Torcidas e história das arquibancadas contra Bolsonaro

O futebol como representação da nacionalidade brasileira é essencialmente democrático. Ao se manifestar contra o fascismo, as torcidas organizadas traduzem o sentimento popular das arquibancadas.

Por Osvaldo Bertolino*

Pelé e garrincha

Uma das mais significativas manifestações de repúdio às propostas da chapa Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão a presidente e vice-presidente da República é a das torcidas organizadas de futebol. Como disse Gabriel Cohn, sociólogo e professor da USP, não é possível entender o Brasil sem ter os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas. Por elas passam a mais expressiva diversidade do povo brasileiro, uma tendência que ganhou impulso com a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, que abriu as portas da modernidade para o Brasil das grandes massas.

A Revolução de 1930 começaria a mudar a face elitista do futebol. É significativa a constatação de que dois jogadores que seriam os maiores ídolos da “era Vargas”, Leônidas da Silva e Domingos da Guia, têm a marca do negro brasileiro. E que, mais tarde, dois negros, Pelé e Garrincha, lideraram o ciclo de ouro do futebol brasileiro. A “era Vargas” abriu as portas para uma nova manifestação cultual brasileira. O reflexo disso no futebol pode ser visto nas páginas esportivas dos jornais, nos textos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e José Lins do Rego.

No prefácio do livro Copa Rio Branco: 32, de Mario Filho, José Lins do Rego escreveu: “Os rapazes que nos representaram, triunfalmente, em Montevidéu, eram no fundo um retrato da nossa democracia social, onde Paulinho, filho de uma família importante, se uniu ao negro Leônidas da Silva, ao mulato Gradim, ao branco Martim. Tudo feito à boa moda brasileira. Lendo este livro sobre futebol, eu acredito no Brasil, nas qualidades eugênicas dos nossos mestiços, na energia e na inteligência dos homens que a terra brasileira forjou, com sangues diversos, dando-lhes uma originalidade que será um dia o espanto do mundo.”

O nosso estilo nacional e suas representações sobre o povo, que o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues chamou de “homem brasileiro”, no campo do futebol ainda são pouco estudados pelo chamado pensamento social. Eles revelariam muito do que somos como nação — à boa moda brasileira, no dizer de José Lins do Rego. Não foi por mera coincidência que nessa época surgiu, para deslumbre mundial, a habilidade dos jogadores negros e mestiços, nos marcos da afirmação efetiva da nacionalidade brasileira. Getúlio Vargas tinha a percepção de que o futebol poderia ter papel importante na unidade e na consolidação de uma identidade do país. 

Desconfiança dos intelectuais

A conquista da Copa de 1958 representou sua consolidação como identidade nacional. As pessoas podiam até não saber quem tinham sido José Bonifácio, Frei Caneca e Tiradentes, mas sabiam quem eram Didi, Pelé, Garrincha e Vavá. O bicampeonato mundial de 1962 ampliou essa representação, mas o futebol nunca superou os traços de preconceito intelectual. Em uma crônica de 1965, Nelson Rodrigues escreveu: “Há três dias aconteceu no Maracanã a batalha entre o Brasil e a Bélgica. Todos os brasileiros mortos e vivos estavam lá. Defuntos de algodão nas narinas atravessavam as borboletas. Tinham pulado os muros do além para torcer. Só um brasileiro faltou: o sociólogo. Entre cento e tantos mil patrícios, não vi uma única e escassa flor da sociologia.” 

O dilema sobre o papel cultural do futebol no Brasil é antigo. Nelson Rodrigues interpretou um tempo diferente. Graciliano Ramos, em texto de abril de 1921 publicado no jornal O Índio, da cidade alagoana de Palmeira dos Índios, disse que o futebol não pegaria como esporte de massa no Brasil porque havia uma diferença gigantesca entre os sertanejos e os habitantes das cidades.

“As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; nós somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda e galego. Nas cidades, os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam limba. Nas cidades assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem, ao sinal da claque; entre nós, há criaturas que nunca viram um gringo. Nas cidades há o maxixe, o tango, o fox-trote, o one-step e outras danças de nomes atrapalhados; nós ainda dançamos o samba. Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega”, disse ele.

Eça de Queiroz também via um certo tipo de brasileiro das cidades com pouco identidade nacional. “No Brasil, as cidades eram cabeças de ponte do mundo moderno. Grupos urbanos procuravam aproximar-se o máximo possível dos exemplos europeus de organização econômica, estrutura social, atitudes e modo de viver. Os brasileiros se habituaram a consumir comida estrangeira, a usar remédios patenteados para curar suas moléstias, a perfumar-se com novas essências, a encher suas casas com móveis estranhos e novidades em artigos sanitários, a iluminar as casas sem o uso do óleo, a ir e a retornar da cidade mais rapidamente, a vestir-se à moda estrangeira e a adotar novos tipos de divertimentos, tudo porque os europeus davam o exemplo”, escreveu.

Ele atribuía o fenômeno à ostensiva presença dos ingleses no mundo. “Estão em toda parte, esses ingleses! Porque, por mais desconhecida e inédita que seja a aldeoa onde se penetra, por mais perdido que se ache num obscuro canto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe, encontra-se sempre um inglês, um vestígio de ingleses!”, escreveu. Para ele, os confins do mundo estavam recebendo o seu Times ou o seu Standart e formando a sua opinião não pelo que viam ou ouviam ao redor de si, mas pelo artigo escrito em Londres. “A alma voltada sempre para trás, para o home; abominando tudo o que não é inglês, e pensando que as outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os hábitos, as maneiras que os fazem a eles felizes na sua ilha do Norte”, disse.

Hibridação do samba

Em 1921, Lima Barreto escreveu: “Quando não havia futebol, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte. Mas apareceu o futebol dirigido por um ‘ministreco’ enfatuado e sequioso de celebridade, logo tal esporte bretão, de vários modos, cavou uma separação idiota entre os brasileiros. É a missão dele. De modo que ela, a tal separação, não existe no Senado, na Câmara, nos cargos públicos, no Exército, na magistratura, no ministério; mas existe no transcendente futebol. Benemérito futebol. E ainda dizer-se que o governo dá gordas subvenções aos perversos de semelhante brutalidade, para eles insultarem e humilharem quase a metade da população do Brasil — é o cúmulo! E note-se que o dinheiro que o governo lhes dá, provém de impostos que todos pagam, brancos, pretos e mulatos. Dinheiro não tem cheiro, afirmava Vespasiano.”

Lima Barreto via o esporte como coisa essencialmente estrangeira. “O futebol é coisa inglesa, ou nos chegou por intermédio dos arrogantes e rubicundos caixeiros dos bancos ingleses, ali, da Rua da Candelária e arredores, nos quais todos nós teimamos em ver lordes e pares do Reino Unido”, escreveu ele na obra Feiras e Mafuás. A sentença de Lima Barreto não era errada. Na fase em que o futebol se implantou por aqui – entre 1894 e 1920 –, o povo não tinha vez. Para entrar em campo, negros tomavam banho de pó-de-arroz – como foi o famoso caso de Carlos Alberto, que atraiu para o Fluminense o apelido que conserva até hoje.

Em 1922, o mesmo Lima Barreto, já balançado pela popularização do futebol, relatou: “O futebol flagela também aquelas paragens como faz o Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão. Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes. A única novidade que notei, e essa mesmo não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música de escola dos cordões carnavalescos. Vi isso só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxão, se haja generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.”

Até o sisudo historiador Capistrano de Abreu se rendeu à crescente mobilização popular em torno do futebol. Em carta dirigida à senhora Assis Brasil, ele no Rio de Janeiro e ela no Rio Grande do Sul, escrita às vésperas do jogo contra os uruguaios pelo Campeonato Sul-Americano no Rio de Janeiro em 1919, ele disse: “O grande acontecimento desse aldeão é o foot-ball. O Brasil só tem pela frente o Uruguai. Vencerá? (…) Nunca assisti a uma partida, não posso fazer ideia de como é, e os termos técnicos soam-me aos ouvidos como a mais arrevesada das gírias; mas enquanto for independente de socorros federais ou municipais, contará com minhas simpatias incondicionais o jogo de foot-ball.”

O inglês Brasileiro

Na etapa seguinte, o futebol acompanhou a abertura para os que vinham de baixo proporcionada pela Revolução de 1930. Apareceram Fausto – a “maravilha negra” – e Leônidas da Silva –, o “diamante negro”. O futebol brasileiro iniciou a sua trajetória para o sucesso quando, no começo do século XX, começou a deixar os clubes grã-finos e a espalhar-se por várzeas e agremiações populares. Depois da Revolução de 1930, emergiu com toda a sua arte. Como o futebol, que se profissionalizou em 1933, a literatura e a música popular ganharam impulso e também viveram a sua “fase de ouro”.

Leônidas da Silva foi o Getúlio Vargas do futebol. Na Copa de 1938, ele brilhou e transformou-se no primeiro “garoto propaganda” do futebol brasileiro – anunciando uma marca de cigarro e o chocolate “Diamante Negro”, criado em alusão ao seu apelido. Na década de 1930, cerca de 50 mil pessoas, em média, assistiram aos fla-flus (Flamengo e Fluminense). O futebol transformou-se em esporte de massa.

O futebol-arte, que já em 1925 deslumbrou a Europa com a excursão do clube Paulistano, no qual jogava o craque Arthur Friedenreich – o time disputou dez jogos e voltou invicto –, começou a aparecer como característica brasileira e tocou o auge com a conquista da Copa de 1958. “Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro, o único inglês é o brasileiro”, afirmou Nelson Rodrigues, fazendo um contraponto às palavras de Lima Barreto em Feiras e Mafuás.

Futebol e o drama de Aristóteles

Antes, na Copa de 1950, o Brasil passou por um trauma definido por Nelson Rodrigues como uma “catástrofe nacional”. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”, escreveu. A dimensão desta “catástrofe” pode ser medida pela decisão do goleiro Barbosa, que nunca mais quis voltar ao gramado do Maracanã. “Muita gente entrou para a história. Eu jamais sairei da história do futebol brasileiro por causa daquele jogo, em 16 de julho de 1950”, afirmou. “No Brasil, a pena maior é de 30 anos; eu fui condenado à prisão perpétua”, lamentou. O escritor Carlos Heitor Cony escreveu: “Deixei de acreditar em Deus no dia em que vi o Brasil perder a Copa do Mundo (de 1950) no Maracanã”.

João Saldanha, em sua crônica intitulada “Pelo Cano”, publicada dia 23 de março de 1982 no Jornal do Brasil, escreveu: “Nosso único produto interno bruto que dá é o futebol. Falam no carnaval. Nada disto. Faça um desfile de escolas por semana e no fim de um mês a sociedade brasileira pedirá por amor de Deus para pararem.” Mas ninguém sintetizou melhor o futebol brasileiro do que o escritor Nelson Rodrigues em sua clássica crônica sobre a famosa partida entre Santos e Milan pelo mundial interclubes de 1963. “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime, na vitória do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico”, escreveu.

À alusão a teoria clássica do drama, estabelecida por Aristóteles, Nelson Rodrigues agregou que a vitória do Santos valeu pela vitória do homem brasileiro. O cronista aplicou a mesma lógica quando interpretou o significado do “escrete nacional” defendendo as cores brasileiras nas competições internacionais. Para ele, nessas ocasiões a pátria se apresenta em calções e chuteiras. Na sua ideia, o que está implicado é o sentido moderno da palavra nação. Ou seja: uma comunidade política que, para existir, precisa ser corporificada por signos que representem os laços de pertencimento e solidariedade.

Complexo de vira-latas

Nelson Rodrigues entendia que o “escrete” fazia a nação se realizar plenamente. Em uma crônica de 1970, por exemplo, ele afirmou que os jogos da Seleção são as únicas ocasiões “em que todos se lembram do Brasil, em que 90 milhões de brasileiros descobrem o Brasil”. E provocou: fora as esquerdas, que acham o futebol o ópio do povo, todos os outros brasileiros se juntam em torno da Seleção. O “escrete”, nas competições internacionais, era o “mito” da nação brasileira, revelando por intermédio dele as qualidades do agente representado, o homem brasileiro.

Essa formulação começou a se desenvolver com a conquista da Copa do Mundo de 1958, quando, segundo Nelson Rodrigues, a Seleção Brasileira venceu o complexo de vira-latas. Ele não menciona, mas é preciso considerar alguns aspectos já então incorporados ao futebol brasileiro — como a criação de um estilo próprio de jogar. A influência de elementos da cultura negra, como o samba e a capoeira, era uma marca da identidade do mencionado “homem brasileiro”. Numa de suas crônicas, Nelson Rodrigues elegeu o negro Didi como símbolo da vitória brasileira.

Ele explicou bem o significado daquela conquista. “Já ninguém mais tem vergonha da sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas”, escreveu.

Futebol lúdico e dionisíaco

Com a conquista de 1958, não era só a imagem de Didi que se transformava. Era, sobretudo, a imagem que o brasileiro fazia de si próprio. “A partir desse mundial, o brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: passa a ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias qualidades morais. De nada adianta o futebol se o homem não presta. O belo, o comovente, o sensacional do triunfo de ontem está no seguinte: foi, antes de tudo, o triunfo do homem”, escreveu. Pelé e Didi, que além de virtuoses da bola, mostraram ser também bravos, sérios e responsáveis como os europeus.

Essa mesma definição ganhou formas mais sofisticadas quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962. As magistrais atuações de Garrincha fizeram Nelson Rodrigues dizer que ele jogou um futebol lúdico e dionisíaco. Em uma crônica antológica, na qual comenta o jogo final contra a Tchecoslováquia, ele se concentra nos minutos finais, quando Garrincha, depois de um espetáculo em campo, parou diante de alguns adversários.

“É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está todo o Brasil. (…) O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios”, escreveu.

Pombos de Mané Garrincha

As crônicas de Nelson Rodrigues não são teses produzidas com a objetividade do trabalho acadêmico. São parte do mundo do futebol, escritas no calor dos fatos comentados. Os leitores eram as mesmas pessoas que iam aos estádios, que acompanhavam os jogos, que conversavam sobre futebol. Ele foi um cronista de uma época em que o Maracanã recebia freqüentemente mais de 100 mil torcedores, marca hoje raríssima. Chegou a afirmar que a idéia de multidão nasceu no Brasil com a construção do Estádio Mário Filho (nome oficial do Maracanã, homenagem ao seu irmão, o também jornalista Mário Rodrigues Filho). Segundo ele, nem o enterro do Barão de Rio Branco reuniu mais gente do que o Mário Filho para um Fla-Flu.

A respeito de Pelé, Nelson Rodrigues vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando o garoto começava a brilhar no Santos. Em março de 1958, três meses antes da Copa, publicou a crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a conquista do título porque agora, com o rei que dribla os adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os “inimigos tremerão”. Para ele, Pelé era o “sublime crioulo”.

Garrincha também inspirou o cronista. O pacato ponta-direita do Botafogo, a quem os “pombos da Cinelândia e os pardais do Boulevard 28 de Setembro chamam de ‘nosso irmão, o Mané’”, seria um predestinado a manter o futebol brasileiro em evidência e a chacoalhar o país, acordando-o para sua grandeza. O Brasil seria outro se nós, brasileiros, fôssemos como o “anjo das pernas tortas” dentro do campo. Garrincha carregou a Seleção para o bicampeonato no Chile, em 1962, e o cronista escreveu: “Deslumbrante país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados Unidos, se fôssemos 75 milhões de Garrinchas”.

Futebol e ditadura

Na Copa de 1970, o ciclo iniciado em 1958 chegava ao fim. Ao som daquela musiquinha que, segundo João Saldanha, dizia que o negócio era para frente mas andava para trás, a Seleção Brasileira conquistou o tri no México. O título foi transformado em propaganda do regime militar. Antes do embarque, o comunista João Saldanha foi afastado do comando da Seleção. Em seu lugar assumiu Zagallo, o ponta-esquerda do time campeão na Copa de 1958, que teria aceitado a convocação de Dario, o Dadá Maravilha, por imposição do presidente Médici.

Em 1974, a Seleção Brasileira mostrou os sinais visíveis de que aquele ciclo se encerrara. Na Copa de 1978, na Argentina, o poder autoritário que ainda mandava no país deu o tom. Os dirigentes da CBD eram todos militares ligados ao regime. O presidente era o almirante Heleno Nunes, que dispensou o competente e humilde Osvaldo Brandão para entronizar o capitão Cláudio Coutinho como técnico. Osvaldo Brandão falava a linguagem dos jogadores, que era a do povo; o capitão falava a língua do regime.

Voltou a se manifestar também o velho problema do racismo – que a rigor nunca desaparecera. Quando Seleção de Coutinho desembarcou na Argentina, um repórter lhe perguntou: “¿Pero, dónde están los negritos? Cuando Brasil venia com unos negros bicudos jugava bien; ahora vienen unos rubios de pelo largo y no juegan nada”. Mas eram também tempos de contestação à ditadura militar inclusive no futebol.

Em outubro de 1977, o presidente do Fluminense, Francisco Horta, disse que a causa da decadência do futebol era a sua militarização. Às vésperas da Copa de 1978, o centroavante do Atlético Mineiro, Reinaldo, defendeu a anistia, as eleições diretas e uma melhor “divisão do bolo”. Dois dias depois, o almirante Heleno Nunes, presidente da CBD, disse que Reinaldo não iria à Argentina. Foi, mas sob severa vigilância. Desde então, o futebol perdeu um pouco do seu sentido lúdico, com a entrada do mundo totalitário do capital em campo, mas nunca deixou de ser um esporte essencialmente popular.