Ex-chanceleres analisam “diplomacia subalterna” de Bolsonaro

Ex-chanceleres e ministros de toda a Nova República pré-Bolsonaro se reúnem para atacar ‘diplomacia da vergonha’ Membros de seis governos afirmam que política externa brasileira tornou-se irracional e submissa a Washington sob Ernesto Araújo

Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ex-chanceleres e ministros dos governos Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer promoveram um inédito debate, via videoconferência, na noite desta terça-feira (28), para analisar os rumos e gargalos da política externa do Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro.

Ao longo de anos, Celso Lafer, Rubens Ricupero, Celso Amorim,  Aloysio Nunes e Hussein Kalout trocaram críticas e observações relacionadas à condução  da política externa brasileira, com divergências, por vezes bem ásperas, em questões como qual deve ser a relação brasileira com Washington e qual deve ser o tamanho da presença brasileira na África.

No debate desta terça-feira, organizado pela Brazil Conference, da Universidade Harvard e do MIT,  com mediação da jornalista Vera Magalhães, do jornal O Estado de São Paulo, houve um diagnóstico compartilhado: a despeito de discordâncias pontuais e programáticas, concordaram, o Itamaraty orientou-se ao longo de décadas — inclusive durante a ditadura militar — por critérios racionais e pragmáticos, em defesa de interesses nacionais e de acordo com as capacidades do Brasil, sem se deixar afundar por ilusões ideológicas e nem por uma vassalagem a outras potências. Marcos que, sob o governo de Jair Bolsonaro, com o Ministério das Relações Exteriores sob encargo de Ernesto Araújo, se veem em processo de veloz implosão, para serem substituídos por sujeição a Washington, discursos e textos tresloucados e isolamento global.

“Embora discordemos de alguns aspectos, todos partimos de um discurso racional, a partir do qual é possível debater. Hoje em dia, não há nenhum. Esta situação nunca aconteceu no Itamaraty, nem no início do golpe militar. O dano que está sendo feito à reputação do Brasil é um desastre”, afirmou Celso Amorim, que foi chanceler com Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva e ministro da Defesa de Dilma Roussef. “Apesar de todas as diferenças entre os governos, havia linhas de continuidade, com ênfase diferente. Agora, a reputação do Brasil está sendo fortemente atacada, impondo ao Brasil uma enorme vergonha internacional. A vergonha vai sobreviver ao governo Bolsonaro por muitos anos”.

Aloysio Nunes, Celso Amorim, Hussein Kalout, Celso Lafer, Vera Magalhães e Rubens Ricupero em debate nesta terça-feira Foto: Reprodução

Celso Lafer, que atuou como ministro das Relações Exteriores com Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, afirmou que toda política externa tem uma marca de personalidade, que é uma expressão do presidente da República. A política externa brasileira atual, ele disse, é “fruto da personalidade do presidente Bolsonaro”. Como tal, sua principal característica não é a cooperação, mas o confronto.

Isto levou o Brasil a, por exemplo, antagonizar a China, seu principal parceiro comercial, sem obter nenhum benefício, problema ainda mais agravado durante a pior pandemia em mais de 100 anos, afirmou.

“A estratégia da personalidade de Bolsonaro é o confronto. Isto caracterizou sua vida militar, sua atuação no Parlamento, sua campanha. Ele opera a partir da distinção entre nós e eles. Sua política externa é expressão dessa estratégia”, afirmou. “A política externa em curso não tem nenhuma relação com a realidade, e vem levando ao nosso isolamento no mundo. No lugar de afirmar a presença brasileira internacionalmente, combatemos inimigos imaginários”.

Rubens Ricupero, ministro da Fazenda de Itamar Franco e grande pensador das relações exteriores do Brasil, começou sua intervenção destacando “a importância desse encontro”, por reunir três chanceleres e “três ministros que encarnam a História Contemporânea do Brasil, ministros que atuaram nos 16 anos que representam a idade de ouro de nossa República hoje em declínio”.

“Apesar de nossas diferenças, devemos começar a construir um mínimo denominador comum do que deve ser nossa política de reconstrução”, afirmou.

Crítico severo e de primeira hora da política externa de Bolsonaro, Ricupero disse que não ia se estender nesse assunto, porque “hoje existe praticamente uma unanimidade na condenação da política externa do Brasil, e só mesmo nas franjas lunáticas pode haver alguém que defenda essa política”.

Mesmo comedido, Ricupero disse que a política é “rejeitada por todos”, um “anticonsenso”, um “cachorro morto” que “não se pode discutir racionalmente” e “absolutamente alucinada”.

“Esta política é como o próprio Bolsonaro, que disse que não veio para construir, mas para desconstruir e destruir o que já tinha sido feito”.

Membro de uma geração mais jovem e de perfil acadêmico, Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard e ex-secretário de Assuntos Estratégicos do governo Temer, observou que diversas coisas uniam os interlocutores, como a defesa do Estado democrático, da liberdade de expressão, do interesse nacional e sobretudo do respeito “aos cânones e à doutrina com a qual uma política externa bicentenária foi construída”.

Segundo ele, em oposição a esse consenso, que levou o Brasil a ser um ator influente em temas como o ambiental, Ernesto Araújo preferiu “jogar fora os tabuleiros existentes e criar outros absolutamente incertos e inexistentes, em que não se sabe dimensão de jogo, nem se é possível jogar ou exercer influência”.

“Há uma completa ausência de estratégia. Hoje só ocorrem movimentos táticos conjunturais que não configuram uma estratégia integrada e coesa e nos colocam em uma posição extremamente vulnerável. O Brasil não sabe como desenvolver uma liderança na região, não tem um projeto para liderar a América do Sul. Estamos substituindo nossos parceiros tradicionais como Alemanha e França por parceiros como Polônia ou Hungria, cuja complementaridade é zero”, afirmou, sobre países governados por outros fundamentalistas. “O Brasil está se impondo um auto-isolamento, agindo de forma beligerante contra o mundo”.

Aloysio Nunes, chanceler de Temer e ministro da Justiça de Fernando Henrique, foi na linha dos colegas e descreveu a política externa em curso como praticante de um “eterno combate”, incapaz de se aliar com outros países ou de se juntar com vizinhos.

“A diplomacia avança e recua. A situação só não é pior porque o Brasil tem uma diplomacia muito competente que contém estragos”, disse.

Durante o resto do debate de duas horas, o tom geral foi de concordância. Houve rechaço generalizado ao alinhamento automático com os Estados Unidos, cujos interesses não são idênticos aos do Brasil, e, por vezes, são conflitantes. O alinhamento se torna ainda mais sério pela adesão explícita de Bolsonaro ao governo de Donald Trump — posicionamento  que se imiscui na política interna de outro país muito mais poderoso com eleições neste ano, violando princípios elementares de política externa.

Todos concordaram, ademais, que a política para a Venezuela foi desastrada. O reconhecimento de Juan Guaidó e, sobretudo, a retirada de todos os diplomatas brasileiros de Caracas, disseram os ex-ministros, podem prejudicar os cidadãos brasileiros naquele país.

Ao fim e ao cabo, houve a defesa de que o Brasil atue como uma força de moderação e equilíbrio no sistema internacional, em apoio à autodeterminação, à cooperação e à solução pacífica de controvérsias, e que atue em reforço do sistema multilateral, considerado o mais benéfico para uma potência média e soberana como o Brasil costumava ser. Nos minutos de encerramento, Celso Amorim propôs um nome para a turma de recém-aliados, endossado pelos demais: Grupo Ricupero.

Assista o debate aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=sVZzzYVjK_E

Com informações de O Globo.

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