Rosemberg Cariry: Em tempo de murici

"Dizia o insubmisso Paulo Freire: ‘Em um país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário’. Se for assim, em vez de cuidarmos apenas do próprio umbigo, cada um de nós tem o dever de manter a esperança e contribuir para que o povo acorde, antes que seja tarde demais.

Por *Rosemberg Cariry

Brasil em crise

Diz o provérbio popular que “em tempo de murici, cada um cuida de si”. Esse ensinamento para acomodados, bem cabe no tempo de obscurantismo que estamos a viver, sob a égide do neoliberalismo, que fracassou e espalhou ruínas pelo mundo, mas que aplicado ao Brasil, de modo tardio e acelerado, exibe toda a sua força destrutiva.

O noticiário nos mostra que vivemos um tempo, em que reinam as piores atrocidades. Forças conservadoras põem em movimento uma onda persecutória, feita de ignorância, censura, intolerância e falso moralismo, que mais parece um tsunami de farisaísmo e de fascismo. Nesse tempo de horrores, as crianças, os adolescentes e as mulheres são alvo de exploração crescente. Índios são mortos e massacrados para tomada de seus territórios. Quilombolas são destituídos de suas terras, e sem-terra são assassinados. Nas periferias e favelas, vítimas do crime organizado e da polícia, os jovens pobres são cotidianamente dizimados. Morrem mais jovens pobres (a maioria negra) por ano do que nas guerras do Oriente Médio. Órgãos internacionais denunciam o que já se convencionou chamar de “holocausto da juventude pobre” no Brasil. O dito combate ao tráfico de drogas, seguindo interesses estratégicos dos EUA, parece mera simulação, pois o crime organizado, como “corporação” comercial moderna, por demais rentável, cresce a cada dia e hoje domina os bairros e favelas das principais cidades brasileiras, afrontando o próprio Estado, mas contando sempre com o oculto apoio de poderosos. Uma tenebrosa indústria da morte.

Ao lado disso, enchem as páginas da grande imprensa o protagonismo dos cínicos. Empresários, banqueiros, pastores gananciosos, políticos conservadores, magnatas do agronegócio e das minerações (traidores da nação e aliados de interesses transnacionais), unidos pedem o fim do Estado de proteção social. Formam eles uma classe dominante impiedosa que quer o estado mínimo para o povo e máximo para dar retaguarda sem riscos aos seus negócios bilionários. Alçados de qualquer maneira ao poder, com o empurrão de forças sem rosto do mercado global, no espaço de pouco mais de ano, já conseguiram jogar 10 milhões de pessoas de volta à miséria absoluta. Guardam para si todas as benesses e privilégios, enquanto destroem a educação, a pesquisa, a cultura, a proteção social e a dignidade dos mais frágeis.

Dizia o insubmisso Paulo Freire: “Em um país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”. Se for assim, em vez de cuidarmos apenas do próprio umbigo, cada um de nós tem o dever de manter a esperança e contribuir para que o povo acorde, antes que seja tarde demais. Pois se constata que subjaz a tudo isso o mais tenebroso legado da nossa triste história: o sono oriundo da chibata escravagista e da alienação, impondo a ideologia de que cada um deve cuidar apenas das próprias feridas. Imerso nesse torpor secular, aquele que está um pouquinho acima dos desgraçados, na pirâmide social, nem percebe que será o próximo. Está cego.

*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor

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