A crise de 1929 e um olhar para o presente, por Luiz G. Belluzzo

Na situação atual, quem tem juízo sabe da importância de se impedir que a derrocada das bolsas possa culminar em uma crise de crédito e de pagamentos

“Durante o ano que se passou, obviamente, tivemos momentos de crise. Muito do que tem ali é muito mais fantasia. A questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaganda.”

Assim falou Bolsonaro.

A propósito de fantasias, convido os leitores de CartaCapital para um passeio nas alamedas do passado, nos idos de 1929. Na quinta-feira, 24 de outubro daquele ano, as ordens de venda sucediam-se, os preços despencavam. Todos queriam se desfazer rapidamente de suas posições, para evitar perdas maiores. Em meio ao pânico, os banqueiros mais importantes, reunidos às pressas, discutem uma “operação de salvamento”. O seu porta-voz, Thomas Lamont, da Casa Morgan, anuncia à imprensa:

“Houve uma pequena aflição nas vendas da bolsa, devido a um requisito técnico do mercado. Mas os banqueiros resolveram melhorar as coisas.”

As palavras apaziguadoras foram seguidas de fantasias. Compras simuladas, por alguns corretores influentes, permitiram uma reanimação temporária do mercado. Contudo, nos dias seguintes as ordens de venda continuaram a inundar o apinhado recinto da bolsa.

Na terça-feira 29 já corria, incontrolável, o rumor de que a “operação de salvamento”, arquitetada pelos banqueiros, não passou de uma manobra para que pudessem se desfazer de suas próprias ações. Deste momento em diante o colapso foi inevitável.

No dia 29 de outubro, a Bolsa de Valores de Nova York entra em colapso. O índice Dow Jones, que havia crescido 300% entre meados de 1927 e setembro de 1929, alcançando um máximo em outubro deste ano, mergulhou abruptamente. A fantasia de se tornar magnata sem fazer força estatelou­ se nas calçadas de Wall Street, juntamente com os corpos dos suicidas arruinados pelo crash.

Os bancos participaram ativamente das fantasias enlouquecidas, apoiando a criação de consórcios de investimento e emprestando a curto prazo para possibilitar operações de lançamento e valorização. Estes consórcios – constituídos por carteiras de ações de várias empresas – emitiam suas próprias ações, multiplicando, assim, a oferta de papeis que representavam outros papéis.

Este vasto castelo de cartas cresceu impulsionado pelo afluxo contínuo do crédito, atraído pela fantástica valorização que, a cada momento, confirmava as expectativas de ganho. A realização ininterrupta dos ganhos previstos engordava o circuito especulativo, aproximando-o perigosamente do ponto em que um simples boato ou uma coincidência (o coronavírus?) poderiam facilmente deflagrar o desastre.

Um ano após o colapso da bolsa, os efeitos sobre o sistema produtivo e o estado geral de liquidez eram, ainda, moderados. O presidente Hoover, no Natal de 1930, falando à nação, afirmou textualmente: “O pior já passou”. Mal sabia ele que o pior ainda estava à espreita.

Entre 1929 e 1932, a renda nacional despencou 38%, regredindo para o nível de 1922. O desemprego avançou celeremente e jogou na rua 12 (possivelmente 15) milhões de pessoas. O sistema bancário veio abaixo com grande estrondo, cujos decibéis podem ser avaliados pela falência de 5.000 instituições.

Em 1933, Franklin Roosevelt, recém-empossado, decretou feriado bancário. Utilizou a Reconstruction Finance Corporation, criada por Hoover, para promover a reestruturação das dívidas e limpar as carteiras dos bancos. O Glass-Steagall Act havia determinado a separação entre os bancos comerciais e de investimento. Em seguida, o governo aprovou a garantia de depósitos bancários, a proibição do pagamento de juros sobre depósitos à vista e o estabelecimento de tetos ao pagamento de juros para depósitos a prazo. A American Bankers Association reagiu: as medidas eram “heterodoxas, não científicas, injustas, e perigosas”. Não obstante sua natureza “maligna”, as medidas brecaram a corrida bancária e, lentamente, favoreceram a recuperação do crédito.

O economista keynesiano Hyman Minsky compartilhava a admiração de Schumpeter, Marx e Keynes pela arquitetura do sistema de crédito erigida pelo capitalismo desde o último quartel do século XIX. Mas, para Minsky, as forças criativas do crédito abrigam em suas entranhas os riscos da destruição da riqueza. “No mundo de homens de negócios e de intermediários financeiros que buscam agressivamente o lucro, a inovação sempre vai suplantar a vigilância dos reguladores; as autoridades não podem prevenir mudanças na estrutura dos portfólios.”

Nos anos 2000, as tais estruturas revelam que a dívida entre as instituições financeiras cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. O ímpeto da concorrência e a liquidez abundante levaram o sistema bancário convencional e os bancos sombra à construção de “pirâmides de dívidas”, insuflando a má avaliação dos créditos. Os grandes conglomerados financeiros buscaram escapar das regras prudenciais, promovendo o processo de alavancagem para impulsionar a inflação de ativos. Tais estripulias encontraram seu destino na crise de 2007/2008. Esse episódio de euforia global e alavancagem excessiva também terminaria em um crash espetacular não fossem as intervenções de última instância dos bancos centrais.

Na situação atual, quem tem juízo sabe da importância de se impedir que a derrocada das bolsas possa culminar em uma crise de crédito e de pagamentos. A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário constitui a infra-estrutura que permite o clearing e a liquidação de operações. Dificuldades nessas instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, se transformam inevitavelmente em transtorno para o conjunto da economia.

A ausência de socorro tempestivo oferecido por um emprestador de última instância leva inexoravelmente à contração do crédito, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária. As autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o processo de contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. É necessário que os bancos centrais estejam dispostos, nessas circunstâncias, a prover abundante liquidez para os mercados em crise.

Na quarta-feira, 11 de março, o vírus da contração da liquidez chegou ao mercado de títulos do Tesouro americano, referência essencial para os ativos privados. É o ativo de última instância, supostamente sem risco e prenhe de liquidez. O Bank of America alertou: “Se o mercado de títulos do Tesouro americano experimenta iliquidez em larga escala, será difícil para outros mercados precificarem e isso pode levar a liquidações de posições em larga escala em outras praças.”

A coisa é braba.

( Esse artigo reproduz trechos do texto escrito em parceria com o professor Luciano Coutinho Estado, Sistema Financeiro e Formas de Manifestação da Crise – Unicamp 1983)

Fonte: CartaCapital

Autor