Bolsonaro corta verba e desestrutura pesquisa médica em plena pandemia

Pesquisadores da área médica enfrentam pandemia do coronavírus com verba reduzida para Ciências. Fomento de pesquisa em Ciências Biológicas e Saúde perdeu 4.183 bolsas de pós-graduação desde 2018. Isso equivale a uma queda de 12%.

Alunos de pós-graduação trabalham no sequenciamento do genoma da Covid-19, no Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis (RJ) Foto: Divulgação/LNCC

A presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé, comentou, nesta quinta-feira (2), ao Portal Vermelho o corte do fomento à pesquisa biomédica em plena crise epidêmica de Covid-19. Ela enfatiza a importância do governo construir uma estrutura de pesquisa científica para que, ao chegar em momentos críticos, os avanços contribuam para o enfrentamento da epidemia.

“Temos enfrentado esse cenário de desmonte da ciência e diminuição de verbas para a graduação, especialmente no ano passado, quando iniciamos o ano com um déficit na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que financia a pós-graduação no Brasil, de um bilhão de reais a menos no financiamento, e uma quebra de oito mil bolsas”, constatou.

O fomento de pesquisa em Ciências Biológicas e Saúde perdeu 4.183 bolsas da Capes de pós-graduação desde 2018. Isso equivale a uma queda de 12% em dois anos – passou de 36,6 mil para 32,5 mil. Já o financiamento do CNPQ é o menor desde 2006.

Neste cenário de pandemia, o país conta com bolsistas trabalhando como voluntários no diagnóstico da doença, à medida em que laboratórios particulares e públicos estão sobrecarregados. Esses cientistas, porém, recebem cada vez menos dinheiro.

Uma portaria da Capes de 9 de março (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) permitiu a redução nas bolsas em todas as áreas, inclusive saúde. Há 94 programas de biologia molecular e genética que podem ser atingidos. Mesmo os 18 cursos com nota máxima podem ter um corte de até 20%.

Desestruturação

Flávia cita o caso famoso do pesquisador Ikaro Alves de Andrade, que passou em primeiro lugar no doutorado das biomédicas da UNB para pesquisar coronavirus, e não vai receber bolsa. Integrado ao programa de doutorado em biologia microbiana, o pesquisador contava com os recursos da bolsa paga pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que é de R$ 2,2 mil mensais.

Ela também lembra o caso da professora Ester Sabino, cujo laboratório decodificou o coronavirus em tempo recorde. Ela escreveu artigo dizendo que só foi possível dar essa resposta rápida, porque havia uma base prévia para a investigação, ainda que tivesse muitas dificuldades.

“Para conseguir dar uma resposta na ciência, – como os resultados das pesquisas requerem tempo -, é preciso ter fomento permanente e crescente. Qualquer descontinuidade prejudica e retrocede na pesquisa científica. A diminuição do fomento na pós-graduação atinge a ciência no seu centro: a pós-graduação, que responde por 90% da produção científica. A batalha pelas bolsas é uma batalha pela ciência, mas é uma batalha pelo Brasil, também”, destacou Flávia.

Segundo a Capes, apenas 20% dos cursos tiveram redução de suas cotas, 37,7% mantiveram suas bolsas e outros 42,1% tiveram aumento. Em nota, a Capes informa que o número total de bolsas aumentou em 3.386 de 2019 para 2020. No entanto, a entidade é incapaz de responder detalhadamente quaisquer outras questões, como quais cursos específicos foram impactados, quando o fomento à pesquisa sobre coronavirus será de fato implementada, nem quais programas serão atendidos.

A Capes também não informou o valor exato pago aos pesquisadores em Medicina nos últimos anos, nem quantas serão as bolsas cortadas a partir de agora na área de Genética e Biologia Molecular.

A epidemia venceu o mercado

Em 2019, o investimento do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para pesquisa em Medicina foi de R$ 47 milhões. A verba da instituição para a área vinha crescendo até 2014, quando chegou ao recorde de R$ 209 milhões, e caiu progressivamente desde então. A entidade também não informa dados específicos, como o financiamento a programas de Biologia Molecular e genética.

Na força tarefa que mapeou genomas completos dos vírus de 19 pacientes internados em hospitais brasileiros, nesta semana, há estudantes trabalhando sem apoio do governo.

Acadêmicos acreditam que o anúncio da Capes de novas bolsas para a pesquisa do coronavírus terá pouca eficácia, porque a pesquisa teria que ter sido estruturada anos antes. Não adianta querer estruturar uma pesquisa de longo prazo com a epidemia em andamento. Os resultados não servirão à urgência.

A pesquisa se mantém principalmente devido à fundações de amparo estaduais, como Fapesp e Faperj, e financiamento privado, dizem os pesquisadores ouvidos pela reportagem. Na Faperj, por exemplo, a verba destinada a pesquisa em medicina aumentou em 2019.

Mas a representante dos pós-graduandos é esperançosa com o impacto dessa epidemia no financiamento científico. “Tem toda uma mudança, inclusive entre economistas ortodoxos, – essas pessoas da austeridade econômica -, recuando e fazendo uma defesa de mais investimentos nos serviços públicos. Essa mudança precisa beneficiar a ciência”, diz Flávia.

A pesquisadora considera uma grande vitória o Congresso ter aprovado a renda mínima e o presidente ter sancionado. “Toda as discussões para remanejar recursos para salvar vidas são uma grande vitória, porque coloca-se a vida acima do mercado. Assim, a ciência precisa estar no centro, junto com o sistema de saúde, desse debate sobre o remanejamento, porque é quem pode dar resposta diante de uma crise como esta”, conclui.