Democratas dos EUA respondem a Trump com guinada à esquerda
Mulheres, jovens e representantes de minorias étnicas protagonizam esta onda de insurgentes em um partido em busca de transformação depois do trauma eleitoral de 2016
Publicado 19/09/2018 17:34
Ayanna Pressley foi o centro das atenções na semana passada em Boston, tradicional distrito de JFK, terra santa dos democratas. A afro-americana, de 44 anos, derrotou nas primárias o veterano Mike Capuano, aposentando-o do Congresso após 20 anos no cargo e tornando-se a primeira negra nomeada para representar Massachusetts na Câmara dos Deputados. A vitória foi semelhante à de alguns dias antes, na Flórida, onde Andrew Gillum, de 39 anos, contrariou as expectativas como o escolhido para ser o candidato dos democratas a governador do Estado, também o primeiro afro-americano candidato ao posto. Gillum, com uma campanha muito progressista e de orçamento baixo, evocava a façanha de Alexandria Ocasio-Cortez, essa jovem de 28 anos e de origem latina que, em julho, derrotou Joseph Crowley, de 56 anos, um peso-pesado do partido. Mas Washington pode estremecer ainda mais com a chegada de Rashida Tlaib, que venceu em agosto sua rival democrata em Michigan e agora luta para ser a primeira muçulmana no Congresso dos Estados Unidos.
As primárias democratas estão se destacando pela liderança entre a energia dos novos candidatos e a perda de força do establishment. Um número sem precedentes de mulheres, jovens e políticos pertencentes a minorias étnicas lidera essa onda de insurgentes vinda principalmente da ala esquerda do partido e emerge, em parte, como uma reação a Donald Trump.
O Brookings Institution, um renomado think tank independente com sede em Washington, avaliou quase 1.900 candidatos para vários assentos no Congresso que disputam cerca de 600 primárias em todo o país. Com dados até meados de julho, o número de novos candidatos que buscavam tomar o lugar de um legislador eleito havia subido para 280, em comparação aos 60 na mesma data em 2014. Apesar desse avanço, com números absolutos, o establishment continua acumulando mais vitórias. A derrota nesta semana da atriz progressista Cynthia Nixon para o governador do Estado de Nova York, Andrew Cuomo, é um exemplo eloquente.
Os insurgentes da esquerda não atacaram o partido, mas sua crescente participação envia um sinal claro de um partido político que busca sua transformação após o trauma eleitoral ocorrido há dois anos, quando Hillary Clinton, uma candidata que parecia ter saído de um manual, perdeu a presidência contra um dos aspirantes mais criticados no Partido Republicano.
A guinada à esquerda do Partido Democrata vem ganhando força desde 2016, evidenciada na onda de entusiasmo provocada pela candidatura de Bernie Sanders e também no tom mais progressista da própria Clinton. "É um desenvolvimento de longo prazo, não uma mudança abrupta de 2018", concorda Geoffrey Skelley, da Universidade de Virgínia, para quem "a campanha de Sanders fez parte dessa mudança e a reação a Donald Trump também, mas há fatores adicionais em cada uma dessas vitórias progressistas, que não podem ser completamente vinculadas à sua posição ideológica [mais à esquerda]. "Por exemplo, no caso de Ocasio-Cortez, o triunfo se dá em um distrito raivosamente progressista e diverso (Queens-Bronx), e sua inesperada vitória combina, para Skelley, "ideologia, mas também política de identidade".
Não há, na verdade, revolução, mas as placas tectônicas se movem. A chegada desses novos políticos ao cenário incorporou ao debate questões até então alheias ao democrata moderado ou tradicional: de melhorar a rede de proteção do sistema de saúde do Obamacare, ao considerar uma cobertura universal; de reformar ou abolir a força de segurança do serviço de imigração e alfândega da fronteira (ICE, na sigla em inglês); ou reivindicar um salário mínimo de 15 dólares por hora (cerca de 63 reais) e gradualmente melhorar o poder aquisitivo dos trabalhadores. Entre os mais inclinados à primeira postura e os defensores da segunda, pode-se traçar essa linha difusa que separa o democrata moderado (muitas vezes também preferido pelo establishment) do chamada esquerdista.
Embora Gillum, por exemplo, não se considere socialista e tenha sido delegado de Clinton nas primárias democratas para as eleições presidenciais, é um defensor da saúde universal. Já Ocasio-Cortez se considera socialista, como Sanders (que disputou a nomeação pelo Partido Democrata contra Clinton nas eleições presidenciais de 2016), alimentando uma tendência para ser acompanhada de perto. O número de integrantes da organização Socialistas Democráticos da América disparou. Desde que foi fundada em 1982, o número costumava permanecer estável, com cerca de 6.000 membros (e nunca ultrapassou os 10.000). Após a vitória de Trump, o total foi subindo para mais de 40.000, o que continua sendo histórico em um país que, até recentemente, associava o termo socialista ao comunismo soviético, mas representa um salto à vara.
"Não é incomum, em tempos de polarização, como também foi em 1968, que ocorra uma tensão no partido entre pragmáticos que querem ganhar, apelando para o centro, e esquerdistas, que procuram o máximo contraste com republicanos", diz George Edwards, da Universidade do Texas. Em sua opinião, as duas facções tendem a se fundir nas eleições presidenciais de 2020, "especialmente se os candidatos mais esquerdistas não conseguirem vencer em novembro".
A divergência entre moderados e esquerdistas não deve ser lida como uma fratura, porque, na fase das primárias, como ocorre com todos os partidos e em todas as eleições, as diferenças dos discursos se tornam mais evidentes, porque o aspirante à candidatura disputa os votos da mesma base. E nem todos os vencedores nesta fase, na qual são escolhidos os nomes para a disputa em 6 de novembro, conseguirão um assento. Enquanto Pressley, de Massachusetts, e Ocasio-Cortez, de Nova York, têm todas as chances de ganhar, a vitória de Gillum seria uma proeza: os democratas não governam a Flórida desde 1999.