Vaticano abrirá arquivo secreto sobre Pio 12, o “papa de Hitler”

Documentação pode ajudar a tirar das sombras o período mais controverso da História recente da Igreja Católica – o pontificado do italiano Eugenio Pacelli, que se omitiu durante o Holocausto

Com a corajosa autorização do papa Francisco, o Vaticano abrirá na segunda-feira (2) o arquivo secreto daquele que é considerado o período mais controverso da História recente da Igreja Católica – o pontificado do italiano Eugenio Pacelli, o Papa Pio 12. Alvo de polêmicas dentro e fora da Igreja, o arquivo é cobrado por estudiosos há mais de cinco décadas. Por compreender os anos de 1939 a 1958, os documentos coincidem com a 2ª Guerra Mundial – uma sombra no legado de Pio 12.

A liberação do arquivo foi anunciada pelo papa Francisco em março passado, quando a eleição de Pacelli completou 80 anos. À época, o argentino disse que a Igreja “não deveria ter medo da História”. Não há regras na Santa Sé para a desclassificação de documentos históricos, sempre decidida pelo Santo Padre.

Estarão disponíveis aos pesquisadores cerca de 20 mil fascículos, entre eles telegramas da Secretaria de Estado (que cuida da diplomacia vaticana) e de outros órgãos internos, representando o maior volume já liberado pela Igreja. Cada um desses fascículos pode conter centenas de documentos, explicou o cardeal português José Tolentino de Mendonça, responsável pelo Arquivo Apostólico do Vaticano – que, até outubro passado, era conhecido como Arquivo Secreto, nome alterado por decisão do Papa.

Para Alberto Melloni, especialista em História do cristianismo, a abertura do arquivo deve derrubar duas caricaturas que se consolidaram ao longo do tempo: a que considera, de um lado, Pio 12 como o “Papa de Hitler” por sua omissão durante o Holocausto; e, de outro, a que sustenta sua ajuda para salvar centenas de judeus, narrativa iniciada no pós-guerra.

Eleito em 1939, meses antes de estourar o conflito na Europa, Pio 12 foi o segundo papa mais longevo do século 20, atrás apenas do polonês João Paulo 2º (1978-2005). Seu papado foi acusado de se omitir durante a guerra – e também de ajudar na consolidação do poder de Adolf Hitler, que era católico).

Nascido em Roma, Pacelli foi uma das figuras mais influentes no Vaticano na primeira metade do século 20. Núncio apostólico (equivalente a embaixador) na Alemanha nos anos 1920 – quando Hitler despontou nacionalmente –, ele assumiu em 1930 a Secretaria de Estado da Igreja. Em 1933, assinou um pacto com o regime nazista para proteger os direitos de associações católicas alemãs. O acordo foi fechado quando Hitler já escancarava a perseguição aos judeus e a esterilização compulsória de pessoas com deficiência.

Na opinião de historiadores como o inglês John Cornwell, autor do best-seller O Papa de Hitler, o pacto entre católicos e nazistas foi fundamental para consolidar o totalitarismo na Alemanha. Mas a biografia de Pio 12 traz outro capítulo deplorável: um dos aspectos inquietantes de seu pontificado, anos mais tarde, foi justamente seu silêncio diante do Holocausto.

“Não há dúvida de que o Papa escolheu o silêncio sobre o extermínio dos judeus”, afirma Melloni. “É fato que, durante a guerra, ele nunca pronunciou em público a palavra ‘judeu’. E que ele não deu curso à mudança que estava sendo gestada pelo antecessor de publicar uma encíclica contra o racismo. Mas nem por isso ele pode ser transformado em coautor do plano genocida.”

Pio 11

Ainda segundo estudiosos da Igreja no século 20, não foi só Pio 12 que flertou com um regime totalitário. Seu antecessor, Pio 11, também referendou o poder fascista de Benito Mussolini na Itália – eles chegaram ao poder no mesmo ano de 1922. Essa relação igualmente ambígua é descrita no livro Mussolini e o Papa, do pesquisador David Kertzer.

Professor de Antropologia e de Estudos Italianos da Universidade de Brown, nos Estados Unidos, Kertzer escreveu sua obra com base nos arquivos de Pio 11 abertos desde 2005. O livro descreve como Pacelli bloqueou a publicação de uma encíclica contra o racismo e a perseguição do nazifascismo preparada pelo antecessor pouco antes de morrer.

Kertzer é um dos cadastrados no Vaticano para pesquisar os arquivos de Pio 12 já no dia 2 de março, prevendo inicialmente uma imersão de quatro meses na documentação relativa ao início da 2ª Guerra. Pesquisadores do Museu do Holocausto de Washington também estarão presentes.

O arquivo tem capacidade para receber até 60 pessoas por dia – a média é de 1.200 pesquisadores por ano, número que deve aumentar com a abertura dos novos papéis. Estudiosos e arquivistas da Santa Sé ressaltam que será necessário tempo até que se encontre alguma novidade.

O professor Kertzer diz que o interesse no pontificado de Pio 12 não se resume ao conflito armado (1939-45), citando o período inicial da Guerra Fria, quando o pontífice era um dos principais críticos do comunismo. Pacelli temia que, com a queda do fascismo na Itália, o país fosse dominado por aliados da União Soviética. O então papa também era contrário à criação do Estado de Israel.

Canonização distante

Há historiadores e sobretudo religiosos que consideram haver um exagero no julgamento de Pio 12, palavra já mencionada por Francisco ao falar sobre o antecessor. O monsenhor Sergio Pagano, prefeito do Arquivo Apostólico, comentou com jornalistas que surgirão “muitos documentos” sobre o auxílio do papa aos judeus. No passado, o Vaticano informou que Pio 12 atuou silenciosamente nos bastidores para não piorar a situação. Muitos conventos católicos teriam abrigado judeus que escapavam da perseguição nazifascista.

O rabino Riccardo Shemuel Di Segni, da Comunidade Hebraica de Roma, ressalta que não se conhece, até agora, prova ou documento de que Pio 12 agiu diretamente para salvar os judeus. Ele menciona um episódio em particular. Em 16 de outubro de 1943, quando Roma estava sob ocupação nazista, houve uma grande operação na cidade contra os judeus: 1.024 pessoas foram presas e levadas para campos de concentração. Apenas 16 sobreviveram.

Antes da deportação, esses judeus ficaram detidos num colégio militar que ficava a 700 metros do Vaticano. “Pacelli não disse absolutamente nada a respeito, e isso acontecia ao lado da casa dele. Ele sabia o que estava acontecendo, mas preferiu não fazer nada para mudar o destino dos capturados, afirma Di Segni.

Referenciado por católicos conservadores e candidato a santo, Pio 12 deve continuar no centro de uma luta pela memória, prevê Alberto Melloni. O processo para sua canonização tramita lentamente desde a década de 1960. Conforme Melloni, Pacelli se “parece terrivelmente” com tantos outros católicos que ignoraram o Holocausto porque “acreditavam não ter nada a ver com aquilo”. Considerado excessivamente diplomático, o papa preferiu deixar a Igreja longe do conflito.

Melloni lembra que os arquivos muitas vezes não guardam “confissões” – mas eles certamente ajudarão no lento processo da “verdade histórica, que é muito diferente da verdade de um tribunal”. Na visão do especialista, “interessa entender por que o papa se comporta como tantos – e tantos se comportam como ele. Pio 12 se revelou um diplomata que falhou em entender as tendências das décadas de 1920, 1930 e do pós-guerra”.

Com informações do O Globo

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