Teto de gastos deixa Brasil vulnerável em área social

Relatório mostra que, de 2014 a 2019, esforço fiscal da União resultou em cortes de 28,9% em despesas discricionárias de programas sociais, deixando país fragilizado para enfrentar pandemia.

Um estudo divulgado nesta quinta-feira (23) pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revela, pela primeira vez, como as medidas de austeridade fiscal e a aprovação da Emenda Constitucional 95 – que instituiu um teto de gastos e engessou os gastos públicos – reduziram as políticas sociais necessárias para proteger a população mais vulnerável da atual pandemia.

Intitulado O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamentário Geral da União 2019, o relatório mostra que, de 2014 até o ano passado, o constante esforço fiscal da União resultou em cortes de 28,9% nas despesas discricionárias dos programas sociais do país. Só no período entre 2018 e 2019, a queda nos gastos sociais chegou a 8,6%.

O orçamento de 2019 para o setor da saúde, que sofre uma histórica insuficiência de recursos no Sistema Único de Saúde (SUS), não aumentou em relação ao ano anterior, permanecendo um valor semelhante aos patamares de 2014. Por outro lado, a população brasileira aumentou em 7 milhões de habitantes nesse período, revelando uma grave redução das despesas per capita nessa área.

“O Brasil está visivelmente fragilizado para enfrentar os desafios trazidos pela pandemia”, afirma Livi Gerbase, assessora política do Inesc e especialista em justiça fiscal.

Além da saúde, a publicação do Inesc avaliou a execução do orçamento da União (OGU) em 2019 de outros sete conjuntos de políticas públicas: educação; direito à cidade; políticas socioambientais; políticas para criança e adolescente; igualdade racial; mulheres e povos indígenas.

Para a Livi Gerbase, embora a crise da Covid-19 tenha origem na saúde, seus efeitos se estendem por todas as políticas públicas. Isso porque o isolamento da população paralisou a atividade produtiva, o que vai gerar uma profunda recessão, aumento no desemprego e piora nas desigualdades sociais.

“Em um país onde os pobres, negros, mulheres e indígenas são sempre os mais penalizados, a pandemia da Covid-19 vai tornar tudo ainda mais difícil para essa grande parcela da população”, sentencia Livi.

Preço alto

O estudo do Inesc conclui que a contenção das despesas visando apenas um objetivo fiscal tem um preço muito alto, sobretudo para os grupos mais vulneráveis que arcam de maneira desproporcional com a conta. Em contrapartida, o governo federal comemorou a redução do déficit primário entre 2018 e 2019, que saiu de 1,8% do PIB para 1% ou R$ 95,1 bilhões. O número deve-se, em grande parte, aos altos contingenciamentos do governo no ano passado, que só foram revogados no final do ano, impedindo a execução dos gastos.

“Para além de uma análise fria dos números, buscamos saber se as políticas públicas e seus respectivos orçamentos estão a serviço do bem estar das pessoas, principalmente das que mais precisam, e não somente para proteger a dívida pública, muitas vezes enriquecendo setores econômicos já bastante privilegiados”, declara a assessora do Inesc.

Segundo ela, este é o primeiro relatório de uma série que será publicada anualmente pelo Inesc, com o intuito de acompanhar os gastos federais com as despesas para a promoção de direitos humanos.

A Metodologia Orçamento & Direitos, usada no documento, submete a análise orçamentária a um “teste de direitos humanos”, tendo como base cinco requisitos ou pilares: financiamento com justiça fiscal, mobilização máxima de recursos disponíveis, realização progressiva dos direitos, não discriminação e participação social.

Entre as medidas propostas pelo Inesc diante da recessão que está por vir estão a revogação do teto de gastos em caráter definitivo; a manutenção dos empregos e salários, com políticas de proteção aos informais; a recomposição dos orçamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e o fortalecimento de órgãos ambientais de fiscalização, visando crescimento sustentável.

O instituto defende ainda uma reforma tributária com taxação de lucros e dividendos e contribuição mais justa para impedir que os super-ricos (que ganham mais de 320 salários mínimos) continuem pagando menos de 2% de alíquota efetiva do Imposto de Renda (IR), além de aprovação urgente do do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos profissionais da Educação (Fundeb). Por fim, o Inesc pede transparência quanto ao balanço das atividades de combate à Covid-19, com detalhamento da execução do orçamento para a área.

Veja exemplos de programas sociais que sofreram cortes de verbas:

Educação

Na Educação, os investimentos públicos caíram em termos reais de R$ 109 bilhões em 2018 para R$ 106 bilhões em 2019 – queda que poderia ter sido evitada caso o valor total autorizado, de R$ 123 bilhões, fosse executado integralmente.

O fomento à pesquisa registrou perda de metade dos recursos para a Capes (Coordenação de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). De 2015 para cá, a queda no orçamento da Capes, por exemplo, foi de R$ 9 bilhões para R$ 4,5 bilhões.

Igualdade racial e de gênero

Essa área foi uma das mais prejudicadas pelo governo federal em 2019. A variação do orçamento para igualdade racial ficou negativa em 45,77% em comparação com o ano anterior. Se considerado o período de 2014 a 2019, a queda real dos recursos nessa área é de 81%. O mesmo aconteceu com as políticas para as mulheres, cujo orçamento caiu 75%.

Meio ambiente

A partir de 2017, a execução do orçamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA) cai bruscamente até chegar em 2019 com a menor execução orçamentária do órgão na série analisada desde 2012. Foram R$ 2,68 bilhões executados – uma queda de 8,6% em relação a 2018 e de 20% em relação a 2012.

Direito à cidade

A função orçamentária “Urbanismo” agrega parte expressiva das ações e programas do extinto Ministério das Cidades, como serviços urbanos e transporte coletivo urbano. Chegamos em 2019 com recursos autorizados 50% menores que em 2012.

Saúde indígena

Em 2019, a execução do orçamento da ação relacionda à saúde indígena foi de R$ 1,48 bilhões contra R$ 1,76 bilhões em 2018, cerca de R$ 280 milhões a menos, o que compromete o atendimento deste grupo, que apresente piores indicadores em comparação com o resto da população nos casos de sucídio, desnutrição, mortalidade infantil e tuberculose.

Programa Nacional de Educação (PNE)

O PNE previa, para 2019 e 2020, a destinação de 7% e 10% do PIB, respectivamente. Com o corte orçamentário, esse percentual não deve passar dos 5% alcançados em 2018. No ano passado, o Ministério da Educação simplesmente excluiu o critério Custo Aluno-Qualidade (ou CAQ, que mensurava financiamento em relação à qualidade da Educação Básica), na definição dos gastos da pasta.

Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA)

Sob responsabilidade do governo federal, o EJA teve seus recursos reduzidos de R$ 76 milhões para R$ 2,4 milhões, no ano passado. Segundo o Censo Escolar 2019, as matrículas para essa etapa do ensino diminuíram em 7,7% no período, mas, como não há pesquisas para identificar as razões dessa queda, surge a hipótese da falta de ofertas de vagas. Com isso, perde-se a chance de se cumprir as metas de redução do analfabetismo funcional e do aumento da escolaridade da população adulta.

Proteção às crianças e adolescentes

O valor gasto com a implementação de políticas de atenção básica à saúde de crianças e adolescentes, considerando a execução financeira dos dois Planos Orçamentários juntos, despencou de R$ 17,5 milhões em 2018 para R$ 6,81 milhões no ano passado.

O Plano Decenal aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) contava na sua estreia, em 2012, com 13 ações. Mas chegou em 2019 com quatro. Apenas 27,4% dos R$ 159,45 milhões autorizados para 2019 foram executados.

Em 2019, praticamente desapareceu a previsão orçamentária para o combate específico à violência sexual de crianças e adolescentes. O enfrentamento a esse crime foi integrado a um programa mais generalista, que incluem vários tipos de violências contra crianças e adolescentes, reduzindo a transparência das ações específicas. Mesmo assim, em 2019, não se executou recurso algum.

Trabalho infantil

Mais de 1,8 milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) estavam em situação de trabalho infantil, em 2016 (PNAD Contínua). Mesmo diante da meta de erradicar esse mal até 2025, os gastos para a Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil em 2018 e 2019 não tiveram sequer previsão orçamentária.

Fonte: Inesc

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