Laerte Coutinho: “Sou uma mulher possível, sou o que queria ser”

Em entrevista ao jornal Unidade (do Sindicato dos Jornalistas de SP), a Laerte comentou suas mudanças, o engajamento na luta LGBT, a importância do Sindicato e de ser sindicalizada, e sobre o golpe e a mídia no Brasil.

laerte - Cadu Bazilevski/SJSP

A cartunista e chargista Laerte Coutinho, 66, inicia 2018 com mais uma entrevista da série publicada no jornal Unidade com jornalistas sindicalizados e sindicalizadas que fazem a história do jornalismo em São Paulo.

Transgênera ou “mulher possível”, como se autodefine, ela se reinventou não só na vida pessoal, mas também na carreira e hoje é entrevistadora na TV, personagem de documentário e até tema de uma tese de mestrado da Universidade de São Paulo que aborda a cobertura midiática da transição de gênero da cartunista.

“Demorei muito a entender que desenhar é um trabalho, que ilustrar matérias e tiras é um trabalho. E agora estou tendo umas dificuldades extras que é entender que fazer entrevistas também é um trabalho. Isso é uma característica minha. Tenho gostado de diversificar”, afirmou sobre suas produções que hoje não se limitam às artes do traço.

Em entrevista exclusiva ao jornal Unidade, a Laerte comentou suas mudanças, o engajamento na luta LGBT, a importância do Sindicato dos Jornalistas e de ser sindicalizada. A chargista também falou sobre o golpe e a mídia no Brasil, e sobre projetos futuros – como a narrativa sobre sexo e política que está em fase de criação.

Laerte, como você define esse seu momento de transição? Você é transgênera? É uma mulher social?
– Do ponto de vista de gênero, estou cada vez mais tranquila (risos). Eu sou uma mulher possível, sou o que eu queria ser. Sou uma transição, sou isso, transgênera. Eu não fiz minha transição, estou fazendo e sei lá quando acaba. O que quero ser é algo que já estou sendo. Não tenho muitos problemas em me afirmar como mulher, ou como uma mulher possível, ou uma mulher em trânsito. Estou no feminino e isso é definitivo para mim. Tem procedimentos que estou ou em estudo ou fazendo. Estou me hormonizando, por exemplo, e não é mais uma questão de dúvida. Estou tranquila quanto a isso. Sei o que sou e o que estou sendo. Então, do ponto de vista de gênero, estou bem! [risos].

Essa transição fez você se engajar na luta e se tornar musa e militante LGBT. Como é participar desse movimento?
– Isso já um território um pouco mais preocupante porque tenho feito um processo de conhecimento dessa parte da vida, da questão de direitos, por exemplo. Tenho conhecido muita gente, entrado em contato com aflições e histórias que são um dado novo para mim e tenho procurado agir ecoando essas inquietações todas. Mas não estou em busca de uma solução de setor. Não quero conquistas de direitos de nicho, quero conquistas de direitos universais. Quero que a liberdade de expressão de gênero seja estendida a toda a população, que qualquer pessoa possa se inquietar com o gênero que lhe foi atribuído quando a pessoa nasceu, com o gênero que lhe é imposto. Quero que as pessoas tenham liberdade de se rearranjar em relação a isso, mas qualquer pessoa, não é uma reivindicação para uma parte só da sociedade, é para todo mundo. Nesse sentido, faço questão de manter meu foco um pouco autônomo em relação às reivindicações exageradamente identitárias. Acho que a busca da identidade, não só na questão de gênero como nas questões de etnias, de religião, de cultura, de orientação sexual, todas as identidades são importantes do ponto de vista de construção e auto reforçamento de posições. Mas elas também carregam um problema que se coloca para as pessoas. Elas precisam fazer uma combinação de suas lutas setoriais com as lutas gerais, senão, tudo breca, entrava. É importante reconhecer que há partes do movimento LGBT que são específicas, que há partes do movimento feminista que são específicas, que há partes do movimento negro que são específicas. Mas é preciso não perder de vista que essas lutas precisam se combinar, senão dá tudo errado, um pisa no calcanhar do outro e ninguém consegue nada.

O que você diria às pessoas que estão na descoberta dessa transição?
– Fico um pouco ressabiada em dar conselhos genéricos porque essas descobertas se dão de formas muito idiossincráticas. Pessoas me escrevem perguntando “o que eu faço? conto para minha família?”. Depende de como é sua família, de como você está nessa. Há pessoas, idades, condições e contextos diferentes, e não sei o que dizer genericamente. “Ah, vamos sair do armário!”. É interessante, é importante, inclusive, mas tudo é diferente, para mim foi diferente. Não sai do armário assim, nem sei se sai do armário totalmente [risos], deve ter uns pedacinhos meus lá dentro do armário ainda. E por que isso? Porque certa histórias implicam em riscos maiores e o meu movimento foi, relativamente, de poucos riscos. Corri alguns riscos, lógico, mas foram mais ou menos calculados. Eu sabia com quem estava contando, em que ponto estava minha vida pessoal, familiar, afetiva, profissional e fiz meu movimento contando com coisas que achava que podia contar. De modo geral, tudo funcionou. Recebi apoio, afeto, fui acolhida. Poderia não dar certo, mas deu. Acho que fiz uma boa análise, mas não é assim com todo mundo. Pessoas botam em risco coisas muito graves quando seguem a sua verdade, quando procuram se fazer expressar da forma mais autêntica e mais verdadeira possível. Elas colocam em risco muita coisa.

Para você que sempre foi colaboradora do movimento sindical, do próprio SJSP, como avalia historicamente o momento?
– Não me sinto autorizada para fazer análises. Minha parceria e colaboração com o movimento sindical brasileiro não se deu sem interrupções. Durante boa parte da década de 1990 eu não queria nem saber e talvez parte do movimento sindical também não estivesse a fim disso. O movimento sindical, historicamente, tem idas e vindas, erros e acertos. Acho que houve um momento muito impressionante, muito energético, que foi o final dos anos 1970 – isso do meu ponto de vista de participação. Então, para fazer uma análise do movimento sindical, eu teria que fazer uma análise da minha vida pessoal também, e não me sinto lá muito firme nas pernas para fazer isso [risos].

E quanto à importância do Sindicato e de ser sindicalizada?
– A importância é de que uma categoria defende melhor seus pontos de vista específicos e genéricos, enquanto trabalhadores, com a ajuda ou através de suas entidades de representação. Os sindicatos são, historicamente, entidades de representação dos trabalhadores. Tem outras, mas os sindicatos são o mais importante e sempre achei isso.

Laerte, como você está vendo esse momento de golpe no país?
– O momento é periclitante, a qualquer momento pode mudar. Temos visto o avanço ou a progressão, uma escalada de intervenções fascitoides na cultura, na vida civil, nos direitos. Recentemente, numa espécie de clímax para todo mundo, foi um susto mesmo, um militar gabaritado veio falar em intervenção militar, e simplesmente se jogou um tapetão em cima disso dizendo “não, está tudo sob controle”. E isso é sinal de que não está sob controle! Isso é muito assustador e podemos viver um revertério radical na situação em questão de minutos. Está tudo por um fio. Não sabemos se vai ter eleição em 2018, se esse governo dura mais um mês, dois meses, se vai até o fim do ano. Fazer esse tipo de aposta “ah, acho que durar” ou “ah, acho que não”, para mim, isso não é nem um exercício político, nem de jornalismo, nem de nada. É uma conversa de bar. Há coisas a fazer e essas coisas envolvem ações para reforçar determinadas instituições que ainda estão sólidas, para ajudar ou estimular outras, e por aí vamos. Mas garantia não existe mais, não existe mesmo.

E quanto ao papel da mídia nessa conjuntura?
– É uma característica geral do que estamos vivendo que a mídia toda está se comportando de um jeito uniforme. Às vezes um apoia o Temer e outro quer queimar o Temer. Às vezes tem isso, mas, de um modo geral, a mídia agiu de uma maneira uniforme numa destruição da ordem democrática na destituição da Dilma e, agora, nos diferentes jogos para acobertar ou revelar coisas. A mídia para mim deixou de ser uma coisa confiável de um modo geral.

O que você diria sobre a profissão aos jovens estudantes ou recém-formados em jornalismo?
– Que procurem compreender o que é ser jornalista e que a natureza da crise que essa profissão está enfrentando não diz respeito só a uma questão tecnológica. A mídia em crise muitas vezes se rende a questões financeiras e muitas vezes se vende. Nos jornalistas, aqui mais, aqui menos, há uma tendência também de busca de holofotes, de excelência ou desempenho no mal sentido, no sentido de corresponder a uma posição do jornal, e essa posição sendo oportunista, o que é que faz? Faz com que o jornalista também se torne um excelente oportunista. Como manter a dignidade jornalística, a importância da investigação da realidade e da comunicação dessas investigações? É difícil isso. No jornalismo, a mídia independente se tornou importantíssima. A existência da internet, dos meios digitais, trouxe a possibilidade de uma mídia com a qual não se contava tempos atrás, e isso também é algo a se levar em conta. Jovens jornalistas precisam pesar tudo isso e procurar também compreender a natureza do que é o trabalho jornalístico, que é investigar a realidade, contar a realidade.

Quais os seus projetos para o futuro? O que podemos esperar de novidades da Laerte?
– Tem a revista Baiacu, que é um projeto que eu e o Angeli começamos há alguns anos, que veio tomando um corpo numa outra direção. Hoje se constitui num livro-revista lançado em novembro passado, envolvendo uma residência artística que reúne 10 autores e autoras, gente de fora também. Esse projeto vai continuar em 2018, ainda estamos discutindo as formas, mas vai continuar. E tem um projetão pessoal que é uma estória, que estou em debates internos sobre a extensão disso. Em princípio, achava que era uma estória que vinha dos anos 1970 até 2010, uma estória ampla, uma narrativa sobre sexo e política. Estou pensando em reduzir um pouco porque a elaboração do roteiro está me apontando para determinadas dinâmicas que talvez me interessem mais. Como vivi tudo isso, tendo a pensar num argumento que envolva tudo isso. Mas a vida não é um roteiro, então, às vezes, dentro de uma vida, você tem roteiros mais proveitosos do ponto de vista dramático, de expressão mesmo.