Golpe de 64: a memória que ainda falta construir
É preciso, como sociedade, fortalecer as instituições que lutam pela construção da memória da violência da ditadura e da democracia, com foco especial nas vozes das vítimas e dos estudiosos que se debruçam sobre o tema.
Publicado 01/04/2020 15:13 | Editado 01/04/2020 20:28

Nesta segunda (30), o Ministério da Defesa não se conteve em soltar uma nota sobre o dia 31 de março, aniversário do golpe de 1964. Na nota, o general da reserva que a assina, Fernando de Azevedo, explicita o caráter democrático do “movimento de 64”, principalmente pelo que ele, em teoria, teria evitado. O presidente Bolsonaro chamou a data de “dia da liberdade”, enquanto seu vice, General Mourão, disse em seu Twitter que o golpe trouxe as reformas que desenvolveram o Brasil.
Não há necessidade de entrar em detalhes sobre como a ditadura militar brasileira foi, sim, um período de violência, censura, cerceamento democrático e atraso para o desenvolvimento do país. Não faltam boas referências, ainda mais desde o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, quando nosso atual presidente fez questão de colocar o tema na boca do povo novamente, ao elogiar um torturador.
Nos jornais e nos livros, as provas são extensas. Você talvez até vá encontrar hoje e amanhã menções sobre os 40 mil casos de meningite em São Paulo durante o governo Médici, abafado pelo Estado, em paralelo à situação que vivemos hoje.
A questão é que em uma disputa de narrativa tal como temos hoje, as evidências, por mais numerosas, são insuficientes. O negacionismo do caráter criminoso da ditadura militar ganha força e se torna uma opinião válida contra fatos históricos e ganha força nas decisões governamentais de, por exemplo, interferir na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Contra esses ataques, apenas com uma memória coletiva forte é possível o resgate da verdade, mas nós não podemos contar com isso no Brasil. Apesar das incansáveis lutar de diversas organizações, o discurso hegemônico é, se não negacionista, brando. Além disso, e talvez mais importante, é como falar sobre uma ditadura que assassinou (oficialmente) 434 pessoas, de acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), quando em 2019 a morte nas mãos de policiais bateu 1.546 assassinatos apenas no estado do Rio de Janeiro.

A questão é que há relações muito estreitas entre a violência estatal hoje e aquela instaurada pela ditadura militar. Polícia militar, milícias, prisões ilegais, tortura, perseguição a populações indígenas e fraudes de atestado de óbitos são algumas das práticas aperfeiçoadas pela ditadura e que sobrevivem até 2020. Isso quer dizer que falar sobre ditadura militar é falar sobre violência policial, genocídio da população negra, encarceramento em massa e diversas problemáticas da segurança pública.
A disputa da memória da ditadura militar é necessária para a construção da memória da violência hoje e para a luta pelas mudanças que precisamos que ocorram. Não uma luta apenas pela História nacional, e aí reside sua importância.
É preciso, como sociedade, fortalecer as instituições que lutam pela construção da memória da violência da ditadura e da democracia, com foco especial nas vozes das vítimas e dos estudiosos que se debruçam sobre o tema.
É revigorante ver a sociedade se movimentando nesse sentido. Há, por exemplo, o Movimentos Mães de Maio e, mais recentemente, o Instituto Marielle Franco, que representam parte dessa luta. Só assim podemos ter uma compreensão ampla da nossa realidade e saber como buscar as mudanças que sabemos ser necessárias.
Fonte: Opera Mundi