejados” são práticas contínuas.
Não há no desaparecimento de Maldonado (2017), na do ajudante de obras Amarildo, no Rio de Janeiro (2013) – que veio a ser esclarecido num processo moroso, mas seu corpo nunca foi encontrado – e no caso dos 43 jovens estudantes mexicanos de Ayotzinapa (México, 2014) nenhum esforço adicional para esclarecer, punir e prevenir. O Estado, preservando suas práticas autoritárias, não tem qualquer compromisso com a transparência e a punição de seus agentes. A vida, nesse instante e sem nenhum subterfúgio, é um dado banal e as sociedades permanecem indefesas diante da experiência da violência.
Que as ditaduras e seus aparatos repressores tenham criado mecanismos abomináveis tem que ser lembrado e denunciado constantemente. Que as democracias mimetizem tais procedimentos é no mínimo o indício de que as sociedades latino-americanas vivem um momento de dilaceramento. E, neste contexto e em nenhum outro, não nos cabe apenas criticar o passado.