A perigosa ameaça das crises humanitárias

Uma das características mais marcantes da geopolítica contemporânea é a instrumentalização de certas demandas históricas – como o combate à corrupção e ao narcotráfico – para avançar determinadas agendas e interesses políticos. Mas talvez a mais grave dessas instrumentalizações seja aquela relacionada às “crises humanitárias”.

Por Aline Piva

Crise humanitária na Venezuela - Divulgação

Primeiro, porque em uma parte significativa dos casos, essas crises são forjadas justamente para criar as condições que legitimem uma intervenção à revelia dos preceitos básicos do Direito Internacional. Segundo, porque, resguardados sob o manto de “ajuda humanitária”, se comete todo tipo de barbárie.

Nesse processo, fatos não importam – e se os fatos não existem, não há o menor pudor em cria-los. A invasão do Iraque, por exemplo, foi justificada pela suposta existência de armas de destruição em massa no país. Armou-se o show midiático, Colin Powell foi à ONU denunciar a ameaça mundial representada pelo Iraque, exortar as pessoas de bem à saírem em apoio aos iraquianos. Esse mesmo Powell, tempos depois, admitiu que o governo dos Estados Unidos foi “deliberadamente” enganado sobre a existência dessas armas. Tarde demais. A invasão do Iraque levou a uma série de outras invasões “humanitárias”, entre aspas, na região.

E se os fatos não importam, as consequências para a população importam menos ainda.
Não é sem uma boa dose de preocupação que vemos um cenário semelhante se delinear na América Latina. A Venezuela hoje é descrita como um país dominado pelo caos e pela instabilidade. Às crises política e econômica, soma-se agora uma suposta crise migratória, amplamente explorada pela mídia. Omitem, muito convenientemente, a porosidade histórica dessa região fronteiriça. Omitem, ainda mais convenientemente, o papel desempenhado pelas sanções no aprofundamento dessas crises. Exacerbam o cenário migratório para promover a propaganda humanitária contra a Venezuela. Com isso, tentam compensar o trágico vácuo político deixado pela oposição, justificar a ampliação da presença militar estadunidense na região e consolidar as condições necessárias para uma intervenção no país vizinho. A visita de Kurt Tidd à Colômbia na rasteira do tour do secretário de Estado dos Estados Unidos, Rex Tillerson, pela região, a mobilização de tropas brasileiras e colombianas na fronteira e a chegada de tropas estadunidenses no Panamá são sinais bastante evidentes de que uma intervenção “humanitária” estaria efetivamente sendo considerada.

A emergência econômica que a Venezuela enfrenta atualmente é inegável. Mas entender seu contexto é essencial para uma leitura honesta dos fatos. Basta ver as declarações de Tillerson, dos representantes do Grupo de Lima. Enquanto choram lágrimas de crocodilo sobre o sofrimento dos venezuelanos, a mídia e os governos da região apoiam políticas que exacerbam implacavelmente a miséria humana como meio de minar o apoio popular ao governo venezuelano.

Mas a questão já ultrapassa a defesa ou crítica ao governo Maduro: estamos falando de uma clara ameaça à soberania latino-americana. Uma coisa é certa: o resultado das intervenções “humanitárias” não são nem a paz, nem a resolução da crise. Mas sim, a ocupação territorial e a apropriação dos recursos dos países em questão. E exemplos abundam.

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