Como a chegada do coronavírus mudou a paisagem do centro de SP

Estava há doze dias sem sair de casa, quando decidi dar uma volta de bicicleta para tomar um sol e ver o impacto da pandemia pelo centro. Embora a quarentena tenha começado oficialmente em São Paulo em 24 de março, três dias antes do anúncio do governador João Dória eu e minhas duas colegas de casa já tínhamos decidido nos isolar, uma vez que podemos fazer home office.

Cena rara no Theatro Municipal com poucas pessoas em suas escadarias l Foto: Mariana Serafini

A princípio pareceu exagero de viciadas em Twitter porque os números alarmantes ainda estavam longe, na Itália, na China. Mas notamos que alguns chefes de Estado começaram a se preparar para receber o vírus antes que ele chegasse. E isso não estava acontecendo no Brasil.

A Alemanha, por exemplo, registra o menor índice de letalidade em todo o mundo, apenas 0,5%, contra 10% da Itália. O governo de Angela Merkel optou pela estratégia de ampliar de forma rápida as estruturas para UTIs e investir em testes para identificar o quanto antes os casos. Até o final de abril, a média será de 200 mil testes por dia.

A Organização Mundial da Saúde orienta que o isolamento social é a melhor forma de evitar o alastramento rápido da doença. Neste caso, decidimos que era o melhor a fazer mesmo sem decreto. Enquanto isso, especulávamos sobre quais seriam as medidas de segurança no Brasil, uma vez que Bolsonaro tenta minimizar a pandemia e insiste em chamar de “gripezinha”.

O fato é que passados esses doze dias, eu precisava respirar ar puro, por mais estranha que essa frase soe dita a partir do centro da maior cidade da América do Sul. Saí de bicicleta pela Avenida São João rumo ao Banespão. O Edifício do Banespa, antigo Banco do Estado de São Paulo, além de ser um cartão postal da capital paulista, é meu ponto de referência para qualquer biboca do centro em que eu esteja.

No caminho, pensei em como seria o impacto de tantos dias de isolamento social para os lugares pequenos onde eu gosto de frequentar. O centro é repleto de cafés pequenos que nadam contra a maré das grandes redes; lojinhas de produtores locais; mercados de orgânicos; livrarias que resistem para não ser engolidas pelas megastore; bares, restaurantes e padarias locais que estão longe do faturamento das franquias de fast-food.

Esses lugares vão sofrer um impacto econômico tão duro neste período que está por vir que economistas brasileiros ainda nem conseguem estimar. Outro dia vi a Laura Carvalho, economista professora da USP, dizer em uma live no Instagram oficial da Marie Claire que muitos países do mundo já encaram este momento como “economia de guerra”. Isso significa que todos os esforços devem ser empenhados para salvar a nação, proteger as pessoas mais vulneráveis, garantir que trabalhadores não sejam demitidos e fortalecer o investimento na Saúde e na Educação a fim de encontrar, o quanto antes, soluções para o foco do problema, que é combater o vírus.

A questão é que a Laura Carvalho, apesar de ser uma excelente economista — autora do livro Valsa Brasileira —, não foi ouvida pelo Bolsonaro, até porque ele não ouve muitas pessoas. Isso, por sinal, ao longo dos dias se tornou nosso maior problema, uma vez que a falta de comando —para não dizer de juízo — do presidente superou a devastação causada pelo em solo tupiniquim. 

Sem orientação do governo federal, os governadores se organizaram entre eles, por meio de um grupo no Whatsapp, para articular formas  de resolver a crise cada um em seu estado. Para a maioria da população, isso parecia o mais acertado a se fazer no momento, mas o presidente preferiu ver de outra forma. Saiu comprando briga com vários de seus aliados políticos que colocaram o combate à covid19 como prioridade, mesmo sem a bênção do capitão.

Foi nesse movimento que São Paulo começou a agir mais rápido para reduzir o impacto do vírus. Afinal, aqui é o epicentro e já chegou a concentrar 80% do total de casos registrados no país. Aliás, o isolamento social prematuro contribuiu para achatar a curva, foi o que mostrou o estudo do professor de física da USP, José Fernando Diniz Chubai.

Logo, a sensação que se tem — até ao conversar com amigos de outras partes do Brasil — é que aqui a paisagem mudou de forma mais rápida e drástica. Em menos de uma semana, as ruas do centro parecem ter virado cenário do Ensaio Sobre a Cegueira, filme do Fernando Meirelles adaptado do romance português de José Saramago.

Foi justamente ao lembrar do filme que planejei a rota do passeio, a ideia era ver como estava um dos lugares onde as cenas foram gravadas, de forma que, aproveitei o solzinho para pedalar até o Viaduto do Chá. Numa ponta está a Prefeitura, na outra, o Theatro Municipal e o Shopping Light, cujo prédio foi construído originalmente para abrigar a sede da companhia estadual de energia elétrica, a antiga Light. Conheço bem este caminho, é onde ficam as galerias com pequenas lojas de discos e livrarias onde eu costumo gastar meu salário nos sábados de manhã. E agora já não sei como serão atingidas pela crise econômica que vamos enfrentar, tampouco se vão sobreviver depois que tudo isso passar.

Como qualquer centro comercial do país, o movimento é sempre intenso, mesmo nos finais de semana. Mas agora parece mesmo um filme apocalíptico. O que sobrou foram só os personagens que nunca são os protagonistas nas narrativas de fim de mundo. O centro virou um grande gueto onde precisa estar atento para circular entre os viciados em crack, que são a maioria disparada de transeuntes, os entregadores de serviços por aplicativo — Rappi, Uber, iFood — normalmente muito jovens, e uns poucos idosos que insistem em furar a quarentena.

Segundo o IBGE, o Brasil já tem mais de 10 milhões de trabalhadores registrados em aplicativos de transporte e entregas. Isso sem contar os quase 12 milhões de desempregados. Estas pessoas são as primeiras a serem atingidas pela recessão econômica. Economistas especulam queda de mais de 4% do PIB, isso seria o pior resultado anual desde 1962. Na esteira da crise, rodam primeiro os pequenos negócios, que hoje são mais de 13 milhões registrados no país, onde trabalham 21,5 milhões de pessoas.

Já passava do meio da tarde e o céu tinha escurecido. Típico da capital. Foi o tempo de acelerar a pedalada até em casa para se proteger da chuva. Tirando os velhinhos, que se recolheram pelo mesmo motivo que eu, os moradores de rua e os entregadores de aplicativo continuaram lá fora, como sempre estiveram.  Só que agora também estão mais expostos que nunca a este novo inimigo que ainda não conhecemos e que mata centenas de pessoas diariamente em todo o mundo. Quando eu terminei de escrever esse texto, em 1 de abril, o Brasil registrava 244 mortos pelo coronavírus.

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