Em meio ao caos, luz, poesia e solidariedade

Apagão. Na parada do ônibus da Praça dos Leões aceno o 286. Sem entender o porquê, entro no ônibus com o trajeto mais longo. Subindo o degrau, agradeci aos Orixás pela escolha correta do dia. Ficaria inquieta dirigindo no engarrafamento, em meio a desinformação, por falha de conexão com as pessoas via redes sociais, e ao caos da cidade sem semáforos por tempo indeterminado. Ficaria a mercê das emoções e da lei dos homens. Como seria?

Por Juliana Holanda*

Juliana Holanda

Sim, foi correta. Fiz a melhor opção: ônibus. Na mochila, o livro O que é Lugar de fala, da Djamila Ribeiro, do qual acabaria relendo algumas páginas. Na orelha do livro, Sueli Carneiro, registra:"Djamila nos brinda com a organização dessa bela e inspiradora coleção – Feminismos Plurais – na qual se expressa e afirma a diversidade da temática e de perspectivas que atravessam a reflexão, ação política e cultural de mulheres negras, indígenas e homens negros que trazem em comum a insurgência desses grupos subalternizados frente aos modos de subjetivação consagrados pelo racismo, sexismo e o desafio de construção de novos imaginários restituidores da plena humanidade de todas e todos.

Penso que desejo ainda compartilhar a leitura e discussão com tantas pessoas. A todo momento, entretanto, ouvia comentários sobre o possível motivo da falta de energia. … ''culpa desse governo doido, sem pé nem cabeça" – dizia um usuário. Concordei com a desaprovação do rapaz que em seguida tiraria o fone tentando serenizar a sequência de más notícias dos últimos tempos.

Já no terminal do Papicu, as selfies no breu traziam uma sensação de ineditismo. Como não registrar na memória a existência no meio do caos? Pego outro coletivo do qual desço na parada de ônibus da Cidade 2000. Percebo uma senhora, que parecia ter no máximo 1,40m, bolsa agarrada na axila (atitude e costume dos antigos) e a fala trêmula. Ela tentava dar um passo a mais. Não conseguia distinguir o calçamento e a calçada. Pior foi perceber que Dona Zezé não sabia para onde ir.

Antes de alcançá-La, ouvi recomendações de outros pedestres… 'Vai devagar'… naquela altura, insensíveis, insensatos e sei-lá-mais-o-quê pois não notaram a idade nem fragilidade daquele corpo franzino. Como essas pessoas não ofertariam ajuda? Se sou mais uma – e desço correndo sem perceber ao meu redor – como Dona Zezé ficaria? Coração aperta. O grisalho do cabelo Dela estava vistoso. A partir de então, éramos nós duas, de mãos dadas, pisando o chão sob a luz da tênue lua e das estrelas.

– Está nova. – dizia Ela olhando pro céu.

Mostrei as Três Marias da constelação de Orion, única que saberia identificar. Ela me chamou de Anjo. Respondi que eu era bem Pretinha. Ela riu, disse que não tinha preconceito e que torcia que existissem mais anjo pretos pelo mundo, só assim as pessoas entenderiam que somos iguais. Estava abraçada pela Sabedoria, sorrimos novamente.

Fui contando a cada quarteirão onde estávamos, dizendo o nome do comércio, detalhando a passada naquele contato surgido pela urgência. O ato a fez recordar das vivências pelo bairro. Caminhamos ainda uns quatro quarteirões até chegar a entrada de sua rua. Disse:

– Estamos perto da loja dos pássaros.
– Entremos aqui, é por aqui mesmo, eles cantam que é uma beleza, venha pela manhã ouvir. – respondeu.

Recomendação anotada. O número da morada é 266 e chamo pela Dona Graça. Escuto o arrastado da chinela e um 'Graças a Deus, Dona Zezé!' é dito lá dos fundos. "Minha fia, Deus te abençoe!" Respondo o de sempre: asé e a todos nós.

Dona Zezé aperta meu braço e diz. "Que teu Deus te faça feliz" e afirma que pode ser minha bisavó. Sobe a calçada e entra aliviada pela chegada em segurança.

Estendendo a bênção, oro sim aos meus Deuses Xangô, Yansã e Obá para proteger nossos caminhos, na cidade e no interior, em especial a todas pessoas 'desassistidas', em especial nas periferias, nos quilombos, nas aldeias desse nordeste noturno sem luz. Cada vida no pedaço desse chão importa.